segunda-feira, dezembro 31, 2007
O gosto do saber
Várias pessoas já me disseram sentir angústia por notar a sua impotência e incapacidade de conhecer tudo o que há para conhecer. O tempo é escasso, o trabalho demanda especialização, o bolso não é suficiente para tantos livros, alguns assuntos estão muito longe da sua compreensão etc. A mim não angustia ter de lidar com essas diferentes facetas da finitude humana. Claro que sou mordido pela curiosidade e quero sempre saber mais. Mas sem alvoroço. O conhecimento é como um prato refinado de comida, deve ser apreciado e degustado lentamente. Para que comer com pressa? Só para poder dizer "eu sei!"? Sim, você sabe, mas...até quando você saberá? O que me angustia de verdade não é pensar vagamente em coisas que eu não sei, que, justamente por não saber, sequer tenho como imaginar a não ser de modo bem confuso; o que me angustia é saber muito concretamente, de modo bem definido, que eu já não sei mais coisas que um dia eu soube, o que me angustia é saber que o que eu sei se esvai num jato contínuo na mesma velocidade, na mesma vazão com que aprendo novos assuntos. Eu me angustio pela perda real, não pela ausência do indefinido. Prefiro comer devagar sim, lentamente, tentando absorver e apreciar toda a variação de gosto e textura do alimento. Estou certo que assim a sua influência sobre o meu organismo será mais duradoura e mesmo mais profunda e intensa. Acaso se lembrará do gosto da comida quem a comeu de chofre, em segundos, mal mastigando? Talvez se lembre do mal-estar ocasionado pela gula e só. Sinceridade, eu não quero mesmo saber tudo, eu quero ter fruições intelectuais, quero sentir aquela comichão despertada pela compreensão que pouco a pouco vai se alargando e envolvendo o assunto estudado, que percorre solta e faceira nas suas associações, não quero apenas saber mais, quero também sentir e perceber o impacto deste saber em cada uma de minhas células. Enfim, quero a apreensão total de cada saber, quero mastigar o alimento completamente na minha boca, onde tenho nervos para senti-lo, até que derreta por inteiro. Nada de acúmulo eciclopédico, burro e voraz de vários saberes, o qual, aliás, causa náusea e gastrite.
domingo, dezembro 30, 2007
Milyang
O marido morreu em um acidente, e o filho foi brutalmente assassinado após sequestrado, e ela, elo terreno entre ambos, findou-se por dentro. Lágrimas, dor, desamparo. Brevíssimo, o amor reaparece, pelas mãos intangíveis de Deus. Ela o aceitou e sorriu, encobrindo a sua tristeza incrustada. Paralelamente, todo o tempo, ele estava lá, apoiando-a em tudo, respeitoso, amigo, dando-lhe um amor que ela rejeitava indignada. E, no entanto, as mãos dele eram tangíveis. Quanta incongruência! Arrisco um palpite explicativo: a dor foi tão intensa que lhe deixou um medo indomável, para casos assim, Deus é perfeito. Ele é imortal, seu amor incessante não se esgota e ele jamais abandona, a não ser quando finda a fé. Fé acabada, deus, agora minúsculo, inexiste, nenhuma dor por abandono. Na encruzilhada entre o palpável e o impalpável, o medo lhe soprou baixinho o veneno da fantasia. Fiou-se num amor inumano, sem decepções, baseado inteiramente na sua ilusão, na sua crença e, pasmem, sobretudo na sua vontade de sobreviver, perecer permanecendo. E, no enanto, o amor real, brutal e humano estava bem ali do lado dela, bastava abrir os olhos e estender as mãos. O ser humano amedrontado, porém, nega-se a viver. Segue-se mais uma tragédia. Mesmo esse amor cristalino, ideal, cheirando adocicado, foi capaz de lhe trair. Ela se preparou para perdoar o seu ofensor, o assassino de seu filho. Tentativa de resgatar a dignidade pela humilhação, pois não há nada mais ofensivo que o perdão, exercício puro da vontade de humilhar. Lá chegando, porém, sentiu funda a facada divina fincada nas costas: encontrou o seu ofensor sereno, em paz. Deus já o havia perdoado e expiado a sua culpa. Sucedeu-lhe a loucura. E ele imperturbável no seu amor permaneceu ao lado dela. Ao vivo e a cores em Secret Sunshine.
sábado, dezembro 29, 2007
Calor
A umidade brota da pele impiedosa, rompe poros, escorre incomodamente pelo corpo e deixa a sua marca salgada. Olho para a cama, os livros que lá estão, a vontade de ler, de apropriar-me de algum pensamento, mas sinto um cansaço só de me imaginar lendo suando, as palavras se arrastando, a concentração embotada. Realmente não dá. Realmente eu não poderia. Não aquentaria. Aquela oferta de fazer pós-doutorado em João Pessoa foi bem recusada. Eu não suportaria por muito tempo. O ser humano se adapta, mas bem, uns se adaptam mais facilmente que outros, há toda uma fisiologia particular, particularíssima a se considerar, eu sou calorento, é fato. Aos 15 graus ainda estou só de camiseta. E de mais a mais, chega dessa vida de cigano. E que família a nossa, ein, estava comentando mesmo esses dias com a minha irmã. Migrante desde os antepassados. Conosco não foi diferente. Eu aqui, ela em São Paulo, o pai no Espírito Santo, o irmão em Porto Alegre, a mãe em Minas. O mesmo destino para a família do irmão da minha mãe, que, durante toda a minha infância, foi muito próxima da gente. A prima querida no Rio, a irmã dela em Natal, o irmão em Tocantins, a mãe nos confins do Pará, o pai no Espírito Santo. Poxa, só está faltando alguém no centro-oeste. Alguém tem de ir para lá! Nem olhem para mim. Cuiabá, imagine, uma cidade que fica num fosso, abaixo do nível do mar, onde 30 graus é fresco, brandura e suavidade. Família de curiosos, isso sim. E agora volto ao Espírito Santo, passar uns dias, rever o pai, a dona Maria, minha segunda mãe, a sua comida boa, o seu colo gostoso, mas sinto um peso aqui sobre a minha pele, uma ardência queimada, só de imaginar o calor natural do vale do rio doce com o seu por do sol tão lindo quanto quente, incandescente. Pequeno, nos dias de mais violento calor, eu pegava gelo para chupá-lo ou passá-lo pelo corpo, depois ia me deitar no piso de ardósia, lá na varanda, esperando pelas esporádicas correntes de vento e ria de prazer quando elas vinham. Ficava ali horas, às vezes com um livro, outras com algum brinquedo ou apenas olhando as formigas que traçavam o seu caminho entre os vãos das pedras. Só tem uma coisa boa nessa história de calor, minha carência baixa para zero, sai de perto, não tem abraço, nem beijo, nem nada. É, paz de espírito no meio de um inferno corporal.
quarta-feira, dezembro 26, 2007
Serra Verde Express
Depois que ela nos entregou as latas de refrigerante, explicou: "abre de baixo para cima, puxando o pino, está bem?". Eu e minha irmã nos olhamos com ares de incompreensão. Procurei pelas minhas fraldas, meus pais ou qualquer pessoa mais velha que pudesse ser legalmente responsável por mim e pela minha irmã. Ninguém, estávamos sós, a mercê da própria sorte e, para falar a verdade, adultos. A frase foi lançada de chofre sem pensar, só pode. A despeito dessa bola fora, a guia foi super simpática, loquaz e cativou-me com o seu sorriso largo e amistoso. Pensei até em fazer o passeio novamente só para vê-la outra vez. Para falar a verdade, eu sempre caio de admiração por essas pessoas que lidam com o público com desenvoltura, seja a simpatia fingida ou não. Elas têm um talento que eu definitivamente não tenho. Admiro mesmo, fico olhando embasbacado.
Mas vamos ao que interessa: são três horas e meia de puro verde, serra, pontes, túneis, corredeiras e represas. Valeu à pena sim. E preste muita atenção nessa dica: opte pelo lado esquerdo do trem. Ao comprar a passagem, vão lhe dizer que a venda é seqüencial. Se der azar e a próxima for do lado direito, espere aparecer alguém para comprá-la e compre logo em seguida a do lado esquerdo. A melhor vista da serra, panorâmica, que se estende até o mar, está desse lado. Não sabia disso e me senti prejudicado.
A segunda dica é que não tem muita coisa para fazer em Morretes além de comer o tal do barreado, prato típico do litoral do Paraná e que, diga-se de passagem, ainda não me convenceu. Assim, não façam a burrice de comprar a passagem de volta, no caso de preferir o retorno de ônibus, depois do almoço. Não pensamos nisso e ficamos presos na cidade até às 16:00, num calor infernal. Pelo menos conseguimos um banco debaixo de umas árvores na beira de um rio e ali ficamos lendo por umas duas horas.
E se você, como eu, for muito calorento, considere fazer esse passeio em outra época, no outono ou inverno. Estava insuportavelmente quente.
Vergonha!
Vergonha, vergonha! Sim, é uma verdadeira baixeza lançar mão da compaixão para sensibilizar o outro quando o seu poder de sedução é nulo. E por toda a parte vemos essa vilania. Quando o seu brilho natural não apetece aos olhos do almejado, quando, ao contrário, ele lhe vê fosco, você começa então a pintar e desenhar o seu sofrimento, a sua dor. Que vulgar! Você pensa, se não sou admirado, que ao menos me distancie da indiferença pela compaixão. E assim começa a se dedicar à pintura dos sentimentos, aperfeiçoando-se no uso dos tons de cinza e do negro na arte do auto-retrato, tornando-se mestre na retórica do sofrimento, amplificando, exagerando e inventando detalhes inauditos da sua dor. Quer assim ver o outro chorando por ti, dispondo-se a seu favor, com ar protetor e consolador diante da sua fraqueza vilmente manifesta. Não, nem sempre isso é consciente, mas pouco importa, é baixo. E talvez pior ainda do que este, e repare que falo aqui de um tipo ao qual, em um momento ou outro, todos nós nos aproximamos, sim, eu também confesso a minha vilania, pior ainda é aquele que se deixa seduzir pela compaixão, oh, e também aqui sou um pecador, talvez até mais aqui. Fracos, são todos fracos, somos todos fracos. Lembremos, por exemplo, do Princípie, personagem principal de O Idiota; quando mais a sua firmeza foi necessária e demandada, quando não só o seu futuro próximo e longíngüo estavam em jogo, mas também o da sua amada Aglaia, ele fraqueja e sucumbe por completo diante da compaixão, diante da pintura mais sombria e lúgubre que Nastassia já havia feito de si mesma. Naquele segundo abissal, colossal, de um peso incomensurável, ele se atordoa, se indigna até mortalmente com Aglaia, pois sim, naquele seu instante de completa indecisão ele fere irreparavelmente o amor que ela lhe tinha, seu poder, enfim, é mais fraco que o da Nastassia, e ele se curva diante dela, a compaixão sai vitoriosa, vence até o seu amor. Aonde chegamos, meus amigos, o amor sendo vencido pela compaixão! Lutemos, lutemos contra essa vilania, essa fraqueza dupla que tenta a todo instante nos infectar e corroer.
segunda-feira, dezembro 24, 2007
Irritação
O que mais lhe dói não é nem tanto a rejeição, ele a entende e a assimila com uma paz quase estóica, o que mais lhe rasga por dentro é perceber a irritação que a presença do seu afeto ou carinho gera nela. Isso desce engasgando, cortando. O seu curso de raciocínio para a rejeição é o seguinte: "da mesma forma que não me cabe pedir razões para o sentimento que aflora, e muitos vezes elas lhe seriam até contrárias, também não há qualquer motivo para que o sentimento correspondente não tenha surgido nela. Em mim surge e pronto, nela não surge e pronto. Eis o fundo do poço, não há mais onde escavar, razões a encontrar". Esse pensamento amansa a sua alma e mitiga a dor da rejeição. No entanto, ele não consegue produzir o mesmo pensamento para a irritação, repulsa e, quem sabe, nojo gerados pela percepção do seu afeto. Ele se pergunta, "por que o afeto de uma pessoa por mim e pela qual eu não tenho nenhum sentimento forte me irritaria? Não acho uma resposta, não entendo, a empatia não rola. Faço uma pergunta indevida?" Talvez. A irritação também não poderia ser uma paixão bruta, desmotivada? Por que não? Ela não acontecer nele é uma contingência, mas em outros corpos, com outras fisiologias, ela pode ser nata, instintiva, uma opção natural do organismo para repelir o que não lhe agrada, mesmo que não lhe seja nocivo. Sim, pode ser que seja assim. Mas pensando bem, há uma outra explicação melhor: a irritação não emana da mera percepção do afeto não correspondido, mas sim da imaginação do que ele pode fomentar, pois sabemos como é comum alguém se arrebatar, exagerar, dramatizar pelos seus sentimentos a ponto de manifestar-se àquele que não o corresponde de maneira insistentemente irritante. Assim, mesmo que algo acalorado e vibrante não tenha emergido na pele do apaixonado, a imaginação antecipa para o presente a irritação futura. Sim, isso parece bem mais razoável. Ele acaba de ter essa mesma compreensão e ela adocica um pouco a sua experiência, mesmo que não elimine todo o azedume.
Resta ainda a maior de todas as suas aflições presentes. Uma vez percebida a irritação que produz, independente da sua causa, se é que tem uma, o que fazer, que curso de ação tomar? Pois sim, sua consciência se aflige, "como posso conviver com o fato de que irrito, desagrado e assim faço mal àquela que justamente só quero bem?" Ele vê dois caminhos, ou melhor, duas possibilidades, pois falar em 'caminhos' parece pressupor que está em condições de escolher um deles, e não é certo que seja este o caso. Por um lado, ele poderia seguir como um espírito forte, centrado em si mesmo, lançando fora qualquer culpa, libertaria sua pulsão de vida por completo, seu afeto floresceria incandescente, mesmo que viesse a ter por conseqüência provocar uma irritação ainda maior nela, mas ele estaria vivo e estaria sendo fiel a si mesmo. Por outro lado, ele poderia reunir todas as suas forças destrutivas, evocar seu Tanatus, e dirigi-lo impiedosamente se não tanto para o seu afeto, que, eu creio, ser indestrutível por volição, ao menos para a sua manifestação, ceifando assim parte de si. Ele se espancaria dia após dia até que o afeto se tornasse comprimido e fraco a ponto de se perder e se afogar no mar confuso das paixões. Uma extinção por repressão.
Poupa a ela ou a si, a sua consciência ou o seu sentimento? Essa pergunta faz sentido, há escolha possível aqui? Ele se sente cindido, esquizofrênico com este dilema em mãos.
Resta ainda a maior de todas as suas aflições presentes. Uma vez percebida a irritação que produz, independente da sua causa, se é que tem uma, o que fazer, que curso de ação tomar? Pois sim, sua consciência se aflige, "como posso conviver com o fato de que irrito, desagrado e assim faço mal àquela que justamente só quero bem?" Ele vê dois caminhos, ou melhor, duas possibilidades, pois falar em 'caminhos' parece pressupor que está em condições de escolher um deles, e não é certo que seja este o caso. Por um lado, ele poderia seguir como um espírito forte, centrado em si mesmo, lançando fora qualquer culpa, libertaria sua pulsão de vida por completo, seu afeto floresceria incandescente, mesmo que viesse a ter por conseqüência provocar uma irritação ainda maior nela, mas ele estaria vivo e estaria sendo fiel a si mesmo. Por outro lado, ele poderia reunir todas as suas forças destrutivas, evocar seu Tanatus, e dirigi-lo impiedosamente se não tanto para o seu afeto, que, eu creio, ser indestrutível por volição, ao menos para a sua manifestação, ceifando assim parte de si. Ele se espancaria dia após dia até que o afeto se tornasse comprimido e fraco a ponto de se perder e se afogar no mar confuso das paixões. Uma extinção por repressão.
