segunda-feira, março 31, 2008

Rafael

Quanto de incerteza Rafael pode suportar? Ele se pergunta. Ele sente a corrosão da sua alma com cada uma das questões que se coloca. Chega a arder, é como se a cada dia cortassem um pedaço de si. E para cada certeza que perde, aparece um medo. Sua alma é assim cheia de hematomas emocionais, ultra-sensível ao toque. Hoje sentiu que todos o desacreditavam, que não havia ouvido que lhe desse mais confiança e assim começou a duvidar dos próprios relatos que fazia de si mesmo. Seria ele mesmo confiável? Seus próprios olhos não poderiam estar sempre a enganá-lo? Rafael se amedronta ao pensar que talvez ele não saiba quem é. O que afinal ele teme? E se não sabemos quem somos, o que se seque daí? O que há para temer? Seria talvez o fato de não poder olhar para si e encontrar um terreno sólido onde pisar e, assim, ter onde fincar a convicção de suas decisões? "Fiz assim, pois sou assado". Não, não é isso. Rafael sabe que a diferença entre agir com maior ou menor convicção tem mais um efeito externo, persuasivo, do que interno, acalentador. Pouco lhe importa se a sua decisão é mais ou menos convicta. Com efeito, ele sabe ainda mais, ele sabe que a sua convicção pouco tem a ver com o seu conhecer-se. Suas decisões o definem, no clichê existencialista. O grau da convicção exibida na decisão não emana de coisa alguma que ele conheça, ela é também definida e formada no próprio ato de decidir. Ainda assim, Rafael teme não se conhecer. O que há de tão ruim em não saber quais predicados aplicar a si?

Rafael conclui: a dificuldade toda está em viver a tensão de se conhecer sem se conhecer. Nem é tão paradoxal o que ele pensou quanto parece à primeira vista. Rafael não se deixa enganar, duvida tanto, levanta tantas possibilidades, que afasta de si qualquer predicado, qualquer assertiva, não assume nenhuma, não se deixa apanhar, nem se apreender pela linguagem, pelos conceitos. Ele se vê, assim, um nada, um vazio. Ele não se conhece. Contudo, há um quê de si com o qual ele se encontra e se confronta no seu viver pela emoção e o sentir. O fato de a decisão não estar assentada num solo duro do conhecer-se afirmativo não faz do sujeito uma marionete, um projeto para qualquer coisa, um nada que pode ser tudo. Não, definitivamente, não. No ato da decisão, Rafael encontra-se consigo mesmo da maneira mais intensa e intuitiva possível, ele se sente por completo durante e pela decisão. Esse sentir que lhe dá o conhecimento de si jamais é verbalizado, mas é automaticamente transferido, na verdade, já está imerso nela, na convicção da decisão. Quando Rafael decide contra o que ele é, a própria decisão já vai se tornando branda em seu ato. Ele já decide enfraquecido, desgostoso de si, às vezes, até arrependido. Quando, ao contrário, ele se encontra na decisão, o ato é pleno de vida, Rafael se vê todo comprometido no ato, até suas últimas células. Não, esse contato emocional que Rafael tem consigo ao decidir não é sensualista, não é efêmero, nem arbitrário, é de fato sua apreensão mais absoluta de si, ainda que ele não possa lhes dar qualquer razão a favor. Tampouco pode duvidar que assim seja. Ele se conhece sem se conhecer. Então, o que há de ruim em não se conhecer a priori é a espera angustiante de só se conhecer a posteriori, pois Rafael tem muita necessidade de si e sabe que nem toda vivência é um encontro consigo. E ele teme os desencontros.

sábado, março 29, 2008

Duração

Tanto cansaço da noite que se transformou em dia, e ao mesmo tempo tanta vontade de que esse dia se estenda até a noite sem que nenhum segundo se perca na inconsciência do sono. Não sinto o tempo, não vivo o tempo, ele transcorre, ele me perpassa e eu vivo nEla, com Ela e através dEla, a duração eterna de um instante.

sexta-feira, março 28, 2008

Arrependimento e Burrice

Sempre digo que nunca me arrependo das minhas escolhas e decisões. A frase é um pouco exagerada. É raro realmente eu me arrepender, mas é possível. Quando? Nas situações em que pratico a burrice. E agora preciso lhes explicar o que entendo por tal coisa. Antes, a frase de efeito que gosto de propalar: a burrice sempre tem um preço, e é muito alto.

