quinta-feira, agosto 30, 2007

Diferenças

- Eu tenho fé, eu faço, eu arrisco.
- Eu tenho dúvida, paraliso-me, espero.
- Olha só o tamanho do meu EU, gigante, me imponho, grito.
- Escondo-me, falo baixo, sou corcunda.
- Transpiro a verdade, mesmo se não a tiver.
- Vomito a insegurança e sempre a tenho.
- Tu és um verme, tentas se infiltrar e corroer as pilastras da minha fortaleza.
- Teu peso me esmaga, não tens piedade, és implacável.
- A dúvida é um erro, sempre reclamona.
- Você acha?
- Tenho certeza.
- Eu não paro de pensar, percorro todos os caminhos sem sair do lugar.
- Eu percorro um só e chego lá, nunca paro, não preciso pensar, eu simplesmente vou.
- Lá onde?
- Lá, tu não sentes, não podes entender, não vês, é cego.
- Sou infeliz, sou casmurro, sou Bentinho.
- Sou alegre, sinto nas veias a verdade que me alimenta, sou forte e expressiva, sempre a passear, sou Capitu.
- És uma dissimulada, engana a todos com essa pele macia, mas tua carne por dentro é podre.
- Vives no rancor, na inveja, por lhe faltar o que tenho, de graça, sem correr atrás.
- Que tens, o que é? Conte-me!
- Eu tenho o que eu sou, o sentimento da verdade, da qual ela própria emana, Eu sou a Verdade.
- Sentimento...verdade...Eu não sei o que eu sou.
- Você não é!
- Talvez.

segunda-feira, agosto 27, 2007

Baratas

Psiquiatra explica: "No caso da fobia de baratas, o interessante é que incide mais nas mulheres do que nos homens, na proporção de 8, 9 mulheres para cada homem". Concluo, então, que sou um homem raro. Ele narra: "Tive uma paciente com fobia de baratas que trabalhava com os pés em cima do cesto de papéis com medo de que uma barata subisse por suas pernas e revistava os ambientes à procura de orifícios por onde os insetos pudessem passar". Não cheguei ainda a esse ponto, mas houve uma época em que eu não me deitava para dormir sem verificar se havia alguma embaixo da cama e nos cantos do quarto. Hoje não mais, já que, desde que cheguei aqui, nenhuma resolveu aparecer em meu lar. E que não apareçam, viu, vocês não são bem-vindas!

sábado, agosto 25, 2007

Ego

Id. - Ego, Ego, Egoooooo!
Ego. - Pare de gritar, não sou surdo!
Id. - Quero fazer sexo com um pé, agora!
Ego. - Agora não dá.
Id. - Por que não dá? Quero e quero, já disse.
Ego. - Serve o teu pé?
Id. - Óbvio que não!
Ego. - Sem chances, então; no momento não há nenhum outro pé disponível, nenhum te desejando.
Id. - Não quero saber, se vire!
Ego. - Já disse, não há como.
Id. Pegue um aí à força.
Ego. - Há conseqüências...
Id. E daí? É você quem vai sofrê-las mesmo...
Ego. - E por que eu iria me prejudicar?
Id. Humm...tá vendo esse chicote aqui na minha mão esquerda? Com ele eu estalo a angústia na suas costas. Com esse outro, na direita, eu fagulho a frustração em você. Preciso dizer o que vou fazer?
Ego. - Não, mimado como é, não duvido.
Id. - Vamos, mova-se. O tempo está passando. Pé, pé, pé, quero um pé, agoraaaaaa!
(murros na porta, "Silêncio, Silêncio!", ouve-se lá de fora.)
Ego. - Ai, estou perdido!
(a porta se abre, Superego entra, irritado).
Supergo. - Não se pode mais dormir por aqui? Que baderna é essa, Ego?
Ego. - É o Id que não me deixa em paz, ele agora quer...
Supergo. - Não quero saber. A responsabilidade de velar o meu sono é tua. Nem isso você consegue fazer, nem isso! Um imprestável. Não quero ouvir mais um pio, meu sono é sagrado, você sabe. É a última vez que aviso.
(Superego sai, Id ri, Ego se sente pesado, culpado).
Ego. - Você acha graça, né?
Id. - Ainda nem comecei a me saciar. Se não tem pé, tem sadismo, hahahaha.
(Id chicoteia Ego com fervorosas chicotadas de angústia, contorcendo-se de prazer em risadas diabólicas. O Ego...bem, o Ego aguenta.).