Poupa a ela ou a si, a sua consciência ou o seu sentimento? Essa pergunta faz sentido, há escolha possível aqui? Ele se sente cindido, esquizofrênico com este dilema em mãos.
domingo, dezembro 23, 2007
Elizabeth McGovern
Ela debuta em Ordinary People (1980). O filme é muito ruim, eu particularmente não gostei. Um garoto nos seus 16 ou 17 anos entra em crise existencial, apresentando tendências suicidas, após perder o irmão em um acidente de barco. Sente-se culpado por não ter conseguido ajudá-lo. O tempo inteiro tive vontade de entrar no filme com uma corda para finalizar com o choramingo do menino: tome, enforque-se logo! Mas não é do chato que eu quero falar. É dela, é só por ela que eu assisti até o final, mesmo sendo uma personagem secundária. Vocês sabem o que é se apaixonar literalmente pela imagem, pela visão, pelo que a pessoa tem de mais externo? Pois é, confesso, vulgarizei-me diante dela, caí de quatro. Não resisti aos seus olhos de lince, aos cabelos curtos, à voz meiga, às roupas escolares, oh sim, quase um ataque pedófilo, fui completamente abatido pelo desejo de olhar. E por favor, não me venham com links de fotos atuais dela, eu não me apaixonei por ela, nem por ela com os seus 20 anos, antes ou depois do filme, mas exatamente por ela assim, neste filme, nessa personagem, nesta cena, com esse olhar, apaixonei-me por uma aparição única e instantânea sua que a fotografia e o cinema congelaram para mim no eterno. Claro que uma paixão assim, sensual, visual, perceptiva, só é saudável se completamente fugaz. Oh sim, já passou, mas fica aí o tributo à beleza da moça.
Alfredo me acotovelando aqui: "que beleza de mãos!". Certo...certo.
sábado, dezembro 22, 2007
Control
Completamente em preto e branco, em sintonia com a existência poética e depressiva de Ian Curtis, Control (2007) nos exibe com primor os cinco últimos anos da vida deste músico, vocalista da banda Joy Division. O roteiro é baseado em texto da sua própria esposa, Deborah Curtis. Quem, como eu, curte a banda ficará satisfeito com a seleção das músicas que compõem a trilha sonora do filme. Cobrem bem a obra e caem perfeitamente para o momento vivido por Ian. Transmission, Isolation, Disorder, She's Lost Control, Love Will Tear Us Apart, para citar algumas. Independente de gostar ou não da banda, o drama de Ian, sua vida dividida entre dois amores e a banda, suas crises epilépticas e suas próprias angústias existenciais, são suficientes para envolver o público. Ao ver a performace do Ian nos shows, seus movimentos desarticulados dos braços, finalmente entendi a maneira esquisita de dançar dos seus fãs que eu via nas boates góticas em meados dos anos 90. Ah, não falei ainda de Atmosphere, não é mesmo? Esperei por ela todo o filme, angustiando-me a cada minuto com a sua ausência imperdoável. Ela foi deixada para o final, servindo de fundo para o suicídio de Ian. Decisão corretíssima do diretor, pois não consigo lembrar de outra composição que melhor o resuma e o expresse. É uma letra rarefeita, confusa, taciturna, fazendo bolhas de sentido que logo se arrebentam, ao passo que a melodia é de uma calma e paz penetrantes.
Atmosphere
Walk in silence,
Dont walk away, in silence.
See the danger,
Always danger,
Endless talking,
Life rebuilding,
Dont walk away.
Walk in silence,
Dont turn away, in silence.
Your confusion,
My illusion,
Worn like a mask of self-hate,
Confronts and then dies.
Dont walk away.
People like you find it easy,
Naked to see,
Walking on air.
Hunting by the rivers,
Through the streets,
Every corner abandoned too soon,
Set down with due care.
Dont walk away in silence,
Dont walk away.
segunda-feira, dezembro 17, 2007
A volúpia do desejo
Quando ela sentou do meu lado e percebi de relance os seus cabelos ruivos, de imediato olhei malicioso para Alfredo, que estava sentando em um banco bem na minha frente. Ele não se conteve e sorriu. Dali em diante não seria mais possível ter um pouco da sua atenção para a conversa. Seus olhos brilharam em movimentos bruscos e amplos, perscrutando cada fio de cabelo daquela mulher. Mais tarde ele me segregou, sua atenção cresceu num átimo não apenas por ser ruiva, mas pelo seu enxame de sardas, centenas delas, umas mais claras, outras mais escuras, espalhadas delicadamente pelo seu belo rosto albino. Eu não olhei fixamente para ela, estava mais interessado nas reações de Alfredo enquanto ele a esquadrinhava de cima a baixo. Súbito seu sorriso deu lugar ao desapontamento quando seu olhar atingiu as mãos dela. Não por serem feias, ao contrário, eram belíssimas, não tanto quanto as da vizinha, disse-me depois Alfredo, mas tinham uma delicadeza consoante às suas sardas suaves, de uma brancura que lhe inspirou a mais profunda paz. Afetou-lhe na verdade o estúpido compromisso estatelado no anular da jovem ruiva. Eu logo vi que se tratava de uma curitibana, sem lhe ouvir o sotaque, apenas por observar a espessura expressiva do seu anel; o curitibano, diga-se de passagem, é de uma discrição impressionante nos assuntos casamenteiros... Mas era tudo um grande gozo estético, o coração de Alfredo, já sabemos, anda por outras bandas, o compromisso da ruiva não lhe abalou mais do que alguns segundos, foi mais um indignação com a estupidez do anel e logo o seu rosto voltou a expressar a satisfação contemplativa de quem admira a manifestação mais pura e ingênua da beleza.
Era neste ponto que eu queria chegar. Uma das coisas que mais admiro no Alfredo, no que ele se distingue abruptamente de mim, é essa sua maneira cândida e nobre de admirar uma mulher. Eu sou mais instintivo, já teria olhado de imediato para as carnes dela, guiado por uma volúpia demoníaca, ele não, deteve-se em suas mãos, na sua candura facial e sobretudo nas suas expressões, tentando lhe extrair a alma, os pensamentos e observando, ao mesmo tempo, se eles eram compatíveis com a sua beleza delicada. Quando depois perguntei a ele se tinha sentido desejo pela ruiva, ficou profundamente ofendido. "Ora, que absurdo, como se você não soubesse do meu sentimento pela vizinha!", disse-me ele enrugando o rosto quase nervoso. Ora, que bobagem, por que a presença de um sentimento impediria a emergência de um desejo? Depois ele me explicou que esse impedimento, nele, era rigoroso, que lhe era impossível, mesmo com muito esforço, ferver o seu sangue senão com a imaginação da amada. Reconheceu, é verdade, que a visão ou a imaginação de outras mulheres poderiam lhe despertar o desejo, afinal, ele não é menos homem e carne do que eu, mas tão logo brotasse esse desejo, seu coração e mente seriam trespassados por ela, em emoção e em imagens, sendo-lhe impossível evitar a sua presença esmagadora.
Tudo isso me parece de um romantismo muito tolo, disse-lhe afinal. "Pode ser, pode ser...", ele começou a desenvolver, "mas não vejo entre eu e você muita diferença além do fato do meu desejo ser concentrado e o seu disperso. Enquanto o seu emerge apenas do instinto errático, cambiante de minuto em minuto, completamente subjugado ao exterior, o meu brota de uma amálgama coordenada entre instinto e emoção e, por isso, é até mais forte e intenso que o seu; além de durar no tempo, tem um foco que não emana apenas da pele, da química corporal, enfim, do que é externo, mas também do próprio ser, seja lá o que isso for, é um desejo que brota de uma semente que sou eu mesmo, não é algo que apenas me acontece. Na forma não diferem. Meu desejo não é menos violento e obsceno que o seu, quando ela me trespassa, estou liberto de qualquer pudor, meus olhos flamejam, deliro com ela sob todas as formas de união carnal, mas, e aqui nos distanciamos, enquanto a violência do seu desejo violenta, reduzindo a pessoa ao corpo, sugando-lhe a química apenas para a satisfação do desejo, a do meu penetra na alma, eleva o corpo à categoria de pessoa, cada gota de suor toma a dimensão de um orvalho que o corpo dela esponjal absorve, pois todo esse desejo voluptuoso, e não menos demoníaco, vem aveludado por uma capa emotiva, que, quando toca, não só absorve, mas doa também, cede, sou animal sem ser animalesco. No fundo, o romântico aqui é você, olhando para a dimensão mais idealista do termo, pois acredita numa natureza dicotômica e cindida muito pouco humana. Assim, para concluir e calar a leviandade que me sugeriu há pouco, meu desejo dual, que vem de fora e de dentro, embora possa ser desperto por aquela ruiva, e sim, eu a admirei, não poderia tê-la por objeto, pois na sua própria dinâmica, intangível pela minha vontade, as mãos alvas da ruiva seriam magicamente substituídas pelas mãos arredondadas da vizinha, e assim com todo o resto, de modo que, quando me desse conta, estaria entrelaçado não com a ruiva, mas com aquela que só de ver ou pensar me emociona.".
Era neste ponto que eu queria chegar. Uma das coisas que mais admiro no Alfredo, no que ele se distingue abruptamente de mim, é essa sua maneira cândida e nobre de admirar uma mulher. Eu sou mais instintivo, já teria olhado de imediato para as carnes dela, guiado por uma volúpia demoníaca, ele não, deteve-se em suas mãos, na sua candura facial e sobretudo nas suas expressões, tentando lhe extrair a alma, os pensamentos e observando, ao mesmo tempo, se eles eram compatíveis com a sua beleza delicada. Quando depois perguntei a ele se tinha sentido desejo pela ruiva, ficou profundamente ofendido. "Ora, que absurdo, como se você não soubesse do meu sentimento pela vizinha!", disse-me ele enrugando o rosto quase nervoso. Ora, que bobagem, por que a presença de um sentimento impediria a emergência de um desejo? Depois ele me explicou que esse impedimento, nele, era rigoroso, que lhe era impossível, mesmo com muito esforço, ferver o seu sangue senão com a imaginação da amada. Reconheceu, é verdade, que a visão ou a imaginação de outras mulheres poderiam lhe despertar o desejo, afinal, ele não é menos homem e carne do que eu, mas tão logo brotasse esse desejo, seu coração e mente seriam trespassados por ela, em emoção e em imagens, sendo-lhe impossível evitar a sua presença esmagadora.
Tudo isso me parece de um romantismo muito tolo, disse-lhe afinal. "Pode ser, pode ser...", ele começou a desenvolver, "mas não vejo entre eu e você muita diferença além do fato do meu desejo ser concentrado e o seu disperso. Enquanto o seu emerge apenas do instinto errático, cambiante de minuto em minuto, completamente subjugado ao exterior, o meu brota de uma amálgama coordenada entre instinto e emoção e, por isso, é até mais forte e intenso que o seu; além de durar no tempo, tem um foco que não emana apenas da pele, da química corporal, enfim, do que é externo, mas também do próprio ser, seja lá o que isso for, é um desejo que brota de uma semente que sou eu mesmo, não é algo que apenas me acontece. Na forma não diferem. Meu desejo não é menos violento e obsceno que o seu, quando ela me trespassa, estou liberto de qualquer pudor, meus olhos flamejam, deliro com ela sob todas as formas de união carnal, mas, e aqui nos distanciamos, enquanto a violência do seu desejo violenta, reduzindo a pessoa ao corpo, sugando-lhe a química apenas para a satisfação do desejo, a do meu penetra na alma, eleva o corpo à categoria de pessoa, cada gota de suor toma a dimensão de um orvalho que o corpo dela esponjal absorve, pois todo esse desejo voluptuoso, e não menos demoníaco, vem aveludado por uma capa emotiva, que, quando toca, não só absorve, mas doa também, cede, sou animal sem ser animalesco. No fundo, o romântico aqui é você, olhando para a dimensão mais idealista do termo, pois acredita numa natureza dicotômica e cindida muito pouco humana. Assim, para concluir e calar a leviandade que me sugeriu há pouco, meu desejo dual, que vem de fora e de dentro, embora possa ser desperto por aquela ruiva, e sim, eu a admirei, não poderia tê-la por objeto, pois na sua própria dinâmica, intangível pela minha vontade, as mãos alvas da ruiva seriam magicamente substituídas pelas mãos arredondadas da vizinha, e assim com todo o resto, de modo que, quando me desse conta, estaria entrelaçado não com a ruiva, mas com aquela que só de ver ou pensar me emociona.".
domingo, dezembro 16, 2007
Sem desculpas
Eu entendo perfeitamente a intenção louvável de um pai de querer educar os seus rebentos com o que há de melhor na nossa cultura ocidental, colocando-os em contato com obras clássicas desde a mais tenra infância. Contudo, essa intenção egoísta não está acima de modo algum da vontade pública de usufruir de um concerto com o silêncio absoluto da platéia. Veja bem, se você quer que o seu pimpolho escute e deguste música erudita, submeta-o ao enxoval musical no conforto do seu lar. Eu não tenho nada a ver com isso. É de uma imbecilidade sem tamanha esperar e de uma crueldade insuportável querer que uma criança com menos de 10 anos fique sentada numa sala escura completamente quieta, sem falar e se mexer. Se muitos adultos pseudo-cientes de si mesmos já não conseguem segurar a própria língua, o que não esperar de uma criança que ainda sequer é capaz de distinguir-se do mundo! E sinceramente eu não sei de onde sai tanto bebê assim, estavam lá em enxame. Não é fácil me irritar, mas o som gutural de hominídeos infantes num concerto tira-me do sério, me desconcerta, me desconcentra. Não, não foi por ser de graça, o público era o mesmo. Quando paguei para ouvir a nona do Beethoven, a mesma horda estava lá. Não há desculpa para a má educação de pais com boas intenções.
domingo, dezembro 09, 2007
Mãos
Alfredo um dia abordou a vizinha e, desde então, troca algumas palavras com ela sempre que se encontram no elevador. Encontros não raros, é verdade, haja vista a sua diligência intuitiva em perceber os horários dela. Agora ele escreve também, movido pelo mesmo encantamento que outrora despertara o interesse do remetente, do qual, aliás, não temos mais notícias. Alfredo tem manias estranhas, como a sua fixação por mãos. Uma vez ele me disse que era capaz de extrair todo o perfil psicológico de uma pessoa só de olhar para as mãos dela. Não duvido que ele realmente leve a sério essa idéia, embora eu seja incrédulo sobre os seus resultados. Mas isso é lá com ele. Ontem ele me mostrou um bilhete que escreveu para ela e o reproduzo aqui a título de curiosidade, como exemplo da sua mania.
Enquanto te ouço falar, é difícil às vezes não me deixar levar pela beleza das tuas mãos, elas me magnetizam de tal maneira que só com muito esforço junto as tuas palavras em uma frase com sentido. Fico perturbado. Teus dedos perfeitamente arredondados, delicadamente grossos, sem gordura, diria ternos e maternais, embora não tenha ainda entrelaçado a minha mão na tua, entram imponentes na minha imaginação, arrebatando-me emoções e sensações. Tenho a impressão de que me sentiria seguro e calmo ao apertá-las. Preciso dizer: não há outras mais belas na minha experiência lembrada e não digo isso como clichê de sedução, não, não mesmo. As mãos sempre tiveram sobre mim um efeito notável de encantamento, diria até que não raramente viso-as antes mesmo de encarar a face de uma mulher, desinteressando-me dela, a despeito de tudo o mais, se forem grosseiras ou vulgares. Mas as tuas mãos se casam perfeitamente com tudo o que vejo em você. São francas, firmes, clássicas, sem excesso nas pinturas e no tamanho das unhas, que, aliás, estão sempre muito bem polidas. Não pretendo me delongar, só queria me explicar, caso algum dia tenha me estranhado por demorar demais na contemplação das tuas mãos. É consciente sim, mas nem por isso tenho o controle, é como se elas emitissem o canto das sereias e confesso estar muito longe da virtude de Odisseu. Sucumbo. Quando penso em você, lembro-me delas, sempre.
