sexta-feira, novembro 02, 2007

Espera

Carta que Alfredo roubou da vizinha, antes que ela lhe pusesse as mãos. Ele ainda não sabe se vai entregá-la, é o destino de duas vidas em sua mãos. No entanto, tudo indica que o desenrolar da história já tem um destino previsível. Ele entregar ou não a carta terá apenas o efeito de antecipar ou retardar a espera angustiada do outro, o remetente. Mas quem disse que Alfredo não aprecia um pouco de sadismo?

Fico me perguntando se deveria me calar, aceitar a percepção que se me
apresenta como evidente, fazendo com que o tempo encubra com montes de
areia o sentimento que hoje é latente, sentimento solitário, sem
par. Ganho ou perco ao falar? Não sei, realmente não sei. Sei apenas
que, ao falar, cristalizo a verdade, mato a esperança que tece
ilusões. Não é nada elegante o que vim aqui fazer, sim, eu sei, e já
imagino você franzindo a testa achando isso tudo um grande absurdo. E
não deixa mesmo de ser. Mas acaso há alguma retidão no que a gente
sente? Na verdade, até tem, posto que nenhum sentimento nasce do
nada, ele tem uma história, uma gênese. Se o torna racional, eu não
sei, mas é certo que faz dele um pedacinho de si, para o qual você
olha e se reconhece. Quando a vi pela primeira vez, voltei para casa
com o gosto da admiração na boca. Mas sem comoção, apenas deslumbre,
afinal, ainda estávamos deslizando sobre a superfície das
aparências. Mas calhou de nos vermos mais e mais vezes, muitas vezes e
nesse vaivém pude começar a conhecer os detalhes, a ver um pouco mais
a fundo, pincelar seus meandros. Aos poucos, a admiração foi ganhando
um tom emocional e quando eu me dei conta do que se passava comigo, já
não era mais possível olhar para as tuas mãos de mulher e não imaginar
as minhas a apertá-las, ver teus lábios e não desejar beijá-los,
acordar pela manhã e não me perguntar pelo seu bem-estar, ouvi-la
falar e não me deixar levar pela musicalidade do seu timbre.
Não me tomes por exagerado, não dei nenhum nome
para o sentimento aqui declarado, nem pretendo pintá-lo com mais cores
do que possui. Ele ainda é fetal, germinal e antecipo o seu parto
justamente para lhe dar um fim antes que nasça por completo. Só venho
pedir pelo teu "não" claro e explícito, pois mesmo que eu já o tenha
intuído, a esperança não me deixa escutá-lo. Só o teu "não" tem a
capacidade de penetrar em minha alma com a verdade verdadeira,
derradeira. Ajude-me a abortar esse bem que só me faz mal!


Alfredo sorri, desponta em seu íntimo a curiosidade pela vizinha que até então ele só havia visto algumas vezes de relance. Em causa própria, rasga a carta. Sua moral é rasa, pragmática, o mero amor possível lhe alivia a consciência do delito cometido. Já sente, aliás, raiva e ciúmes do rival, o pobre e desavisado remetente, que, pelo andar da carruagem, amargará ainda mais com a sua espera angustiada.

Nenhum comentário: