sábado, setembro 30, 2006

Sonho

Tema e Variações

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.

Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o que?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.

Um sonho presente
Um dia sonhei
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.
(Bandeira).

Um dia sonhei despertado. De repente, chorei. Pois vi, lúcido, que não estava dormindo.

domingo, setembro 24, 2006

Eterno

Tenho memórias de amor que nem deus seria capaz de me tirar. Elas estão tão presentes no meu fluxo consciente que só fabricando um outro completamente diverso do que sou se poderia eliminá-las. O paradoxal delas é que, às vezes, me arrancam sorrisos, noutras, lágrimas. É a diferença entre lembrança e nostalgia, entre lembrar e querer viver a lembrança. E, por favor, querer viver a lembrança não tem nada a ver com querer reviver a lembrança, é a diferença entre nostalgia e saudades.

sábado, setembro 23, 2006

Primavera

Tem gente que aniversareia e fica mais velho. Eu não; eu fico mais novo. Meu corpo pode putrefar, mas minha alma só rejuvenesce. Não é por outro motivo que nasci junto com o desabrochar da primavera. Todo ano ela vem até a mim com o seu beijo vital, enlaçando a criança que pulula em meu peito. Durmo com ela e acordo com o desejo infantil de viver.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Livro

E teve a experiência do deja vu. Por alguns instantes, eu tive a certeza de que o livro que eu ganhei hoje eu havia dado de presente para uma pessoa especial no passado. Era como se a natureza estivesse a me retribuir de volta o carinho de outrora em igual medida. Todavia, eu me enganei, cheguei a pegar o livro azul na livraria, mas acabei dando outro.

Livro

um livro azul veio parar hoje em minhas mãos, ganhado de maneira azulada. Abro ele, folheio, escolho uma página aleatoriamente, e invariavelmente encontro uma sensação azul. Hoje tudo é azul, inclusive o meu sorriso.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Melancia

Ficar duas semanas sem falar com o próprio pai, e quando, por alguns instantes, sua voz aparece, ela é mesclada com o barulho de uma melancia degustada; boca que mastiga e balbucia, um diálogo de jornal recortado, nonsense. Quando a atenção finalmente se manifesta, é para exaltar os ganhos financeiros de outro filho. A vida é assim, há dias em que o ar é leve, noutros, pesado, como se estivesse a respirar chumbo.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Tempo

Quando estava ocioso, o tempo não passava e, nesses momentos de tédio, era como se a vida estivesse congelada. O nó na garganta que chamamos de "angústia" é, em alguns casos, causado por essa paralisia vivencial, por essa percepção de que só a identidade reina absoluta no mundo, livre de qualquer mudança. Agora, atarefado, o tempo passa ligeiro. Mas, de maneira semelhante, às vezes também dá sensação de uma vida congelada. É tanta coisa para se fazer que a vida mesmo parece ficar em modo stand by, como se, de fora para dentro, nos colocassem no piloto automático. Então eu me pergunto. Quando é que realmente vivemos o tempo? Quando o ócio é criativo e quando o amor toca no peito. Só então somos livres para voar.

sábado, setembro 09, 2006

Escolhida



Eu a escolhi e, em retribuição, ela me descortinou um horizonte de possibilidades. Foi amor à primeira vista. Vida que se desdobra a cada metro percorrido. Enfim uma terra onde vejo espelhada a minha alma. É como se eu tivesse nascido aqui.

domingo, setembro 03, 2006

Gavetas

Algumas gavetas mnemônicas são trancadas por chaves musicais. Elas se abrem ao toque da melodia correta e jorram o seu conteúdo como se fossem caixas de pandora. Depois de muitos anos, escutei hoje It's a hard life, do Queen, e logo na minha frente apareceu vivamente a sardentinha que ocupou, lá no início da adolescência, dois anos das minhas batidas cardíacas. E ainda me lembro como se fosse agora seu toque em meu braço enquanto desenhava o seu nome sobre ele. Azar o meu que isso tenha acontecido no último dia de aula. Quando voltamos das férias, meu nome já não era mais uma melodia para ela. Ainda assim, sem qualquer esperança concreta (a razão naturalista para sermos capazes de sonhar é justamente essa, possibilitar a esperança, ainda que ilusória), eu desejei ser aquele que contaria as suas sardas a noite inteira, aquele que tocaria seus lábios. It's a hard Life, oh yes.