Enquanto te ouço falar, é difícil às vezes não me deixar levar pela beleza das tuas mãos, elas me magnetizam de tal maneira que só com muito esforço junto as tuas palavras em uma frase com sentido. Fico perturbado. Teus dedos perfeitamente arredondados, delicadamente grossos, sem gordura, diria ternos e maternais, embora não tenha ainda entrelaçado a minha mão na tua, entram imponentes na minha imaginação, arrebatando-me emoções e sensações. Tenho a impressão de que me sentiria seguro e calmo ao apertá-las. Preciso dizer: não há outras mais belas na minha experiência lembrada e não digo isso como clichê de sedução, não, não mesmo. As mãos sempre tiveram sobre mim um efeito notável de encantamento, diria até que não raramente viso-as antes mesmo de encarar a face de uma mulher, desinteressando-me dela, a despeito de tudo o mais, se forem grosseiras ou vulgares. Mas as tuas mãos se casam perfeitamente com tudo o que vejo em você. São francas, firmes, clássicas, sem excesso nas pinturas e no tamanho das unhas, que, aliás, estão sempre muito bem polidas. Não pretendo me delongar, só queria me explicar, caso algum dia tenha me estranhado por demorar demais na contemplação das tuas mãos. É consciente sim, mas nem por isso tenho o controle, é como se elas emitissem o canto das sereias e confesso estar muito longe da virtude de Odisseu. Sucumbo. Quando penso em você, lembro-me delas, sempre.
terça-feira, novembro 27, 2007
Belo Horizonte
Confesso que senti inveja da cidade que me abrigou por tanto tempo. Deu até um pingo de saudades. Veja.
E num dia desses, sentou no banco da frente, no mesmo ônibus costumeiro, uma mineira de BH. Fosse só mineira, não daria nada. Mas ela começou a falar com a amiga sentada ao seu lado de situações e lugares que me foram próximos. Falou do CMBH, da festa da Poeira, que uma vez ajudei a organizar, quando prestei serviço militar obrigatório e, por fim, citou a minha imponente e saudosa UFMG.
Mas da UFMG, para falar a verdade, eu me lembro e sinto saudades quase todos os dias ao entrar na biblioteca e nos banheiros da UFPR...Não vou nem comparar a diferença monumental dos acervos, pois seria grotesco da minha parte, mas puxa, há 8 anos atrás, quando iniciava o meu mestrado em filosofia na UFMG, eu podia fazer reservas e renovações dos livros pela internet, ao consultar o livro, tinha acesso a desenhos que mostravam, no ambiente da biblioteca, a localização da sua estante, aqui me ofertam apenas uma consulta online muito da porca e a renovação, que não pode ser feita pela internet, tem de ser presencial, se limita a uma única vez por não terem um sistema simples de reservas que impediria um aluno de renovar um livro indefinidamente. Não vou nem comentar que aqui só posso emprestar dois livros simultaneamente...
E num dia desses, sentou no banco da frente, no mesmo ônibus costumeiro, uma mineira de BH. Fosse só mineira, não daria nada. Mas ela começou a falar com a amiga sentada ao seu lado de situações e lugares que me foram próximos. Falou do CMBH, da festa da Poeira, que uma vez ajudei a organizar, quando prestei serviço militar obrigatório e, por fim, citou a minha imponente e saudosa UFMG.
Mas da UFMG, para falar a verdade, eu me lembro e sinto saudades quase todos os dias ao entrar na biblioteca e nos banheiros da UFPR...Não vou nem comparar a diferença monumental dos acervos, pois seria grotesco da minha parte, mas puxa, há 8 anos atrás, quando iniciava o meu mestrado em filosofia na UFMG, eu podia fazer reservas e renovações dos livros pela internet, ao consultar o livro, tinha acesso a desenhos que mostravam, no ambiente da biblioteca, a localização da sua estante, aqui me ofertam apenas uma consulta online muito da porca e a renovação, que não pode ser feita pela internet, tem de ser presencial, se limita a uma única vez por não terem um sistema simples de reservas que impediria um aluno de renovar um livro indefinidamente. Não vou nem comentar que aqui só posso emprestar dois livros simultaneamente...
sábado, novembro 24, 2007
A caminhada
A labuta obstinada e incessante recompensa sempre o autor, inventor ou artista, conferindo em suas mãos e mentes os artefatos e as capacidades necessárias para esculpir as suas obras com primor e perfeição. Sim, concordo com a F. que o caminho retilíneo, sem dúvidas, sem paradas, sem mudanças, é, ao menos no mundo euclidiano, o mais curto até a criação cristalina. Contudo, não podemos desprezar a importância do vadio que erra pelo mundo sem propósito, desbravando paisagens inauditas, ainda que apenas para colocar por onde passa uma placa grosseira que será depois meticulosamente pintada e polida pelo artista.
As coisas só não ficam bem, para o vadio, quando ele não aceita o seu destino e se compara com o artista, queixando-se da falta de retidão, incomodando-se com o seu andar em ziquezague, procurando retroativamente, em desespero, uma ligação entre as paisagens visitadas. Tudo em vão. O vadio só vai conseguir tirar proveito da sua situação, forjando olhos para o inusitado, com alegria e vivacidade, quando aceitar a sua existência paradoxal, quando perceber que o seu propósito é justamente não ter propósito algum, que ele não anda para chegar em algum lugar, mas simplesmente para andar, a fim de que sempre tenha alguém andando.
As coisas só não ficam bem, para o vadio, quando ele não aceita o seu destino e se compara com o artista, queixando-se da falta de retidão, incomodando-se com o seu andar em ziquezague, procurando retroativamente, em desespero, uma ligação entre as paisagens visitadas. Tudo em vão. O vadio só vai conseguir tirar proveito da sua situação, forjando olhos para o inusitado, com alegria e vivacidade, quando aceitar a sua existência paradoxal, quando perceber que o seu propósito é justamente não ter propósito algum, que ele não anda para chegar em algum lugar, mas simplesmente para andar, a fim de que sempre tenha alguém andando.
sexta-feira, novembro 23, 2007
Força
Até que ponto está em suas mãos não se deixar afetar pelo que acontece nas imediações, pelo que te fazem ou deixam de fazer? Uma sensação nos atropela. Reagimos emocionalmente ao mundo e às pessoas sem um ato de reflexão, o corpo se modifica em piloto automático, para o seu bem ou mal, como anjo ou algoz. No entanto, sinto emanar de mim uma força, uma vontade, uma capacidade de resistir a um pensamento penoso que se reitera segundo após segundo diante de uma emoção que tenta me sugar e engolfar em lágrimas. Uma luta caótica, um eu que se cinde, que se ataca e se defende. Agora ele apenas sorri, vitorioso, imaginando, antecipando, o vento fresco que buscará na aurora do dia junto com o azul que lhe cobrirá os olhos, e as pernas que libertará para correrem vadias o mundo que o encanta.
quarta-feira, novembro 14, 2007
Testa
A testa deveria ser um letreiro luminoso onde apareceria o nome do livro que a pessoa está lendo no momento. Poxa, a moça passou o percurso inteiro do ônibus com um sorriso na boca enquanto lia o seu livro. Provavelmente era de literatura, pois pude identificar que era um daquela coleção de bolso da Martin Claret, mas não consegui ver o título. Saco, agora vou ter de morrer na curiosidade. E o trecho deveria estar realmente muito bom, pois ela não desfez o seu sorriso em nenhum momento. Qual era o contexto, o que estava acontecendo, qual era a história? Ó céus!
sábado, novembro 10, 2007
Há males que vem para bem
Alguns vieram me dizer que Alfredo é um puto por ter roubado e rasgado a carta alheia, infligindo um sofrimento gratuito e injusto sobre o remetente. Como conheço todas as partes envolvidas nesta história e, posso assim, portar-me, no relato, como ser onisciente, saio em defesa de Alfredo em virtude do que vim a saber. Apesar da sua má intenção, Alfredo acabou fazendo bem ao remetente quando liquidou com a carta. Sejamos sinceros, eu conheço bem a vizinha de Alfredo e a verdade é que o melhor sentimento que ela conseguiu sentir pelo remetente foi a compaixão. Nada mais. Não vou dizer que nada menos também, pois eis aqui o nó da questão. Sabe quando a mulher, após achar graça e se envaidecer ao perceber olhares interessados, começa a se incomodar com a persistência desses mesmos olhares e, por fim, toma nojo deles se não sente nenhum interesse correspondente? Pois é nesse limiar que encontramos a vizinha de Alfredo. Vivida e experiente, já vinha percebendo a comoção que a sua presença provocava no remetente, mas não levou muito a sério, imaginando que a sua frieza lhe mataria mais cedo ou mais tarde a esperança. Para o seu infortúnio, o delírio parece ser apanágio dos apaixonados e mesmo diante de um comportamento que qualquer um veria como irritação ou rejeição, o remetente interpretava como desatenção, timidez ou mesmo um jogo de sedução, que, certamente, só na sua cabeça fazia algum sentido. Um coitado, falemos a verdade, mas nem por isso incapaz de despertar o desprezo crescente da vizinha. Eis então que Alfredo salva o remetente de cair sob a mira do ódio ao rasgar a sua carta patética, pois era o estopim que faltava para ela se explodir em uma rejeição definitiva, em um nojo sem volta.
Vários dias se passaram, reinando entre a vizinha e o remetente o mais profundo silêncio. Hoje a angústia do remetente não é mais a da espera e sim a do arrependimento, pois já não está mais febril como antes. Mal sabe ele que desta vergonha está livre graças ao puto do Alfredo.
Vários dias se passaram, reinando entre a vizinha e o remetente o mais profundo silêncio. Hoje a angústia do remetente não é mais a da espera e sim a do arrependimento, pois já não está mais febril como antes. Mal sabe ele que desta vergonha está livre graças ao puto do Alfredo.
Introversão
Eis aqui um bom texto sobre o que é a introversão e como introvertidos se comportam. Tenho de concordar com o autor que a maior dificuldade do introvertido é se fazer entender para um extrovertido, explicar para ele que precisamos de momentos de solidão após uma interação social, que não desejamos estar na companhia de outros seres humanos o tempo inteiro e que isso não é sinônimo de gostar menos ou de frieza e muito menos de infelicidade ou tristeza. Já cansei de ver extrovertidos me olharem com aquela cara de compaixão depois de tomarem ciência dos poucos amigos que possuo ou dos longos tempos que passo sozinho na minha agradável companhia. O extrovertido simplesmente projeta sobre o introvertido o seu sofrimento ou angústia de quando está só, de quando o seu celular fica sem tocar ou receber mensagens por uma hora, levando-o quase ao pânico. A ele só me resta dizer que não tenho esse tipo de sofrimento e, por isso, sua compaixão é completamente sem sentido. No final, sou eu quem acabo ficando com pena do extrovertido pela sua falta de capacidade de se colocar no lugar do outro. O extrovertido precisa entender que o introvertido está bem quando procura a reclusão. Ou melhor, ele procura a reclusão justamente para ficar bem e sente-se feliz ao usufruí-la.
O texto também distingue apropriadamente a introversão da timidez e da misantropia. Essas características não andam necessariamente juntas em uma pessoa. Indivíduos introvertidos podem fazer discursos para grandes públicos sem um cisco de nervosismo ou apreensão. Mas certamente procurarão a reclusão após a fala. No meu caso, além de introvertido, também sou tímido, mas essa conjunção de características na minha pessoa é acidental. E não vejo em mim nada que possa me caracterizar como anti-social. Muito pelo contrário, minha calma e paciência fazem com que o meu trato com os outros, mesmo desconhecidos, seja, em princípio, bem amigável. Esses dias mesmo passei a cumprimentar o vigia de um restaurante que fica no meu caminho de retorno para casa. Eu sempre passava ali e o via e ele a mim também, por que não saudá-lo, na sua sim solidão obrigatória, labutada, talvez sofrida, com um "boa noite" ou "tudo bem"?. Sociabilidade não tem nada a ver com falar pelos cotovelos. Conheço, aliás, pessoas extrovertidas que são exageradamente irascíveis, que se deixam afetar visivelmente por qualquer contrariedade e, portanto, são muito mais anti-sociais do que eu.
Lembro quando falei pela primeira vez ao meu irmão, então com os seus 15 ou 16 anos, que eu precisava ficar só depois de passar um bom tempo mesmo com as pessoas que eu mais gostava, os familiares, os amigos ou a namorada. Ele reagiu com espanto, interpretando o meu comportamento como indício de que gostava menos dos meus familiares que eles de mim, por exemplo. Não é nada disso. Se posso colocar a matéria de uma forma clara, é essa: depois de um certo tempo interagindo com outras pessoas, sinto saudades colossais de mim, de falar comigo, de pensar comigo e, neste momento, a reclusão se torna um imperativo, uma necessidade da qual não posso, sem sofrimento, me furtar. Por sorte, o meu irmão acabou me entendendo. Infelizmente, não é sempre assim.
O texto também distingue apropriadamente a introversão da timidez e da misantropia. Essas características não andam necessariamente juntas em uma pessoa. Indivíduos introvertidos podem fazer discursos para grandes públicos sem um cisco de nervosismo ou apreensão. Mas certamente procurarão a reclusão após a fala. No meu caso, além de introvertido, também sou tímido, mas essa conjunção de características na minha pessoa é acidental. E não vejo em mim nada que possa me caracterizar como anti-social. Muito pelo contrário, minha calma e paciência fazem com que o meu trato com os outros, mesmo desconhecidos, seja, em princípio, bem amigável. Esses dias mesmo passei a cumprimentar o vigia de um restaurante que fica no meu caminho de retorno para casa. Eu sempre passava ali e o via e ele a mim também, por que não saudá-lo, na sua sim solidão obrigatória, labutada, talvez sofrida, com um "boa noite" ou "tudo bem"?. Sociabilidade não tem nada a ver com falar pelos cotovelos. Conheço, aliás, pessoas extrovertidas que são exageradamente irascíveis, que se deixam afetar visivelmente por qualquer contrariedade e, portanto, são muito mais anti-sociais do que eu.
Lembro quando falei pela primeira vez ao meu irmão, então com os seus 15 ou 16 anos, que eu precisava ficar só depois de passar um bom tempo mesmo com as pessoas que eu mais gostava, os familiares, os amigos ou a namorada. Ele reagiu com espanto, interpretando o meu comportamento como indício de que gostava menos dos meus familiares que eles de mim, por exemplo. Não é nada disso. Se posso colocar a matéria de uma forma clara, é essa: depois de um certo tempo interagindo com outras pessoas, sinto saudades colossais de mim, de falar comigo, de pensar comigo e, neste momento, a reclusão se torna um imperativo, uma necessidade da qual não posso, sem sofrimento, me furtar. Por sorte, o meu irmão acabou me entendendo. Infelizmente, não é sempre assim.
sexta-feira, novembro 02, 2007
Espera
Carta que Alfredo roubou da vizinha, antes que ela lhe pusesse as mãos. Ele ainda não sabe se vai entregá-la, é o destino de duas vidas em sua mãos. No entanto, tudo indica que o desenrolar da história já tem um destino previsível. Ele entregar ou não a carta terá apenas o efeito de antecipar ou retardar a espera angustiada do outro, o remetente. Mas quem disse que Alfredo não aprecia um pouco de sadismo?
Fico me perguntando se deveria me calar, aceitar a percepção que se me
apresenta como evidente, fazendo com que o tempo encubra com montes de
areia o sentimento que hoje é latente, sentimento solitário, sem
par. Ganho ou perco ao falar? Não sei, realmente não sei. Sei apenas
que, ao falar, cristalizo a verdade, mato a esperança que tece
ilusões. Não é nada elegante o que vim aqui fazer, sim, eu sei, e já
imagino você franzindo a testa achando isso tudo um grande absurdo. E
não deixa mesmo de ser. Mas acaso há alguma retidão no que a gente
sente? Na verdade, até tem, posto que nenhum sentimento nasce do
nada, ele tem uma história, uma gênese. Se o torna racional, eu não
sei, mas é certo que faz dele um pedacinho de si, para o qual você
olha e se reconhece. Quando a vi pela primeira vez, voltei para casa
com o gosto da admiração na boca. Mas sem comoção, apenas deslumbre,
afinal, ainda estávamos deslizando sobre a superfície das
aparências. Mas calhou de nos vermos mais e mais vezes, muitas vezes e
nesse vaivém pude começar a conhecer os detalhes, a ver um pouco mais
a fundo, pincelar seus meandros. Aos poucos, a admiração foi ganhando
um tom emocional e quando eu me dei conta do que se passava comigo, já
não era mais possível olhar para as tuas mãos de mulher e não imaginar
as minhas a apertá-las, ver teus lábios e não desejar beijá-los,
acordar pela manhã e não me perguntar pelo seu bem-estar, ouvi-la
falar e não me deixar levar pela musicalidade do seu timbre.
Não me tomes por exagerado, não dei nenhum nome
para o sentimento aqui declarado, nem pretendo pintá-lo com mais cores
do que possui. Ele ainda é fetal, germinal e antecipo o seu parto
justamente para lhe dar um fim antes que nasça por completo. Só venho
pedir pelo teu "não" claro e explícito, pois mesmo que eu já o tenha
intuído, a esperança não me deixa escutá-lo. Só o teu "não" tem a
capacidade de penetrar em minha alma com a verdade verdadeira,
derradeira. Ajude-me a abortar esse bem que só me faz mal!
Alfredo sorri, desponta em seu íntimo a curiosidade pela vizinha que até então ele só havia visto algumas vezes de relance. Em causa própria, rasga a carta. Sua moral é rasa, pragmática, o mero amor possível lhe alivia a consciência do delito cometido. Já sente, aliás, raiva e ciúmes do rival, o pobre e desavisado remetente, que, pelo andar da carruagem, amargará ainda mais com a sua espera angustiada.
Fico me perguntando se deveria me calar, aceitar a percepção que se me
apresenta como evidente, fazendo com que o tempo encubra com montes de
areia o sentimento que hoje é latente, sentimento solitário, sem
par. Ganho ou perco ao falar? Não sei, realmente não sei. Sei apenas
que, ao falar, cristalizo a verdade, mato a esperança que tece
ilusões. Não é nada elegante o que vim aqui fazer, sim, eu sei, e já
imagino você franzindo a testa achando isso tudo um grande absurdo. E
não deixa mesmo de ser. Mas acaso há alguma retidão no que a gente
sente? Na verdade, até tem, posto que nenhum sentimento nasce do
nada, ele tem uma história, uma gênese. Se o torna racional, eu não
sei, mas é certo que faz dele um pedacinho de si, para o qual você
olha e se reconhece. Quando a vi pela primeira vez, voltei para casa
com o gosto da admiração na boca. Mas sem comoção, apenas deslumbre,
afinal, ainda estávamos deslizando sobre a superfície das
aparências. Mas calhou de nos vermos mais e mais vezes, muitas vezes e
nesse vaivém pude começar a conhecer os detalhes, a ver um pouco mais
a fundo, pincelar seus meandros. Aos poucos, a admiração foi ganhando
um tom emocional e quando eu me dei conta do que se passava comigo, já
não era mais possível olhar para as tuas mãos de mulher e não imaginar
as minhas a apertá-las, ver teus lábios e não desejar beijá-los,
acordar pela manhã e não me perguntar pelo seu bem-estar, ouvi-la
falar e não me deixar levar pela musicalidade do seu timbre.
Não me tomes por exagerado, não dei nenhum nome
para o sentimento aqui declarado, nem pretendo pintá-lo com mais cores
do que possui. Ele ainda é fetal, germinal e antecipo o seu parto
justamente para lhe dar um fim antes que nasça por completo. Só venho
pedir pelo teu "não" claro e explícito, pois mesmo que eu já o tenha
intuído, a esperança não me deixa escutá-lo. Só o teu "não" tem a
capacidade de penetrar em minha alma com a verdade verdadeira,
derradeira. Ajude-me a abortar esse bem que só me faz mal!
Alfredo sorri, desponta em seu íntimo a curiosidade pela vizinha que até então ele só havia visto algumas vezes de relance. Em causa própria, rasga a carta. Sua moral é rasa, pragmática, o mero amor possível lhe alivia a consciência do delito cometido. Já sente, aliás, raiva e ciúmes do rival, o pobre e desavisado remetente, que, pelo andar da carruagem, amargará ainda mais com a sua espera angustiada.
domingo, outubro 28, 2007
O Passado
Ontem assisti no cinema "O Passado", dirigido por Hector Babenco e contando com a atuação do galã Gael Garcia, no personagem de Rimini. Não vou narrar a trama, só quero chamar a atenção para a imagem negativa do comportamento feminino em relacionamentos amorosos pintada no filme. Todas as mulheres têm um comportamento emocional exagerado, uma compulsão que beira à loucura, e o ápice desse delírio é magistralmente encarnado pela personagem Sofia que, após se separar aparentemente de modo amigável de Rimini, passa a perseguí-lo, por anos, em busca do amor perdido; mesmo uma "separação pode fazer parte de uma história de amor", diz ela na sessão inaugural de um clube criado por ela para mulheres abandonadas compartilharem suas diferentes obsessões pela volta do marido/amor perdido. Vera, uma outra namorada de Rimini, é obcecada pelos seus ciúmes e chega a ter uma ataque completamente desmedido quando o vê dando pouca atenção ao que ela falava para brincar ternamente com uma menina de 6 ou 7 anos. Depois que ele agradece um biscoito que a menina lhe traz, brincando um pouco com ela, Vera explode, "E agora, vai querer chupar a xoxota dela também?". A mulher mais "normal" do filme é uma ricaça que tem fetiche por instrutores de academia, mantendo com eles intercursos sexuais. Mas ela racionaliza seu comportamento, não se apega aos rapazes e, assim, podemos vê-la como uma mulher com uma luz de razão no meio de outras que só agem segundo seus furores emocionais. É verdade que qualquer mulher tem razão suficiente para sair revoltada da sessão. Mas a imagem do comportamento masculino também não é muito melhor. Rimini é um puto, um canalha, quase trai a esposa na frente do próprio filho, ainda bebê, num motel de quinta categoria. Mas Rimini é sobretudo um fraco, incapaz de falar sobre seus sentimentos, se percebe que o relacionamento está acabando, já procura outra mulher, não consegue ficar sozinho e quando é abandonado pela segunda esposa e se vê desamparado, só e impossibilitado juridicamente de ver o filho, sucumbe na mais absoluta e abjeta depressão. A fraqueza de Rimini fica ainda mais evidenciada no alívio constante que ele procura encontrar com o uso da coca.
Assim, se o filme tem alguma tese sobre a diferença de comportamento entre os gêneros nos relacionamentos, ela é a de que as mulheres são obsessivas, capazes de cometer as maiores loucuras para reaver o amor perdido, remoendo um passado que assim se estende pelo presente, e os homens são emocionalmente fracos, não se aguentam sozinhos, verdadeiros bundões. É claro que as duas imagens são, genericamente falando, falsas. Nem todas as mulheres são obsessivas, assim como nem todo homem é fraco. Na verdade, pode muito bem ser o caso que mulheres nem sejam mais obsessivas que os homens ou, mesmo que sejam, é apenas um traço estimulado pela nossa cultura. Não sei, pouco importa. Importa mesmo é o efeito catártico que essas duas imagens provocam na platéia, na angústia gerada pela visão da situação ao mesmo tempo humilhante e patética a que uma pessoa pode chegar, seja ela homem ou mulher, por causa de uma obsessão sem limites. De maneira semelhante, a fraqueza de alguém que não se aguenta sozinho nos remete à importância do constante encontro consigo mesmo, da necessidade de aprender a sofrer a própria dor sem muletas.
Assim, se o filme tem alguma tese sobre a diferença de comportamento entre os gêneros nos relacionamentos, ela é a de que as mulheres são obsessivas, capazes de cometer as maiores loucuras para reaver o amor perdido, remoendo um passado que assim se estende pelo presente, e os homens são emocionalmente fracos, não se aguentam sozinhos, verdadeiros bundões. É claro que as duas imagens são, genericamente falando, falsas. Nem todas as mulheres são obsessivas, assim como nem todo homem é fraco. Na verdade, pode muito bem ser o caso que mulheres nem sejam mais obsessivas que os homens ou, mesmo que sejam, é apenas um traço estimulado pela nossa cultura. Não sei, pouco importa. Importa mesmo é o efeito catártico que essas duas imagens provocam na platéia, na angústia gerada pela visão da situação ao mesmo tempo humilhante e patética a que uma pessoa pode chegar, seja ela homem ou mulher, por causa de uma obsessão sem limites. De maneira semelhante, a fraqueza de alguém que não se aguenta sozinho nos remete à importância do constante encontro consigo mesmo, da necessidade de aprender a sofrer a própria dor sem muletas.
Bolo de Mel
A receita me foi passada maternalmente, é a primeira não-de-caixinha que tento fazer e deu certo. Pudera também, mais simples impossível ;)
2 xícaras de trigo
1 xícara de açúcar mascavo
1 xícara de aveia
1 xícara de mel
1 xícara de água quente
1 ovo
1 colher (sopa) de fermento em pó.
Coloque em uma tigela o trigo, a aveia, o açúcar e o fermento. Despeje o mel e mexa. Despeje a água quente e mexa. Por último, coloque o ovo e mexa bem até ficar uma massa homogênea. Fica a critério adicionar nozes, castanhas etc. Optei pelas nozes e ficou muito bom.
domingo, outubro 21, 2007
Estar com
Abraço de irmão, abraço de irmã, abraço de mãe, todos em ciranda sorrindo, expelindo as saudades, meu olho em cada um deles, tudo abarcando, nada abarcando, só sentindo, mergulhado na emoção, até as fagulhas que antes incendiam, agora me são brisas, eu sei, eles sabem, mesmo sem saber, que o que mais importa é o simples, o mundano, o irreflexivo estar com.
domingo, outubro 14, 2007
A Concepção
Foi lá, mas vai aqui também:
A Concepção (2006), dirigido por José Eduardo Belmonte, narra a história de um grupo de jovens que, cansados de seus seres e de suas existências entediantes e repetitivas, funda um movimento chamando "concepcionista". O bordão do movimento é ser uma nova fraude a cada dia, inventar e viver uma nova personalidade que não dure mais que 24 horas. A chave para por em prática esse projeto é o hedonismo exagerado. Submergir em prazeres efêmeros, intensos e fugazes, valendo-se de drogas inclusive para ajudar a eliminar a prisão maior do ser: a memória. "Devemos eliminar a memória", diz um concepcionista. A busca incessante pelas múltiplas personalidades resulta da constatação de que "as pessoas estão doentes de si mesmas", há, em todo ser humano, uma angústia por estar preso ao seu ser. O personagem X (Matheus Nachtergaele), que serve de guru ao grupo de jovens e cuja identidade é desconhecida, lança a reflexão inaugural do movimento: "ser sempre o mesmo é como morrer aos poucos. Para viver, é preciso se libertar". O ego deve morrer em prol do prazer, da liberdade de si.
A execução do projeto concepcionista coloca uma dificuldade imediata de ordem prática: como garantir a subsistência se a cada dia você é uma personalidade diferente e não mantém qualquer consistência nas relações e nem persistência no trabalho? Problema que é resolvido com o conhecimento períto de X na falsificação de documentos e cartões de crédito. Assim o grupo pôde cair em orgias, consumir drogas, desligar-se do mundo, viver fantasias, fingir profissões sem se preocupar com o pão de amanhã.
O filme termina com um choque de realidade, quando a polícia faz uma batida no apartamento do grupo para apurar uma denúncia de tráfico de drogas. Os membros principais escapam a tempo, se separam e tentam ainda manter suas vidas concepcionistas, agora em situações mais precárias, sem a ajuda estelionatária do personagem X. Não há uma conclusão definitiva sobre o modo de vida concepcionista, o diretor parece mesmo oscilar no seu próprio julgamento. Os jovens peristem, apesar dos riscos e dificuldades, mesmo quando a prisão se apresenta como provável.
Em consonância com o mote da "morte ao ego", o filme explora o nú masculino o tempo inteiro. O pênis está sempre visível, solto e balouçante nas cenas de orgia, sobrepondo-se ao corpo feminino, que, embora apareça, não recebe grande destaque. Parece uma clara tentativa de chocar os padrões sociais que execram o nú masculino nas telas de cinema.
"A Concepção" deixa alguma reflexão interessante? O movimento tem um apelo fraco, afinal sua execução passa pela bandidagem, pela falsificação de documentos, riscos que poucas pessoas estarão dispostas a correr para "libertar" o seu eu. Há um certo irrealismo psicológico também na própria concepção do concepcionismo. A não ser que você elimine por completo a sua memória, jamais vai conseguir viver a farsa de dentro, como indistinta de si, ela sempre lhe será fingida, o que denuncia a percepção de um Eu constante, que não se altera, ou pelo menos que não se desintegra na velocidade diária requerida pelo concepcionista. O método hedônico de eliminar a memória, consumindo drogas compulsivamente, tem o efeito de deixar a pessoa tão desligada da realidade e tapada socialmente que é de se questionar se ainda faz sentido dizer que ela vive alguma personalidade de alguma maneira. Os próprios concepcionistas do filme não atingem esse grau absoluto de eliminação da memória. Isso fica vizível quando Liz, que fora para São Paulo passar um tempo aplicando suas farsas, resolve voltar à Brasília para se juntar novamente aos seus amigos concepcionistas, sentindo saudades de suas bagunças. Ora, saudades é algo que não cabe a um ser sem memória.
A despeito das falhas de argumento, "A Concepção" tem ao menos o mérito de colocar em destaque uma questão existencial que qualquer ser humano já deparou ou irá deparar um dia: a angústia e o desespero de ser quem é. Difícil imaginar uma pessoa que, em algum momento da sua vida, não tenha sentido um desespero enorme por se sentir preso à pessoa que é, às expectativas que são criadas em seu entorno, à impossibilidade de se mover em alternativas de vida. Esse tipo de angústia já havia sido identificado e explorado por Kierkegaard em "O Desespero Humano". No entanto, lá ele aponta a oscilação constante do Eu na sua relação consigo mesmo entre dois desesperos antagônicos, o primeiro é aquele já discutido e o segundo é justamente o seu oposto: a angústia de não ser quem é, o desespero em se ver forçado a se refugiar de si mesmo. Exemplo desse segundo tipo de desespero obtive pelo efeito catártico do próprio filme. Ao ver cenas de hedonismo exagerado e a tentativa de eliminar a memória, senti quase angustiado a necessidade de ser quem sou, de não perder as minhas memórias, de ser capaz de sentir saudades das pessoas que me foram caras, de não me afastar de mim mesmo num frenesi hedônico que não costure nenhum rumo a minha existência. Esse segundo tipo de desespero, tão comum quanto o primeiro, não é mencionado no filme, o que é até de se esperar, posto que ele enfraquece a tese concepcionista, ao nos fazer constatar que as pessoas não estão assim tão "doentes de si mesmas". Há sim uma oscilação existencial, em virtude das várias situações que vivemos, positivas e negativas, entre querer ser desesperadamente quem é e querer ser desesperadamente outro. Por fim, a própria solução hedônica para o primeiro tipo de angústia e desespero não parece de fato uma solução, mas uma fuga. Esquecer-se de si pela perda de memória e submergir no prazer fugaz e efêmero tem mais a cara de um encobrimento do problema que uma solução para ele. Põe-se o eu para dormir, assim a angústia não é vivenciada. Mas pode-se questionar se um efrentamento consciente do desespero não poderia resultar numa transformação positiva de si mesmo.