sexta-feira, agosto 24, 2007

Paz

Paz insonora, entrando devagar, aos poucos, na morada do ser. Vá entrando, amiga, sente-se do meu lado, não se acanhe, passei um café pra nóis tomá com pão de queijo quentin. Desta vez você pousa aqui, não aceito negativas. Temos muito o que NÃO nos falar, olhares a trocar, sorrisos a dar. Para falar a verdade, uma noite só é pouca, quero-a comigo no eterno, dormindo ao meu lado. Sou leve, uma pluma, quando acordo com a minha mão sobre tua. Ah, querida, contigo presente, meu encontro comigo mesmo é sempre sereno. Vamos passear, vamos errar, quero que você me leve para conhecer o mundo. A porta está aberta, vamos!

segunda-feira, agosto 20, 2007

Arrogância

Dou de ombros para o seu achar-me louco. Isso só mostra que a sua capacidade de compreender é mais limitada que a minha capacidade de ser. Nunca acreditei na existência da loucura. Eu acredito em deficiências e distúrbios mentais que podem ser remontados a deficiências cerebrais. Loucura em cérebro são? Conte outra piada, use outro subterfúgio para escamotear a sua ignorância. Ah, você não quer me compreender. Oh, mas eu também não faço questão de ser compreendido por você. Não mesmo, eu ficaria completamente disforme nessas caixas mal feitas que você usa para apreender o ser do ente. Quer que eu lhe traga um espelho? Venha cá, veja-se. Passaste a vida numa lama de conceitos e crenças, sem nunca lhes dispensar nenhuma atenção organizadora, nenhum esforço higiênico para eliminar os excrementos herdados e amontoados no seu habitat. Teus pais rezavam e você gritava "amém!" mecanicamente, condicionada; até um robô mais moderninho, com fuzzy logic, entende?, seria capaz de emular um livre-arbítrio mais decente. Tua linguagem é um caos, tua rede de conceitos é vazada, não pega nem robalo, quanto mais a fineza do meu ser. Veja bem, veja bem. Deixe-me lhe explicar uma coisinha, básica até. A compreensão, a interpretação, o entendimento, a hermenêutica são completamente dependentes da arte de distinguir. Isso mesmo, a compreensão é um ofício artesanal, demanda um olhar atento e fino, uma disposição sobrehumana para rever cada grão de areia que lhe passou nas mãos, procurando erros, reclassificando peças, enfim, ela demanda um esforço e uma dedicação que só uma mente com excesso de vontade é capaz de levar adiante. Definitivamente, não. Não é com essa lama que você usa para construir castelos infantis que você vai compreender um ser humano, não mesmo. Por favor, não tente me tocar com a sua apreensão.

E ela sabiamente partiu, ao intuir, bem de longe, sem tocá-lo, o rancor do seu esperneio patético, deixando-o só, na companhia do seu amor-próprio.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Vermelho


Céu avermelhado que desce sobre as minhas costas.

Contradições

Sobre a mesa jaz a garrafa de vinho barato, que ele, despreocupado, bebe no gargalo. No quarto, uma única e fraca luz, que lhe exige esforço durante a leitura. Mas agora ele não lê. Está entediado, está sufocado com as contradições humanas. Ele sabe que as tem também, aos montes, mas pensa que as dele são mais compreensíveis ou, diversamente, são tão profundas que nem faria sentido lhe apontar na cara a tensão. Ele bebe rápido, quer se embriagar. Quer esquecer, quer transformar sua dor em raiva, contradizendo sua fala, seu discurso, pois sim, ontem ele acusava, diante da amiga, a covardia hodierna sentimental, os exércitos humanos que se agarram ao próprio ego, ao EU, para não sentir. Deixam de amar para não sofrer. "Medrosos!", exasperava-se ele com a amiga. E agora ele bebe para anestesiar a sua própria dor. Medo? Nem tanto, mas não quer enfrentá-la de frente, sente-se fraco para suportá-la, para vivê-la plenamente. Então ele bebe, só, na escuridão do seu quarto.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Angústia

No dia em que senti, pela primeira vez, angústia real, sufocante, paralisante, não tive vontade de morrer, mas medo de morrer. Tive medo que o meu ateísmo se revelasse falso diante da morte. O ateu não difere em nada do cristão. Ambos são movidos pela fé, apenas que são opostas. Desejei, então, desesperadamente viver. Na finitude, a angústia é suportável.

sábado, agosto 11, 2007

Sósias

Vai aqui um relato real, um espanto. Pessoas que me conhecem apenas por foto me vêm em lugares em que não estive. Já não bastava o professor de grafos que todos os alunos do curso dizem ser eu, agora aparece uma multidão de sósias espalhada pela cidade. Em BH, eu também tinha um colega fisicamente gêmeo. Sou comum. Ponto. Sorte a minha nunca ter atrelado a minha identidade, se é que tenho uma, aos meus atributos físicos. Mas quer saber de uma coisa? O fato de "eu" estar espalhado pela Curitiba, entranhado nas suas ruas, é só mais uma confirmação do meu pertencimento ao novo lar que adotei. Já antes de vir, aqui estava. E nenhum deles tem o meu nome E é sinistro, ao mesmo tempo, e isso é o que importa ;).

sexta-feira, agosto 10, 2007

Magia

Estava andando pela rua, quando vi o menino do balão azul, ele tinha a pele manchada de sol, seca, cabelos loiros e escurecidos, caminhava olhando reto, sem expressão, como uma criança que quase nunca pôde se deixar levar pelo brincar, parecia carregar o balão por obrigação e não por diversão. Quando nos cruzamos, seu balão começou a subir e ele também, segurando sem esforço na corda, leve, planando. Foi quando o vi gargalhar e eu sorri, admirado com aquela mágica gravitacional. E ele foi subindo, subindo, suas gargalhadas cada vez mais inaudíveis, até que ele sumiu por trás de uma nuvem rosada em forma de elefante. Continuei andando com aquela imaginem na mente por alguns minutos, fazendo o meu caminho costumeiro. Observava as mesmas árvores e as mesmas casas amarelas de sempre, pois sim, em uma mesma quadra, os moradores engendraram uma admiração conjunta e pintaram suas moradas com o ouro da bandeira nacional. Passei por ali pensando nos ipês amarelos. Lembrei que na escola eu pintava os olhos humanos de amarelo, eu sempre quis ter olhos em um tom amarelo esbranquiçado, olhos que refletissem quase por completo, para servir melhor de espelho ao outro. Então cheguei em uma esquina e havia um sinal para pedestre, vermelho. Coloquei as mãos no bolsos e girei o corpo, olhando inclinado para cima, procurando o menino do balão azul. Vi dois falcões cruzando o céu e um deles segurava uma corda no bico. Ao olhar novamente para frente, franzi o rosto, tentando compreender o que se apresentava a minha frente. Parecia ser o Alfredo. Mas era o Alfredo! Mas como poderia ser ele? Ele estava no meio de duas mulheres ruivas e de mãos dadas a ambas. Pasmem. Ele me viu, mas era como se não tivesse me visto. Viu um rosto apenas, não o seu amigo de infância. O sinal abriu e ele começou a caminhar com as sua ruivas. Ele apertava a mão de uma, depois a de outra, cheirava o cabelo de uma, inclinava o rosto para se apoiar no ombro da outra e assim vinha, faceiro. Dei meus passos também, em sua direção, sempre tentando encontrar seus olhos, sua alma. Mas ele estava sintonizado em outra estação, estação do fogo. Passou por mim e foi-se. Quando terminei de atravessar a rua, voltei-me para trás para observá-los. Uma das ruivas era magrela, esquia, bem mais alta que Alfredo, mesmo se estivesse sem o salto alto, que usava com classe. A outra tinha ares de adolescente, mais carnuda, coxas bem brancas, exibidas pela sua saia rodada curta, quadril largo, andava rebolando, esbarrando em Alfredo e chamando a atenção dos homens que lhe cruzavam o caminho. Segui em frente, andei por mais quinze minutos até chegar em meu destino, o parque da grama estrelada. Sim, a grama do parque possui desenhos de estrelas em relevo. Eles deixam a grama crescer em alguns pontos e depois podam no formato estrelar. Gosto de uma em especial. Ela fica quase no topo de uma pequena elevação e suas pontas são levemente avermelhadas. Não sei se plantaram ali um tipo especial de grama ou se o sol que bate forte naquele ponto a queimou e deu aquele aspecto à estrela. Mas é ali que me sento, ao lado da minha Estrela da Tarde, onde posso ver o sol se pôr entre os prédios da cidade. Vi mais nuvens rosadas de elefante. Hoje seria mais belo que o habitual, pensei. Ainda faltava uma hora para o sol cruzar a linha do horizonte. Resolvi me deitar um pouco para descansar, usei a ponta da estrela como travesseiro. Estava gostoso assim, os fios de grama se moviam em um vai-vem carinhoso, alisando a minha nuca. Fechei os meus olhos, sentindo o calor do sol queimando meu rosto rosado por completo. Algo começou a tocar a mina mão, senti uma pressão leve seguindo suavemente as minhas linhas da vida. A textura era um pouco diferente da pele humana, mais macia e aveludada. Morno. Abri os olhos e não vi nada, embora continuasse sentindo o contato. Logo percebi que era a Venusiana que estava ali do meu lado, invisível na sua presença. Viera assistir o pôr do sol comigo. Voltei à escuridão para melhor conversar com ela, usando a linguagem das mãos, do toque. A Venusiana sempre entendeu a minha necessidade, e acredito que ela também a tenha, de conversar através do silêncio, de recusar o imperativo da palavra, de explorar a linguagem do corpo, do contexto, da situação; há muito o que falar pela alteridade. Uma vez ela me disse que as palavras são como caixas onde guardamos as coisas para esquecê-las. E é verdade. O substantivo concreto se desmancha na mente sob a forma de conceito. Chega um momento em que você fala "cadeira" e já não tem mais nenhuma cadeira particular em mente. Esqueceu-se dela ou delas. Triste. Então, pelas mãos, abrimos os nossos corpos e a intimidade pôde se compreender pelo toque irregular e ilógico, toque que ia fundo sem a casca da forma. Assim ligados e conectados presenciamos o pôr do sol mais sublime de nossas vidas. A bola celeste e todo o universo se transformando diante de mim pela magia humana da significação.