A Concepção (2006), dirigido por José Eduardo Belmonte, narra a história de um grupo de jovens que, cansados de seus seres e de suas existências entediantes e repetitivas, funda um movimento chamando "concepcionista". O bordão do movimento é ser uma nova fraude a cada dia, inventar e viver uma nova personalidade que não dure mais que 24 horas. A chave para por em prática esse projeto é o hedonismo exagerado. Submergir em prazeres efêmeros, intensos e fugazes, valendo-se de drogas inclusive para ajudar a eliminar a prisão maior do ser: a memória. "Devemos eliminar a memória", diz um concepcionista. A busca incessante pelas múltiplas personalidades resulta da constatação de que "as pessoas estão doentes de si mesmas", há, em todo ser humano, uma angústia por estar preso ao seu ser. O personagem X (Matheus Nachtergaele), que serve de guru ao grupo de jovens e cuja identidade é desconhecida, lança a reflexão inaugural do movimento: "ser sempre o mesmo é como morrer aos poucos. Para viver, é preciso se libertar". O ego deve morrer em prol do prazer, da liberdade de si.
A execução do projeto concepcionista coloca uma dificuldade imediata de ordem prática: como garantir a subsistência se a cada dia você é uma personalidade diferente e não mantém qualquer consistência nas relações e nem persistência no trabalho? Problema que é resolvido com o conhecimento períto de X na falsificação de documentos e cartões de crédito. Assim o grupo pôde cair em orgias, consumir drogas, desligar-se do mundo, viver fantasias, fingir profissões sem se preocupar com o pão de amanhã.
O filme termina com um choque de realidade, quando a polícia faz uma batida no apartamento do grupo para apurar uma denúncia de tráfico de drogas. Os membros principais escapam a tempo, se separam e tentam ainda manter suas vidas concepcionistas, agora em situações mais precárias, sem a ajuda estelionatária do personagem X. Não há uma conclusão definitiva sobre o modo de vida concepcionista, o diretor parece mesmo oscilar no seu próprio julgamento. Os jovens peristem, apesar dos riscos e dificuldades, mesmo quando a prisão se apresenta como provável.
Em consonância com o mote da "morte ao ego", o filme explora o nú masculino o tempo inteiro. O pênis está sempre visível, solto e balouçante nas cenas de orgia, sobrepondo-se ao corpo feminino, que, embora apareça, não recebe grande destaque. Parece uma clara tentativa de chocar os padrões sociais que execram o nú masculino nas telas de cinema.
"A Concepção" deixa alguma reflexão interessante? O movimento tem um apelo fraco, afinal sua execução passa pela bandidagem, pela falsificação de documentos, riscos que poucas pessoas estarão dispostas a correr para "libertar" o seu eu. Há um certo irrealismo psicológico também na própria concepção do concepcionismo. A não ser que você elimine por completo a sua memória, jamais vai conseguir viver a farsa de dentro, como indistinta de si, ela sempre lhe será fingida, o que denuncia a percepção de um Eu constante, que não se altera, ou pelo menos que não se desintegra na velocidade diária requerida pelo concepcionista. O método hedônico de eliminar a memória, consumindo drogas compulsivamente, tem o efeito de deixar a pessoa tão desligada da realidade e tapada socialmente que é de se questionar se ainda faz sentido dizer que ela vive alguma personalidade de alguma maneira. Os próprios concepcionistas do filme não atingem esse grau absoluto de eliminação da memória. Isso fica vizível quando Liz, que fora para São Paulo passar um tempo aplicando suas farsas, resolve voltar à Brasília para se juntar novamente aos seus amigos concepcionistas, sentindo saudades de suas bagunças. Ora, saudades é algo que não cabe a um ser sem memória.
A despeito das falhas de argumento, "A Concepção" tem ao menos o mérito de colocar em destaque uma questão existencial que qualquer ser humano já deparou ou irá deparar um dia: a angústia e o desespero de ser quem é. Difícil imaginar uma pessoa que, em algum momento da sua vida, não tenha sentido um desespero enorme por se sentir preso à pessoa que é, às expectativas que são criadas em seu entorno, à impossibilidade de se mover em alternativas de vida. Esse tipo de angústia já havia sido identificado e explorado por Kierkegaard em "O Desespero Humano". No entanto, lá ele aponta a oscilação constante do Eu na sua relação consigo mesmo entre dois desesperos antagônicos, o primeiro é aquele já discutido e o segundo é justamente o seu oposto: a angústia de não ser quem é, o desespero em se ver forçado a se refugiar de si mesmo. Exemplo desse segundo tipo de desespero obtive pelo efeito catártico do próprio filme. Ao ver cenas de hedonismo exagerado e a tentativa de eliminar a memória, senti quase angustiado a necessidade de ser quem sou, de não perder as minhas memórias, de ser capaz de sentir saudades das pessoas que me foram caras, de não me afastar de mim mesmo num frenesi hedônico que não costure nenhum rumo a minha existência. Esse segundo tipo de desespero, tão comum quanto o primeiro, não é mencionado no filme, o que é até de se esperar, posto que ele enfraquece a tese concepcionista, ao nos fazer constatar que as pessoas não estão assim tão "doentes de si mesmas". Há sim uma oscilação existencial, em virtude das várias situações que vivemos, positivas e negativas, entre querer ser desesperadamente quem é e querer ser desesperadamente outro. Por fim, a própria solução hedônica para o primeiro tipo de angústia e desespero não parece de fato uma solução, mas uma fuga. Esquecer-se de si pela perda de memória e submergir no prazer fugaz e efêmero tem mais a cara de um encobrimento do problema que uma solução para ele. Põe-se o eu para dormir, assim a angústia não é vivenciada. Mas pode-se questionar se um efrentamento consciente do desespero não poderia resultar numa transformação positiva de si mesmo.
terça-feira, outubro 09, 2007
Sunga
Então que eu preciso comprar umas...chego na loja e a vendedora me pergunta o que eu quero e eu digo, você tem...não sai, travado, mudo. A vendedora com aquela cara de "não estou entendendo". Eu as vejo logo adiante e aponto. "Ah, cuecas, qual tamanho?". Gente, não dá para falar essa palavra em público sem pudor. Eu não consigo. Ela é suja, é feia, simplesmente deselegante. Nunca notaram o óbvio? CU - ECA. Ficou mais claro assim com essa divisão silábica? Ainda não? ECA - CU, perceberam? Então que eu sempre me refiro a essa vestimenta íntima por "sunga", mesmo sabendo que sungas são aquelas coisas que usamos na praia.
segunda-feira, outubro 08, 2007
Irrealidade
Quando o sonho é assim suave e delicado, sedutor e envolvente, próximo do idealizado, leva um bom tempo para perceber a chuva ácida que cai sobre o corpo, criando bolhas na pele, feridas que ardem. O sonho é tão desejado que ficamos surdos para o coro de vozes que denunciam a sua irrealidade. No mundo ideal, a nossa capacidade de sonhar não é tão ilimitada.
quarta-feira, outubro 03, 2007
Onírico
Sonhei que tinha um blog perdido, não mais visitado, atualizado e cujo endereço eu havia me esquecido. Eu o havia criado logo quando cheguei em Curitiba, mas depois fui escrevendo mais em outros e o deixei de lado, até esquecê-lo por completo. O pior de tudo foi, depois de acordar, continuar com a forte impressão de que ele realmente existiu. Já tentei olhar em várias contas minhas e nada, nenhum rastro, nenhuma pista ou sinal, o que evidencia o meu engano. Mas a impressão forte, vívida, imponente, não se desfaz. É como se eu realmente me lembrasse dele. E agora eu não sei se estou realmente me lembrando ou se um sonho entrou no canal errado e se solidificou na minha mente em forma de lembrança. Para avacalhar geral, no sonho, me lembrei que havia escrito coisas importantes nesse blog, mas ao acordar, só a parte de que eram importantes ainda estavam na memória, o conteúdo dos escritos não veio para a vigília comigo. Agora estou aqui completamente tomado pela curiosidade de saber o que eu supostamente um dia escrevi...É a idade.
segunda-feira, outubro 01, 2007
Se ao menos...
Bilhete confessionário achado na rua:
Se ao menos eu pudesse distinguir a compaixão da paixão em teus olhos, eu teria um guia de ação. Mas até o seu abraço é nevoeiro, não deixa pistas no seu aperto incógnito. Invisto desarmado, quase nú no sentimento, ainda que mudo, e você se defende terna, porém distante, sem nunca ousar tatear a minha face. E, no entanto, você me procura. Doces olhos teus que pousavam em mim entre uma colherada e outra, eram de ternura ou admiração? Espero com a paciência de um Buda ou lanço-me na loucura de dizer o que com muito esforço tenho mantido calado no meu corpo? Não queria assustá-la, de modo algum, mas também não sei por quanto tempo conseguirei me domar.
Se ao menos eu pudesse distinguir a compaixão da paixão em teus olhos, eu teria um guia de ação. Mas até o seu abraço é nevoeiro, não deixa pistas no seu aperto incógnito. Invisto desarmado, quase nú no sentimento, ainda que mudo, e você se defende terna, porém distante, sem nunca ousar tatear a minha face. E, no entanto, você me procura. Doces olhos teus que pousavam em mim entre uma colherada e outra, eram de ternura ou admiração? Espero com a paciência de um Buda ou lanço-me na loucura de dizer o que com muito esforço tenho mantido calado no meu corpo? Não queria assustá-la, de modo algum, mas também não sei por quanto tempo conseguirei me domar.
sábado, setembro 29, 2007
Sentido
A dor e o sofrimento são praticamente ubíquas na vida de todo ser humano. Ao longo de nossas vidas, nos encontraremos com eles várias vezes. Contudo, as atitudes podem variar. Algumas pessoas preferem simplesmente ignorar que a dor e o sofrimento existem. Logram êxito nesse intento lançando mão da diversão e do entretenimento e, em casos mais extremados, das drogas, que também não deixam de ser entretenimento. Não há fuga melhor da dor que lançar-se no prazer. São pessoas que acabam tendo um sorriso constante para a vida, agitadas e inquietas. Eu as considero otimistas falsos, pois elas sorriem para a vida não por um motivo positivo, mas pela ausência de motivos negativos. Outras pessoas pecam de maneira oposta, preferem aprofundar a dor e o sofrimento presentes, tomando-os como a totalidade de seus mundos. Elas exageram a dor que possuem e, às vezes, reconhecem mesmo aquelas que não têm. A ordem do dia é reclamar. Conseguir sobreviver, para essas pessoas, é tão digno de mérito quanto os feitos de Hércules. A vida é sem sentido e absurda, pois, como nos lembra o mito de Sísifo, não há qualquer razão para vivermos imersos eternamente na repetição tediosa e dilacerante da dor. Esses são os pessimistas. Entre uma atitude e outra, penso que há espaço para uma posição que poderíamos chamar de "otimismo verdadeiro" ou ainda "otimismo pessimista". Ele é verdadeiro, pois engendra um motivo positivo para sorrir diante da vida, mas ele também é pessimista, pois não nega os motivos negativos, isto é, não ignora a dor e o sofrimento existentes. Óbvio que esse motivo positivo não pode ser o prazer presente, usado pelos otimistas falsos, pois ele é leve e efêmero demais para contrabalancear a ubiquidade do sofrimento. Um sujeito que se refugia o tempo inteiro no prazer reconhece automaticamente que esse mesmo prazer, ao cessar, ao se esgotar, não lhe deixa nada que o permita suportar a dor. Por isso mesmo a lógica da fuga incessante. Como, então, é possível o otimismo verdadeiro? Ora, se um motivo positivo para sorrir diante da vida não se encontra no prazer, no nível da sensação, ele deve estar no nível do sentido. Você precisa encontrar justamente aquilo que os pessimistas afirmam a vida não ter: um sentido. O sentido, se você o tem, é algo que lhe permite sorrir para a vida mesmo diante da dor, mesmo reconhecendo a dor. Ele lhe dá forças para enfrentá-la. Não precisa fugir. O único problema é que ele não se acha assim tão facilmente. Mas as possibilidades são inúmeras. Schopenhauer fala do contato com o absoluto por meio da intuição, Tolstoi, da experiência religiosa, o toque divino sobre o ser. Ambas têm em comum a trascendência, a idéia de que algo além do humano pudesse lhe dar um sentido, uma direção.
Eu sou mais modesto. Não nego a possibilidade de uma experiência religiosa ou de um contato intuitivo com o absoluto, apesar de considerá-los muito improváveis, mas acredito que há possibilidades mais mundanas para o sentido da vida e bem mais prováveis. Penso em especial na experiência do amor, que é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente. O amor é completamente imanente, emana de nós mesmos, é humano, nasce da relação do eu com o outro, mas, ao mesmo tempo, transcende o eu em unidades maiores, ceifa o isolamento existencial, cria uma interseção onde só parecia haver silêncio, vazio ou incompreensão. É verdade que um amor talvez não lhe dê um sentido para toda a vida, mas ele lhe dá um sentido suficientemente forte para suportar o sofrimento mesmo quando cessa o prazer presente. Os amores particulares acabam e, com eles, a força do sentido que engendraram, mas o amor em si enquanto direção é um sentido perfeitamente mundano e realista para um otimista verdadeiro.
Eu sou um otimista verdadeiro com esporádicas e efêmeras recaídas pessimistas. Eu também não tenho nada contra o otimismo falso e me valho das suas estratégias vez ou outra. Só acho que a busca incessante pelo prazer efêmero entedia, além de pesar no bolso.
Eu sou mais modesto. Não nego a possibilidade de uma experiência religiosa ou de um contato intuitivo com o absoluto, apesar de considerá-los muito improváveis, mas acredito que há possibilidades mais mundanas para o sentido da vida e bem mais prováveis. Penso em especial na experiência do amor, que é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente. O amor é completamente imanente, emana de nós mesmos, é humano, nasce da relação do eu com o outro, mas, ao mesmo tempo, transcende o eu em unidades maiores, ceifa o isolamento existencial, cria uma interseção onde só parecia haver silêncio, vazio ou incompreensão. É verdade que um amor talvez não lhe dê um sentido para toda a vida, mas ele lhe dá um sentido suficientemente forte para suportar o sofrimento mesmo quando cessa o prazer presente. Os amores particulares acabam e, com eles, a força do sentido que engendraram, mas o amor em si enquanto direção é um sentido perfeitamente mundano e realista para um otimista verdadeiro.
Eu sou um otimista verdadeiro com esporádicas e efêmeras recaídas pessimistas. Eu também não tenho nada contra o otimismo falso e me valho das suas estratégias vez ou outra. Só acho que a busca incessante pelo prazer efêmero entedia, além de pesar no bolso.
sexta-feira, setembro 28, 2007
Des-umanidade
domingo, setembro 23, 2007
30
10, 20, 30, idades que marcam, para nós que raramente nos tornamos centenários. Se vivêssemos 2000 mil anos, a passagem dos 9 para os 10 seria tão marcante quanto é atualmente a passagem de 23 para 24, por exemplo. Mas, enfim, na minha perspectiva decenária, lembro que ao fazer dez anos contava com a alegria de ter recebido um novo irmão, temporão. Deixei de ser o caçula, mas isso sinceramente não me incomodou. Ao completar 10 anos, estava mais concentrado nos meus planos de ser algum tipo de cientista, ainda não sabia que tipo, se é que nessa época eu tinha clareza dos tipos em que eles poderiam se dividir. Acho que não. Tinha apenas uma vaga imagem de um sujeito que faz invenções mirabolantes e era o que eu queria fazer. Foi nessa época que comecei a me interessar por ficção científica, inicialmente manifestada na minha seleção literária. Minha independência já era visível. Ia nas livrarias sozinho, sim, essa era a vantagem de passar a infância numa pequena cidade, e comprava os livros do meu desejo, sem qualquer intervenção materna ou paterna. Mas a melhor parte vinha depois. Eu caçava o endereço das editoras e enviava cartas pedindo catálogos dos seus livros. A Ediouro era a única que tinha um programa de vendas por reembolso postal e durante um tempo tive que me limitar a ela. Pelo menos ela tinha, na época, umas coleções até interessantes, dados os meus gostos. Lembro bem até hoje da coleção Enrola e Desenrola. Geralmente histórias de ficção científica em um formato pré-hipertexto. A cada duas páginas, você escolhia um desenrolar possível da história, entre algumas opções que lhe eram dadas, de modo que o mesmo livro acabava contento entre 15 e 20 desenrolos possíveis. Toda essa transação, pedir o catálogo, fazer o próprio pedido e, em seguida, ir buscar no correio o pacote quando recebia o aviso de chegada, era feito por mim mesmo sem nem que os meus pais às vezes soubessem. Recebia uma mesadinha, então não havia necessidade de pedir dinheiro para o pagamento. Com que alegria eu não ia ao correio pegar os meus livros! E assim os meus 10 anos foram marcados por essa busca frenética pela ficção, pelo imaginário de ser um cientista.
Os 20, posso dizer, vieram coroar um certo otimismo com a vida, brando é verdade, mas suficiente para ao menos solapar a acumulada depressão dos anos anteriores, nascida com a adolescência e intensificada até então. O contato com a filosofia, dos 16 aos 19, embora tenha consumido minha atenção, meu tempo e proporcionado intensas fruições intelectuais, acentuava também as minhas dúvidas. Minha relação com a filosofia sempre foi paradoxal, de amor e ódio. E o amor...o amor, que até então havia passado ao largo da minha vida, apenas como idealização, imaginação e desejo não realizado, desabrochou nessa passagem dos 19 para os 20. Descobri em mim a intempestividade, a loucura, a adorável sensação de seguir a desrazão em prol de uma emoção. Ter sido assim tocado pelo amor de uma maneira tão profunda numa época me que o meu desespero existencial era máximo teve o efeito de me abrir uma nova perspectiva diante da vida.
Até então, a realização profissional, o desejo de fazer alguma contribuição relevante para a filosofia me apareciam como as únicas finalidades mais profundas legítimas. Contudo, na primavera dos meus 20, percebi que o relacionamento com o outro tinha uma importância tão fundamental ou ainda maior que a realização profissional, que por ela me humanizava e me descobria enquanto ser e existência, percebia meus limites, defeitos e os ultrapassava. Desde então a busca pela vivência de um relacionamento mais profundo e significativo passou a fazer parte da minha agenda, do meu horizonte.
Hoje completo 30. Ou melhor, completei às 7:05 da manhã, segundo a minha certidão de nascimento. Mas como disse uma amiga esses dias, não dá para confiar nesses registros e um número assim redondo como o 5 levanta suspeitas. Concordo. E vou mais longe. Acho que o nascimento deveria ser o desabrochar da consciência, provavelmente ainda em estado fetal. Contudo, quem sou eu para criar dificuldades epistêmicas ainda mais fundas. Se já é difícil precisar a hora que você veio ao mundo enquanto corpo, destacando-se da mãe, quanto mais precisar o emergir da sua consciência. Enfim, enfim, os 30 chegaram e ainda não sei o que marcam. Talvez a consolidação das mudanças mais bruscas dos últimos anos. Mudança de cidade, de profissão. Meus compromissos burocráticos com a filosofia foram definitivamente saldados, com a defesa do doutorado esse ano e, ao menos por enquanto, não tenho maiores planos para ela que a diversão que me proporciona ao final do dia antes de dormir, junto com os livros de literatura. Estou feliz com as escolhas que fiz, por mais que, pelo lado financeiro, isso tenha atrasado um pouco os resultados que se espera de um burguesinho da classe média. Mas se tem algo que marca esses meus 30 é a perspectiva de não ter lá grandes perspectivas, de não tentar submeter e forçar todo o meu futuro
a um plano que tenho hoje, de saber aproveitar bem as possibilidades que tenho abertas agora para mim. Tenho sim algumas direções, alguns planos, mas que podem ser mudados conforme o vento que bater em minha porta. Não quero decidir apenas para ser consistente com o passado, não preciso olhar para trás e sentir uma linearidade. O sentido, se há algum, está na própria decisão presente, limitada que seja. E o amor...continua sendo fundamental, cada vez mais fundamental.
Os 20, posso dizer, vieram coroar um certo otimismo com a vida, brando é verdade, mas suficiente para ao menos solapar a acumulada depressão dos anos anteriores, nascida com a adolescência e intensificada até então. O contato com a filosofia, dos 16 aos 19, embora tenha consumido minha atenção, meu tempo e proporcionado intensas fruições intelectuais, acentuava também as minhas dúvidas. Minha relação com a filosofia sempre foi paradoxal, de amor e ódio. E o amor...o amor, que até então havia passado ao largo da minha vida, apenas como idealização, imaginação e desejo não realizado, desabrochou nessa passagem dos 19 para os 20. Descobri em mim a intempestividade, a loucura, a adorável sensação de seguir a desrazão em prol de uma emoção. Ter sido assim tocado pelo amor de uma maneira tão profunda numa época me que o meu desespero existencial era máximo teve o efeito de me abrir uma nova perspectiva diante da vida.
Até então, a realização profissional, o desejo de fazer alguma contribuição relevante para a filosofia me apareciam como as únicas finalidades mais profundas legítimas. Contudo, na primavera dos meus 20, percebi que o relacionamento com o outro tinha uma importância tão fundamental ou ainda maior que a realização profissional, que por ela me humanizava e me descobria enquanto ser e existência, percebia meus limites, defeitos e os ultrapassava. Desde então a busca pela vivência de um relacionamento mais profundo e significativo passou a fazer parte da minha agenda, do meu horizonte.
Hoje completo 30. Ou melhor, completei às 7:05 da manhã, segundo a minha certidão de nascimento. Mas como disse uma amiga esses dias, não dá para confiar nesses registros e um número assim redondo como o 5 levanta suspeitas. Concordo. E vou mais longe. Acho que o nascimento deveria ser o desabrochar da consciência, provavelmente ainda em estado fetal. Contudo, quem sou eu para criar dificuldades epistêmicas ainda mais fundas. Se já é difícil precisar a hora que você veio ao mundo enquanto corpo, destacando-se da mãe, quanto mais precisar o emergir da sua consciência. Enfim, enfim, os 30 chegaram e ainda não sei o que marcam. Talvez a consolidação das mudanças mais bruscas dos últimos anos. Mudança de cidade, de profissão. Meus compromissos burocráticos com a filosofia foram definitivamente saldados, com a defesa do doutorado esse ano e, ao menos por enquanto, não tenho maiores planos para ela que a diversão que me proporciona ao final do dia antes de dormir, junto com os livros de literatura. Estou feliz com as escolhas que fiz, por mais que, pelo lado financeiro, isso tenha atrasado um pouco os resultados que se espera de um burguesinho da classe média. Mas se tem algo que marca esses meus 30 é a perspectiva de não ter lá grandes perspectivas, de não tentar submeter e forçar todo o meu futuro
a um plano que tenho hoje, de saber aproveitar bem as possibilidades que tenho abertas agora para mim. Tenho sim algumas direções, alguns planos, mas que podem ser mudados conforme o vento que bater em minha porta. Não quero decidir apenas para ser consistente com o passado, não preciso olhar para trás e sentir uma linearidade. O sentido, se há algum, está na própria decisão presente, limitada que seja. E o amor...continua sendo fundamental, cada vez mais fundamental.
quinta-feira, setembro 20, 2007
Atividade
Nunca entendi muito bem as pessoas que me diziam não sentir prazer por nenhum tipo de atividade. "Nem bordado, ler romances?", perguntava eu. Recebia uns "não" tão decisivos que a minha compreensão ficava muda. Alguns diziam que, se gostavam de algo, era de não fazer nada. Eu também gosto de ócio. Quem não gosta? Mas essas mesmas pessoas reclamavam de tédio e angústia durante o seu ócio sofrido. Aí eu já não entendo mais nada. Tédio eu sinto quando ou estou fazendo algo que não gosto, ao qual estou obrigado, ou se o ócio se prolonga demasiadamente sem envolver nada criativo. No primeiro caso, quero que passe logo a atividade indesejada, no segundo, quero que uma atividade apareça logo para me ocupar. Causas bem diversas, mas ambas têm por efeito fazer com que a minha experiência tenha por conteúdo a própria passagem do tempo, a qual se torna, então, um martírio que eu padeço. Sinto o próprio tempo passar ao invés de passar através dele. A minha solução para isso é buscar atividades que me coloquem desafios e obstáculos, que tragam alguma porção de enigma, instigando, enfim, a minha curiosidade e que catalizem a minha atenção por completo. E o principal: que eu sinta algum prazer, alguma fruição em enfrentar as dificuldades dessa atividade. Quando encontro o par prazer e obstáculo cercando juntos uma atividade e me envolvo com ela, esqueço-me de mim, do tempo, do tédio e mesmo da angústia, que, aliás, muito raramente se apossa de mim. Simplesmente sumo, desapareço, entro em alfa, em comunhão com a atividade.
E a chuva caindo cada vez mais forte, derrubando meus olhos, que quase se fecham diante do computador. Pelo menos vem entrando um vento fresco. Mas antes que me esqueça do propósito inicial, não queria dizer que não entendo as pessoas que não buscam atividades para matar o seu tédio, não, não é por isso que não as entendo. O que não compreendo é a pura e simples ausência de prazer, de gosto, de querência. O que poderia ter atrofiado a sensibilidade de uma pessoa a ponto de ela não sentir prazer por nada?
E a chuva caindo cada vez mais forte, derrubando meus olhos, que quase se fecham diante do computador. Pelo menos vem entrando um vento fresco. Mas antes que me esqueça do propósito inicial, não queria dizer que não entendo as pessoas que não buscam atividades para matar o seu tédio, não, não é por isso que não as entendo. O que não compreendo é a pura e simples ausência de prazer, de gosto, de querência. O que poderia ter atrofiado a sensibilidade de uma pessoa a ponto de ela não sentir prazer por nada?
domingo, setembro 16, 2007
Sinaleiros
Eu realmente adoro essa cidade, suas qualidades superam em muito as de outras cidades que já habitei e justamente por lhe querer bem, noto seus defeitos com a esperança de que algum dia eles sejam podados ou atenuados. Então, eu gostaria de falar um pouco da disposição dos semáforos nas ruas de Curitiba. A situação é a seguinte. Imagine que você venha de São Paulo, Belo Horizonte, Brasília ou Rio de Janeiro, aporte em uma rua curitibana e vá caminhando pela sua calçada até a próxima esquina. Na sua frente, uma rua transversal que, na situação de pedestre, se apresenta como um obstáculo a ser ultrapassado, no caso, atravessado. Um cidadão das cidades supracitadas, de imediato, olharia para frente em busca de um sinal para pedestre. Primeira frustração. Eles praticamente não existem aqui. Objeto em extinção. Tudo bem, pensa o cidadão. E continua, posso extrair a informação de que necessito do semáforo (sinaleiro para os curitibanos) para os carros. Então ele vai olhar para a sua esquerda ou direita, conforme a esquina da quadra em que estiver, em busca do semáforo. Ele vai ver o semáforo, vai coçar a cabeça e soltar a sua indignação e incompreensão, como eu fiz logo que aqui cheguei: "como é que esses gênios da urbanização querem que eu descubra se posso atravessar ou não a rua se o semáforo está de costas para mim?". Sim, pasmem. O cidadão está exatamente na linha da faixa de pedestre. O semáforo, ao invés de estar bem no final da quadra, de modo que o pedestre pudesse vê-lo junto com os motoristas, não, está recuado, antes da faixa e, portanto, de costas para ele. Talvez os gênios da urbanização tenham pressuposto a correção moral do condutor curitibano de modo que qualquer pedestre pudesse inferir, com absoluta certeza e sem receios, o sinal vermelho ao ver os carros parados e o sinal verde ao ver os carros em movimento. Tenha a santa paciência!
quarta-feira, setembro 12, 2007
Diferenças II
- Sim, não sou mesmo como tu, sempre de cara feliz. Resplandeço minha dúvida no existir. No entanto, a mesma dúvida que me joga no chão também me eleva. Sou, por assim dizer, bipolar.
- Não esperava outra coisa de ti, meu caro, teu rosto sempre interrogado, louco. Não me espanta que não obtenhas com as mulheres o sucesso que eu obtenho com os homens. A minha crista de convicção seduz, a tua sombra de incerteza repele.
- Hoje estou mais ferino, não me pisarás como no outro dia. Teu sucesso com os homens não se deve tanto assim a ti, mas à tolice deles. Ausentes de vontade, encontraram em ti o guia de suas existências. Eu, ao contrário, não quero a companhia de tolos insensíveis ao pensar, mas sim daqueles que se sentem atraídos pela curiosidade, no seio da qual a dúvida se aloja.
- Tu se refugias em um elitismo que jamais poderá bater de frente com as legiões que trago debaixo dos meus braços.
- De frente jamais, minha tática é a da guerrilha, ataco pelas bordas. Talvez sim, talvez não, teus soldados aos poucos cairão atrás de outras ainda mais cegas que tu. O líder sempre está só entre os seus partidários.
- Tantos a me rodear e tens a coragem de dizer que estou sozinha?
- Tanta convicção para tão pouca percepção. Não vês a fraqueza do elo que os liga a você. Sugam a tua certeza até esgotá-la ou até depararem com outra mais cristalina, sedutora. Vão de porto em porto, ávidos pela mentira maior. Outra como ti a contará, cedo ou tarde. Que verdade já não foi traída?
- Não esperava outra coisa de ti, meu caro, teu rosto sempre interrogado, louco. Não me espanta que não obtenhas com as mulheres o sucesso que eu obtenho com os homens. A minha crista de convicção seduz, a tua sombra de incerteza repele.
- Hoje estou mais ferino, não me pisarás como no outro dia. Teu sucesso com os homens não se deve tanto assim a ti, mas à tolice deles. Ausentes de vontade, encontraram em ti o guia de suas existências. Eu, ao contrário, não quero a companhia de tolos insensíveis ao pensar, mas sim daqueles que se sentem atraídos pela curiosidade, no seio da qual a dúvida se aloja.
- Tu se refugias em um elitismo que jamais poderá bater de frente com as legiões que trago debaixo dos meus braços.
- De frente jamais, minha tática é a da guerrilha, ataco pelas bordas. Talvez sim, talvez não, teus soldados aos poucos cairão atrás de outras ainda mais cegas que tu. O líder sempre está só entre os seus partidários.
- Tantos a me rodear e tens a coragem de dizer que estou sozinha?