quarta-feira, agosto 08, 2007

Pirueta

Para que te olhar, se posso te ouvir? Para que te ouvir, se posso te cheirar? Para que te cheirar, se posso te lamber? Para que te lamber, se posso te tocar? Para que te tocar, se posso pensar em você? Ah não, sem essa. Pensar é distante, é egoísta, é masturbar-me na solidão com o que roubei de ti, é me fechar aqui dentro e sonhar com um quadro teu abstrato, simbólico, é me admirar no vazio ilusório. Nada disso, não, não e não. Quero você escorregando na minha percepção, balançando no meu paladar, dando piruetas no meu olhar. Assim eu te encontro, assim a gente se encontra.

sexta-feira, agosto 03, 2007

Locomotiva

Enquanto dormia, foi lançado na locomotiva do tempo. Ela foi levando-o velozmente para bem longe do que ele era. Via, pela janela, se afastar o cenário do seu presente, as paisagens onde ele tinha se acostumado a andar, a deitar à noite sobre a relva para ver as estrelas. Já não sentia mais as cócegas das formigas que subiam em suas pernas e se entrelaçavam em seus pelos. Olhou para elas e viu-as límpidas, brancas, sem marcas de picadas, como se algo as tivesse apagado. Olhou fixo, pela última vez, enquanto ainda era possível, para a casa onde, até então, havia morado. Lembrou-se do seu primeiro tombo de bicicleta e sentiu leve, já bem fraca, a ardência do joelho ralado. Tudo ia se apagando enquanto a locomotiva seguida o seu caminho, indiferente a ele, sem lhe dar qualquer chance de reação. Na verdade, não havia um caminho, ela apenas ia, se afastava, sem prestar contas, sem anunciar destinos, sem padecer pelo que causava aos outros, fosse alegria ou tristeza. A locomotiva do tempo é completamente impessoal. E ele estava ali sentado no banco tentando segurar, com todas as suas forças, tudo o que ele era, tudo o que ele foi. Quando mais se esforçava para continuar sendo, menos ele era, mais deixava de ser, mais se perdia em lembranças que se apagavam, em imagens que criava como se algum dia elas tivessem lhe pertencido. Via, aos poucos, meio confuso, partes de si ficando para trás e começou a sentir um medo queimando a boca do estômago, uma angústia que lhe dava um nó na garganta. Pensou na sua extinção, na sua ausência completa e isso lhe pareceu aterrador. Mas depois percebeu que, por mais que se mutilasse, por mais que seus fragmentos se dispersassem pelo cosmos, ele ainda estava ali, assistindo e padecendo o horror deste acontecimento. Ele estaria consigo ainda que não houvesse mais nada com que estar. O medo passou, mas no lugar ficou a tristeza, ficou a nostalgia do belo que ele havia perdido, que ele deixara escapar quando a locomotiva começou a andar. Embora ele não se lembrasse de mais nada concretamente, havia em si a semente mnemônica, o pensamento de algo perdido, a presença da ausência, a vivência do vazio. Ele sabia que algo lhe faltava, mas não tinha idéia do que poderia ser e de como poderia resgatá-lo. A locomotiva parou e a porta se abriu. Uma luz se irradiou para dentro da cabine, era muito forte. Ele não pôde ver o que havia lá fora. Resolveu ficar. Fechou os olhos e se encolheu. A locomotiva partiu novamente e ele com a esperança de que ela agora lhe levasse também a sua tristeza. Escolhas, sempre elas...