- Tanta convicção para tão pouca percepção. Não vês a fraqueza do elo que os liga a você. Sugam a tua certeza até esgotá-la ou até depararem com outra mais cristalina, sedutora. Vão de porto em porto, ávidos pela mentira maior. Outra como ti a contará, cedo ou tarde. Que verdade já não foi traída?
domingo, setembro 09, 2007
Enfadonho
Estudo psicológico mostra que se você repete a sua opinião várias vezes, em um grupo, as chances de que esta opinião seja percebida pelos outros membros como representativa do grupo são significativas. Ou seja, o enfadonho convence. Mas sinceramente eu prefiro um baixo desempenho no convencimento de manada e imaginar que a platéia que eu realmente espero ser sensível ao que digo seja suficientemente esperta e atenta para captar e absorver as minhas idéias de primeira e as assimile por reflexão e não por preguiça.
terça-feira, setembro 04, 2007
Inefável
O clichê do inefável acontece quando você desculpa a sua falta de palavras com o transbordar dos sentimentos. Não há apaixonado que não o tenha utilizado pelo menos uma vez na vida. Mas há também aqueles poucos afetados que usam o clichê para ludibriar, afirmar um excesso de sentimento que estão muito longe de sentir. Acho muito chinfrim o apaixonado que se vale desse clichê. Prefiro o apaixonado extasiado, que abre as porteiras da imaginação e deixa fluir seus sentimentos em metáforas. Boas ou más, floreadas ou não, bem ou mal escritas, é verdade que elas não transmitirão exatamente o que ele sente, não servirão de pintura realista do quadro que ele contempla em seu peito, mas serão capazes de causar no outro alguma reação, possivelmente o aguçamento da receptividade. A minha paixão nunca será a tua, nunca passará de mim para ti, mas a minha paixão pode despertar a tua.
quinta-feira, agosto 30, 2007
Diferenças
- Eu tenho fé, eu faço, eu arrisco.
- Eu tenho dúvida, paraliso-me, espero.
- Olha só o tamanho do meu EU, gigante, me imponho, grito.
- Escondo-me, falo baixo, sou corcunda.
- Transpiro a verdade, mesmo se não a tiver.
- Vomito a insegurança e sempre a tenho.
- Tu és um verme, tentas se infiltrar e corroer as pilastras da minha fortaleza.
- Teu peso me esmaga, não tens piedade, és implacável.
- A dúvida é um erro, sempre reclamona.
- Você acha?
- Tenho certeza.
- Eu não paro de pensar, percorro todos os caminhos sem sair do lugar.
- Eu percorro um só e chego lá, nunca paro, não preciso pensar, eu simplesmente vou.
- Lá onde?
- Lá, tu não sentes, não podes entender, não vês, é cego.
- Sou infeliz, sou casmurro, sou Bentinho.
- Sou alegre, sinto nas veias a verdade que me alimenta, sou forte e expressiva, sempre a passear, sou Capitu.
- És uma dissimulada, engana a todos com essa pele macia, mas tua carne por dentro é podre.
- Vives no rancor, na inveja, por lhe faltar o que tenho, de graça, sem correr atrás.
- Que tens, o que é? Conte-me!
- Eu tenho o que eu sou, o sentimento da verdade, da qual ela própria emana, Eu sou a Verdade.
- Sentimento...verdade...Eu não sei o que eu sou.
- Você não é!
- Talvez.
- Eu tenho dúvida, paraliso-me, espero.
- Olha só o tamanho do meu EU, gigante, me imponho, grito.
- Escondo-me, falo baixo, sou corcunda.
- Transpiro a verdade, mesmo se não a tiver.
- Vomito a insegurança e sempre a tenho.
- Tu és um verme, tentas se infiltrar e corroer as pilastras da minha fortaleza.
- Teu peso me esmaga, não tens piedade, és implacável.
- A dúvida é um erro, sempre reclamona.
- Você acha?
- Tenho certeza.
- Eu não paro de pensar, percorro todos os caminhos sem sair do lugar.
- Eu percorro um só e chego lá, nunca paro, não preciso pensar, eu simplesmente vou.
- Lá onde?
- Lá, tu não sentes, não podes entender, não vês, é cego.
- Sou infeliz, sou casmurro, sou Bentinho.
- Sou alegre, sinto nas veias a verdade que me alimenta, sou forte e expressiva, sempre a passear, sou Capitu.
- És uma dissimulada, engana a todos com essa pele macia, mas tua carne por dentro é podre.
- Vives no rancor, na inveja, por lhe faltar o que tenho, de graça, sem correr atrás.
- Que tens, o que é? Conte-me!
- Eu tenho o que eu sou, o sentimento da verdade, da qual ela própria emana, Eu sou a Verdade.
- Sentimento...verdade...Eu não sei o que eu sou.
- Você não é!
- Talvez.
segunda-feira, agosto 27, 2007
Baratas
Psiquiatra explica: "No caso da fobia de baratas, o interessante é que incide mais nas mulheres do que nos homens, na proporção de 8, 9 mulheres para cada homem". Concluo, então, que sou um homem raro. Ele narra: "Tive uma paciente com fobia de baratas que trabalhava com os pés em cima do cesto de papéis com medo de que uma barata subisse por suas pernas e revistava os ambientes à procura de orifícios por onde os insetos pudessem passar". Não cheguei ainda a esse ponto, mas houve uma época em que eu não me deitava para dormir sem verificar se havia alguma embaixo da cama e nos cantos do quarto. Hoje não mais, já que, desde que cheguei aqui, nenhuma resolveu aparecer em meu lar. E que não apareçam, viu, vocês não são bem-vindas!
sábado, agosto 25, 2007
Ego
Id. - Ego, Ego, Egoooooo!
Ego. - Pare de gritar, não sou surdo!
Id. - Quero fazer sexo com um pé, agora!
Ego. - Agora não dá.
Id. - Por que não dá? Quero e quero, já disse.
Ego. - Serve o teu pé?
Id. - Óbvio que não!
Ego. - Sem chances, então; no momento não há nenhum outro pé disponível, nenhum te desejando.
Id. - Não quero saber, se vire!
Ego. - Já disse, não há como.
Id. Pegue um aí à força.
Ego. - Há conseqüências...
Id. E daí? É você quem vai sofrê-las mesmo...
Ego. - E por que eu iria me prejudicar?
Id. Humm...tá vendo esse chicote aqui na minha mão esquerda? Com ele eu estalo a angústia na suas costas. Com esse outro, na direita, eu fagulho a frustração em você. Preciso dizer o que vou fazer?
Ego. - Não, mimado como é, não duvido.
Id. - Vamos, mova-se. O tempo está passando. Pé, pé, pé, quero um pé, agoraaaaaa!
(murros na porta, "Silêncio, Silêncio!", ouve-se lá de fora.)
Ego. - Ai, estou perdido!
(a porta se abre, Superego entra, irritado).
Supergo. - Não se pode mais dormir por aqui? Que baderna é essa, Ego?
Ego. - É o Id que não me deixa em paz, ele agora quer...
Supergo. - Não quero saber. A responsabilidade de velar o meu sono é tua. Nem isso você consegue fazer, nem isso! Um imprestável. Não quero ouvir mais um pio, meu sono é sagrado, você sabe. É a última vez que aviso.
(Superego sai, Id ri, Ego se sente pesado, culpado).
Ego. - Você acha graça, né?
Id. - Ainda nem comecei a me saciar. Se não tem pé, tem sadismo, hahahaha.
(Id chicoteia Ego com fervorosas chicotadas de angústia, contorcendo-se de prazer em risadas diabólicas. O Ego...bem, o Ego aguenta.).
Ego. - Pare de gritar, não sou surdo!
Id. - Quero fazer sexo com um pé, agora!
Ego. - Agora não dá.
Id. - Por que não dá? Quero e quero, já disse.
Ego. - Serve o teu pé?
Id. - Óbvio que não!
Ego. - Sem chances, então; no momento não há nenhum outro pé disponível, nenhum te desejando.
Id. - Não quero saber, se vire!
Ego. - Já disse, não há como.
Id. Pegue um aí à força.
Ego. - Há conseqüências...
Id. E daí? É você quem vai sofrê-las mesmo...
Ego. - E por que eu iria me prejudicar?
Id. Humm...tá vendo esse chicote aqui na minha mão esquerda? Com ele eu estalo a angústia na suas costas. Com esse outro, na direita, eu fagulho a frustração em você. Preciso dizer o que vou fazer?
Ego. - Não, mimado como é, não duvido.
Id. - Vamos, mova-se. O tempo está passando. Pé, pé, pé, quero um pé, agoraaaaaa!
(murros na porta, "Silêncio, Silêncio!", ouve-se lá de fora.)
Ego. - Ai, estou perdido!
(a porta se abre, Superego entra, irritado).
Supergo. - Não se pode mais dormir por aqui? Que baderna é essa, Ego?
Ego. - É o Id que não me deixa em paz, ele agora quer...
Supergo. - Não quero saber. A responsabilidade de velar o meu sono é tua. Nem isso você consegue fazer, nem isso! Um imprestável. Não quero ouvir mais um pio, meu sono é sagrado, você sabe. É a última vez que aviso.
(Superego sai, Id ri, Ego se sente pesado, culpado).
Ego. - Você acha graça, né?
Id. - Ainda nem comecei a me saciar. Se não tem pé, tem sadismo, hahahaha.
(Id chicoteia Ego com fervorosas chicotadas de angústia, contorcendo-se de prazer em risadas diabólicas. O Ego...bem, o Ego aguenta.).
sexta-feira, agosto 24, 2007
Paz
Paz insonora, entrando devagar, aos poucos, na morada do ser. Vá entrando, amiga, sente-se do meu lado, não se acanhe, passei um café pra nóis tomá com pão de queijo quentin. Desta vez você pousa aqui, não aceito negativas. Temos muito o que NÃO nos falar, olhares a trocar, sorrisos a dar. Para falar a verdade, uma noite só é pouca, quero-a comigo no eterno, dormindo ao meu lado. Sou leve, uma pluma, quando acordo com a minha mão sobre tua. Ah, querida, contigo presente, meu encontro comigo mesmo é sempre sereno. Vamos passear, vamos errar, quero que você me leve para conhecer o mundo. A porta está aberta, vamos!
segunda-feira, agosto 20, 2007
Arrogância
Dou de ombros para o seu achar-me louco. Isso só mostra que a sua capacidade de compreender é mais limitada que a minha capacidade de ser. Nunca acreditei na existência da loucura. Eu acredito em deficiências e distúrbios mentais que podem ser remontados a deficiências cerebrais. Loucura em cérebro são? Conte outra piada, use outro subterfúgio para escamotear a sua ignorância. Ah, você não quer me compreender. Oh, mas eu também não faço questão de ser compreendido por você. Não mesmo, eu ficaria completamente disforme nessas caixas mal feitas que você usa para apreender o ser do ente. Quer que eu lhe traga um espelho? Venha cá, veja-se. Passaste a vida numa lama de conceitos e crenças, sem nunca lhes dispensar nenhuma atenção organizadora, nenhum esforço higiênico para eliminar os excrementos herdados e amontoados no seu habitat. Teus pais rezavam e você gritava "amém!" mecanicamente, condicionada; até um robô mais moderninho, com fuzzy logic, entende?, seria capaz de emular um livre-arbítrio mais decente. Tua linguagem é um caos, tua rede de conceitos é vazada, não pega nem robalo, quanto mais a fineza do meu ser. Veja bem, veja bem. Deixe-me lhe explicar uma coisinha, básica até. A compreensão, a interpretação, o entendimento, a hermenêutica são completamente dependentes da arte de distinguir. Isso mesmo, a compreensão é um ofício artesanal, demanda um olhar atento e fino, uma disposição sobrehumana para rever cada grão de areia que lhe passou nas mãos, procurando erros, reclassificando peças, enfim, ela demanda um esforço e uma dedicação que só uma mente com excesso de vontade é capaz de levar adiante. Definitivamente, não. Não é com essa lama que você usa para construir castelos infantis que você vai compreender um ser humano, não mesmo. Por favor, não tente me tocar com a sua apreensão.
E ela sabiamente partiu, ao intuir, bem de longe, sem tocá-lo, o rancor do seu esperneio patético, deixando-o só, na companhia do seu amor-próprio.
E ela sabiamente partiu, ao intuir, bem de longe, sem tocá-lo, o rancor do seu esperneio patético, deixando-o só, na companhia do seu amor-próprio.
sexta-feira, agosto 17, 2007
Contradições
Sobre a mesa jaz a garrafa de vinho barato, que ele, despreocupado, bebe no gargalo. No quarto, uma única e fraca luz, que lhe exige esforço durante a leitura. Mas agora ele não lê. Está entediado, está sufocado com as contradições humanas. Ele sabe que as tem também, aos montes, mas pensa que as dele são mais compreensíveis ou, diversamente, são tão profundas que nem faria sentido lhe apontar na cara a tensão. Ele bebe rápido, quer se embriagar. Quer esquecer, quer transformar sua dor em raiva, contradizendo sua fala, seu discurso, pois sim, ontem ele acusava, diante da amiga, a covardia hodierna sentimental, os exércitos humanos que se agarram ao próprio ego, ao EU, para não sentir. Deixam de amar para não sofrer. "Medrosos!", exasperava-se ele com a amiga. E agora ele bebe para anestesiar a sua própria dor. Medo? Nem tanto, mas não quer enfrentá-la de frente, sente-se fraco para suportá-la, para vivê-la plenamente. Então ele bebe, só, na escuridão do seu quarto.
segunda-feira, agosto 13, 2007
Angústia
No dia em que senti, pela primeira vez, angústia real, sufocante, paralisante, não tive vontade de morrer, mas medo de morrer. Tive medo que o meu ateísmo se revelasse falso diante da morte. O ateu não difere em nada do cristão. Ambos são movidos pela fé, apenas que são opostas. Desejei, então, desesperadamente viver. Na finitude, a angústia é suportável.
sábado, agosto 11, 2007
Sósias
Vai aqui um relato real, um espanto. Pessoas que me conhecem apenas por foto me vêm em lugares em que não estive. Já não bastava o professor de grafos que todos os alunos do curso dizem ser eu, agora aparece uma multidão de sósias espalhada pela cidade. Em BH, eu também tinha um colega fisicamente gêmeo. Sou comum. Ponto. Sorte a minha nunca ter atrelado a minha identidade, se é que tenho uma, aos meus atributos físicos. Mas quer saber de uma coisa? O fato de "eu" estar espalhado pela Curitiba, entranhado nas suas ruas, é só mais uma confirmação do meu pertencimento ao novo lar que adotei. Já antes de vir, aqui estava. E nenhum deles tem o meu nome E é sinistro, ao mesmo tempo, e isso é o que importa ;).
sexta-feira, agosto 10, 2007
Magia
Estava andando pela rua, quando vi o menino do balão azul, ele tinha a pele manchada de sol, seca, cabelos loiros e escurecidos, caminhava olhando reto, sem expressão, como uma criança que quase nunca pôde se deixar levar pelo brincar, parecia carregar o balão por obrigação e não por diversão. Quando nos cruzamos, seu balão começou a subir e ele também, segurando sem esforço na corda, leve, planando. Foi quando o vi gargalhar e eu sorri, admirado com aquela mágica gravitacional. E ele foi subindo, subindo, suas gargalhadas cada vez mais inaudíveis, até que ele sumiu por trás de uma nuvem rosada em forma de elefante. Continuei andando com aquela imaginem na mente por alguns minutos, fazendo o meu caminho costumeiro. Observava as mesmas árvores e as mesmas casas amarelas de sempre, pois sim, em uma mesma quadra, os moradores engendraram uma admiração conjunta e pintaram suas moradas com o ouro da bandeira nacional. Passei por ali pensando nos ipês amarelos. Lembrei que na escola eu pintava os olhos humanos de amarelo, eu sempre quis ter olhos em um tom amarelo esbranquiçado, olhos que refletissem quase por completo, para servir melhor de espelho ao outro. Então cheguei em uma esquina e havia um sinal para pedestre, vermelho. Coloquei as mãos no bolsos e girei o corpo, olhando inclinado para cima, procurando o menino do balão azul. Vi dois falcões cruzando o céu e um deles segurava uma corda no bico. Ao olhar novamente para frente, franzi o rosto, tentando compreender o que se apresentava a minha frente. Parecia ser o Alfredo. Mas era o Alfredo! Mas como poderia ser ele? Ele estava no meio de duas mulheres ruivas e de mãos dadas a ambas. Pasmem. Ele me viu, mas era como se não tivesse me visto. Viu um rosto apenas, não o seu amigo de infância. O sinal abriu e ele começou a caminhar com as sua ruivas. Ele apertava a mão de uma, depois a de outra, cheirava o cabelo de uma, inclinava o rosto para se apoiar no ombro da outra e assim vinha, faceiro. Dei meus passos também, em sua direção, sempre tentando encontrar seus olhos, sua alma. Mas ele estava sintonizado em outra estação, estação do fogo. Passou por mim e foi-se. Quando terminei de atravessar a rua, voltei-me para trás para observá-los. Uma das ruivas era magrela, esquia, bem mais alta que Alfredo, mesmo se estivesse sem o salto alto, que usava com classe. A outra tinha ares de adolescente, mais carnuda, coxas bem brancas, exibidas pela sua saia rodada curta, quadril largo, andava rebolando, esbarrando em Alfredo e chamando a atenção dos homens que lhe cruzavam o caminho. Segui em frente, andei por mais quinze minutos até chegar em meu destino, o parque da grama estrelada. Sim, a grama do parque possui desenhos de estrelas em relevo. Eles deixam a grama crescer em alguns pontos e depois podam no formato estrelar. Gosto de uma em especial. Ela fica quase no topo de uma pequena elevação e suas pontas são levemente avermelhadas. Não sei se plantaram ali um tipo especial de grama ou se o sol que bate forte naquele ponto a queimou e deu aquele aspecto à estrela. Mas é ali que me sento, ao lado da minha Estrela da Tarde, onde posso ver o sol se pôr entre os prédios da cidade. Vi mais nuvens rosadas de elefante. Hoje seria mais belo que o habitual, pensei. Ainda faltava uma hora para o sol cruzar a linha do horizonte. Resolvi me deitar um pouco para descansar, usei a ponta da estrela como travesseiro. Estava gostoso assim, os fios de grama se moviam em um vai-vem carinhoso, alisando a minha nuca. Fechei os meus olhos, sentindo o calor do sol queimando meu rosto rosado por completo. Algo começou a tocar a mina mão, senti uma pressão leve seguindo suavemente as minhas linhas da vida. A textura era um pouco diferente da pele humana, mais macia e aveludada. Morno. Abri os olhos e não vi nada, embora continuasse sentindo o contato. Logo percebi que era a Venusiana que estava ali do meu lado, invisível na sua presença. Viera assistir o pôr do sol comigo. Voltei à escuridão para melhor conversar com ela, usando a linguagem das mãos, do toque. A Venusiana sempre entendeu a minha necessidade, e acredito que ela também a tenha, de conversar através do silêncio, de recusar o imperativo da palavra, de explorar a linguagem do corpo, do contexto, da situação; há muito o que falar pela alteridade. Uma vez ela me disse que as palavras são como caixas onde guardamos as coisas para esquecê-las. E é verdade. O substantivo concreto se desmancha na mente sob a forma de conceito. Chega um momento em que você fala "cadeira" e já não tem mais nenhuma cadeira particular em mente. Esqueceu-se dela ou delas. Triste. Então, pelas mãos, abrimos os nossos corpos e a intimidade pôde se compreender pelo toque irregular e ilógico, toque que ia fundo sem a casca da forma. Assim ligados e conectados presenciamos o pôr do sol mais sublime de nossas vidas. A bola celeste e todo o universo se transformando diante de mim pela magia humana da significação.
quarta-feira, agosto 08, 2007
Pirueta
Para que te olhar, se posso te ouvir? Para que te ouvir, se posso te cheirar? Para que te cheirar, se posso te lamber? Para que te lamber, se posso te tocar? Para que te tocar, se posso pensar em você? Ah não, sem essa. Pensar é distante, é egoísta, é masturbar-me na solidão com o que roubei de ti, é me fechar aqui dentro e sonhar com um quadro teu abstrato, simbólico, é me admirar no vazio ilusório. Nada disso, não, não e não. Quero você escorregando na minha percepção, balançando no meu paladar, dando piruetas no meu olhar. Assim eu te encontro, assim a gente se encontra.
sexta-feira, agosto 03, 2007
Locomotiva
Enquanto dormia, foi lançado na locomotiva do tempo. Ela foi levando-o velozmente para bem longe do que ele era. Via, pela janela, se afastar o cenário do seu presente, as paisagens onde ele tinha se acostumado a andar, a deitar à noite sobre a relva para ver as estrelas. Já não sentia mais as cócegas das formigas que subiam em suas pernas e se entrelaçavam em seus pelos. Olhou para elas e viu-as límpidas, brancas, sem marcas de picadas, como se algo as tivesse apagado. Olhou fixo, pela última vez, enquanto ainda era possível, para a casa onde, até então, havia morado. Lembrou-se do seu primeiro tombo de bicicleta e sentiu leve, já bem fraca, a ardência do joelho ralado. Tudo ia se apagando enquanto a locomotiva seguida o seu caminho, indiferente a ele, sem lhe dar qualquer chance de reação. Na verdade, não havia um caminho, ela apenas ia, se afastava, sem prestar contas, sem anunciar destinos, sem padecer pelo que causava aos outros, fosse alegria ou tristeza. A locomotiva do tempo é completamente impessoal. E ele estava ali sentado no banco tentando segurar, com todas as suas forças, tudo o que ele era, tudo o que ele foi. Quando mais se esforçava para continuar sendo, menos ele era, mais deixava de ser, mais se perdia em lembranças que se apagavam, em imagens que criava como se algum dia elas tivessem lhe pertencido. Via, aos poucos, meio confuso, partes de si ficando para trás e começou a sentir um medo queimando a boca do estômago, uma angústia que lhe dava um nó na garganta. Pensou na sua extinção, na sua ausência completa e isso lhe pareceu aterrador. Mas depois percebeu que, por mais que se mutilasse, por mais que seus fragmentos se dispersassem pelo cosmos, ele ainda estava ali, assistindo e padecendo o horror deste acontecimento. Ele estaria consigo ainda que não houvesse mais nada com que estar. O medo passou, mas no lugar ficou a tristeza, ficou a nostalgia do belo que ele havia perdido, que ele deixara escapar quando a locomotiva começou a andar. Embora ele não se lembrasse de mais nada concretamente, havia em si a semente mnemônica, o pensamento de algo perdido, a presença da ausência, a vivência do vazio. Ele sabia que algo lhe faltava, mas não tinha idéia do que poderia ser e de como poderia resgatá-lo. A locomotiva parou e a porta se abriu. Uma luz se irradiou para dentro da cabine, era muito forte. Ele não pôde ver o que havia lá fora. Resolveu ficar. Fechou os olhos e se encolheu. A locomotiva partiu novamente e ele com a esperança de que ela agora lhe levasse também a sua tristeza. Escolhas, sempre elas...
terça-feira, julho 31, 2007
Pedra
Havia um pedra
em meu jardim
e eu pensei
ser essa pedra
Mas a terra
a engoliu
com a ajuda
da chuva
Então me vi
deslizando
nas curvas
da pétala anil
Caí no chão
orvalhado
e a lágrima
banhou-me a face
em meu jardim
e eu pensei
ser essa pedra
Mas a terra
a engoliu
com a ajuda
da chuva
Então me vi
deslizando
nas curvas
da pétala anil
Caí no chão
orvalhado
e a lágrima
banhou-me a face
sábado, julho 28, 2007
Lúdico
Eu digo que sou uma eterna criança lúdica porque acredito na magia do amor e vivo, ainda que ilusoriamente, a graça dessa magia, em toda a sua plenitude, recebendo a esperança e o otimismo que ela produz. E sorrio muito ao senti-la na minha pele, florindo cada emoção que me é possível ter. Como hoje...O problema são os seres humanos, jovens velhos que, na sua inquisição laica, guilhotinam a minha crença.
Angústia
O amor dormiu enquanto falava comigo. Eu o abraçava fortemente, cravando minhas unhas em teu corpo, envolvendo nele as minhas pernas, sussurando em seu ouvido as minhas questões. Mas ele dormiu antes que pudesse escutar a minha angústia. Melhor assim, pois que bem faria eu ao amor se lhe pintasse não a minha beleza, mas a minha feiúra? O que há de pior em cada um de nós a gente só olha na completa solidão, à luz de vela, até para não ver demais os detalhes do horror, tal como fazia Dorian Gray.
quinta-feira, julho 05, 2007
...
- Por que você fica aí calado?
- O que queria que eu dissesse?
- Sei lá, qualquer coisa.
- Qualquer coisa.
- Você é mesmo um chato!
- Não sou eu que sou chato, é o meu silêncio que te chateia.
- Para mim, dá no mesmo.
- Não dá. A chatice está no efeito ou na causa? O chato é aquele que, por ser chato, produz a chatice ou aquele que, por produzir a chatice, é chato?
- Que diferença faz? Você está me aborrecendo. Odeio quando você começa com esses papos.
- Entendo. Calado, te chateio. Falando, te aborreço. Faz muito sentido isso.
- Está vendo, você não me entende, não percebe o que eu realmente quero.
- O que você quer?
- Você.
...
- O que queria que eu dissesse?
- Sei lá, qualquer coisa.
- Qualquer coisa.
- Você é mesmo um chato!
- Não sou eu que sou chato, é o meu silêncio que te chateia.
- Para mim, dá no mesmo.
- Não dá. A chatice está no efeito ou na causa? O chato é aquele que, por ser chato, produz a chatice ou aquele que, por produzir a chatice, é chato?
- Que diferença faz? Você está me aborrecendo. Odeio quando você começa com esses papos.
- Entendo. Calado, te chateio. Falando, te aborreço. Faz muito sentido isso.
- Está vendo, você não me entende, não percebe o que eu realmente quero.
- O que você quer?
- Você.
...
domingo, julho 01, 2007
Existência
Você existe mesmo? Como sabe? O prêmio de consolação cartesiano embutido no penso, logo existo é, na verdade, um escárnio, uma ironia, uma trombeta a lhe gozar, a lhe espetar o dedo na cara apontando o seu nada. Para chegar à brilhante conclusão do cogito, você precisa suspender todo o universo, seu corpo, sua história e até as suas memórias. No final desse processo de suspensão, resta apenas um ser amorfo que tem a singular propriedade de pensar. Ele pensa e pronto, nada mais. Termina aí. Mas ele não tem personalidade, não tem rosto, não tem nome, não tem memória, não tem quem se lembre dele, nem quem o toque, pois isso já seria pedir demais. E assim fica claro que podemos existir sem, no fundo, realmente existir. Um eu que perdeu todas as suas relações com outros eus deixou também de ser. Existe apenas como essa coisa amorfa pensante, destituída de qualquer significado.
quinta-feira, junho 28, 2007
Pernas
Pernas grossas e roliças, de uma brancura noturna, cruzadas bem na minha frente, evidenciando ainda mais a sua exuberância. Realmente lindas, perfeitas no branco para aquele horário e ambiente. Estava só, não apenas no sentido físico da palavra, mas principalmente no psíquico. Olhar distante, voltada para si mesma, olhos consternados, quase ouvi um choro. Completamente absorvida em si que nem me percebeu dissecá-la. Nunca imaginei que no meio de pernas tão perfeitas pudesse encontrar um sofrimento tão visível. Então o frenesi da gravação voltou a tomar conta do local e ela foi chamada a assumir a sua posição de dançarina figurante. Guardou na pequena bolsa preta os óculos que afundavam ainda mais o seu olhar. Levantou no seu salto preto exibindo as pernas mais vistosas do recinto, não minto, acho que nunca esquecerei aquelas pernas, arrumou um sorriso falso na boca e dirigiu-se para o meio da pista. Livre do pensar, do pesar, voltou a dançar.
segunda-feira, junho 25, 2007
Erro
Reconheço que errei, que falei além da evidência, do permitido pelos fatos. Inventei calcado na emoção. Enganei a ti e a mim mesmo. Pincelei com o exagero uma generalidade que não existiu nem no particular.
domingo, junho 24, 2007
Ilusão
Você está tão longe, tão do outro lado do mundo, mas ao mesmo tempo, tão perto, tão dentro de mim. Te apalpo com a sobrancelha do peito. Li ontem, em algum lugar, que somente através do amor e das amizades criamos a ilusão efêmera de que não estamos sozinhos. A frase era para ser pessimista, mas eu a incorporo com otimismo. Ilusão tem ser, tem cor, tem impacto sobre a minha sensação. Ela está viva na minha experiência. E depois, o Berkeley me ensinou que esse est percipi. Sendo assim, deixe-me em paz na ilusão diária de tê-la por perto, ouvinte dos meus ecos.
sexta-feira, junho 22, 2007
Fraquejo
Adianta dizer a verdade a quem não está preparado para ouvi-la? Esmaga meus ossos essa pressão para não fraquejar. A mulher, em nossa sociedade (ou seria ainda mais radical, a fêmea, em nossa espécie?), pode se dar ao luxo de declarar publicamente a sua auto-estima em baixa. O homem será punido se o fizer, mesmo pelos mais sensíveis. Sua virilidade percebida, em especial pelas mulheres, decai na mesma medida da sua perda de auto-confiança, gerando um ciclo vicioso direto para o abismo. Já recebi em meus braços o choro da mulher esquartejada, dilacerada pela existência. Quando, no entanto, fui buscar o apoio compreensivo no abraço dessa mesma mulher, nem tão assim lamurioso, nem tão assim lacrimoso e queixoso, recebi em retorno um tapa nas costas, aveludado por: "cuide-se, amigo". Uma preocupação a falsear um quase desprezo. É por isso que eu estou sempre muito bem, muito bem mesmo, obrigado.
terça-feira, junho 19, 2007
Ruivas
Alfedro tem fixação pelas ruivas. Foi assim que ele se apaixonou através da visão instantânea pela L, K, N e W. Em tempos diferentes, é claro, pois Alfredo é o tipo de cara que prefere ataques concentrados ao invés de suportar grandes flancos. Diz ele que o risco de sucumbir no seio inimigo é maior, mas também são maiores as chances de chegar ao seu centro fatal. Não sei de onde vem essa atração irrefreável, mas é incontestável o abalo emocional de Alfredo diante de uma ruiva. Outro dia caminhávamos pelas ruas do centro, discutindo sobre um texto da faculdade, e repentinamente ele me deixa sozinho, seguindo por uma outra rua atrás de uma ruiva que ele tinha visto passar. Não o vi mais nesse dia. No ônibus, ele simplesmente fica imóvel, ouso dizer que nem pisca, encarando a primeira infeliz ruiva que ele encontra. Nem preciso lhes dizer que esse comportamento de psicopata não deu nenhum fruto. Duvido que dê. Já vi Alfredo com japas, negras, morenas, altas, baixas, gordas, magras, mas nunca com uma ruiva. Um dia resolvi lhe perguntar se sua fixação tinha alguma razão. Ele me respondeu assim: "Não tem não, meu amigo, eu simplesmente me sinto queimar por dentro quando vejo uma ruiva. Elas despertam o meu demônio. Sabe, quando você não consegue pensar em mais nada, sentindo o ser que se apresenta como senhor absoluto da sua atenção? É assim que me sinto, sem controle, sem opção, sem livre-arbítrio. Mas você quer uma razão? Quer? Não sei o que você faz com tantas razões, realmente não sei. Mas vá lá. Se quer...dou-lhe uma, essa aqui, ó: tenho medo de escuro, verdade, mesmo já estando assim quase adulto, não durmo de luz apagada e sempre imaginei que se me casasse com uma ruiva, teria um fogo incandescente a me iluminar e aquecer no próprio leito. Entende?. Não sou muito diferente dos outros homens nas associações".
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