"burro", "burrice", "estultice" geralmente são palavras usadas em contextos em que queremos falar ou da falta de uma capacidade, ou da negligência de uma responsabilidade. Quando alguém diz "fulano é burro", e atenção aqui para o "é", está querendo dizer que falta a este sujeito alguma capacidade. Talvez ele não seja bom em uma matéria qualquer e alguém já lhe lança a ofensa, "seu burro". Penso que este não seja um bom uso da palavra, embora seja corriqueiro e eu esteja muito longe de querer legislar sobre a linguagem, o que realmente seria uma estultice. Contudo, imagine uma pessoa disléxica cuja capacidade de leitura é, então, deficitária. Embora alguns possam jocosamente se referir à leitura dessa pessoa como burra, há uma certa incongruência em fazê-lo. O disléxico não tem culpa pela sua deficiência. Ele simplesmente a tem. E "burro" é uma palavra de carga negativa, ela segrega, ela estigmatiza, ela contém um tom de reprovação moral. E não parece fazer muito sentido reprovar alguém por ter uma deficiência pela qual ela não é, nem foi responsável. Em todo caso, algumas capacidades podem ser adquiridas e mesmo desenvolvidas e, nesses casos, quando há uma falta e chamamos a pessoa de burra, não estamos tanto nos referindo a sua falta, mas a sua irresponsabilidade ou desleixo em não desenvolvê-la. Se eu digo que quero aprender a jogar bem xadrez, mas não treino muito e, a o me verem jogar mal, alguém diz "o cara ali está sendo burro", o que ele está dizendo é que estou sendo desleixado e negligente ao não tentar desenvolver a minha capacidade de jogar xadrez.

Então chegamos nessa segunda acepção da burrice, que não tem nada a ver com faltas cognitivas, mas sim com desleixo, negligência e irresponsabilidade. Este tipo de burrice está mais para um acontecimento, ela ocorre quando você sabe que seria melhor fazer X, mas acaba fazendo não-X. Daí até dizermos, nesses casos, que "fulano foi burro", não que ele seja. Por exemplo, fulano, universitário instruído, sabe tudo sobre a transmissão de DSTs, saí numa baladinha, conhece uma gostosinha, e acaba transando com ela sem camisinha, no furor lá do seu tesão. Ele sabe que não estava fazendo o melhor para si, mas fez mesmo assim. Foi burro. E a sua burrice pode vir a lhe custar muito cara, como disse. Ela sempre tem um preço elevado. Se vai ser cobrado ou não é, em parte, uma questão de sorte ou azar. Mas se for cobrado, não tem para onde chorar. Enfim, sempre que tenho um conhecimento e o negligencio nas minhas ações, fazendo o contrário do esperado, estou sendo burro e legitimo que outros apontam para mim e digam "ele foi burro!".

Este tipo de burrice não ocorre apenas quando você negligencia um conhecimento, ocorre também quando você ignora um valor que lhe é fundamental. O preço a pagar, nesse caso, será a auto-flagelação da sua própria consciência. Nada mais burro do que ser infiel a si mesmo e amargar depois a dor de enojar-se de si.

Assim todos os arrependimentos que tive em minha vida se resumem em todas as vezes em que fui burro, pois todas as minhas burrices me custaram muito e nem sempre pude contar com a sorte de uma dívida não cobrada. De outro modo, jamais me arrependo, mesmo que, mais tarde, adquirindo NOVAS informações e conhecimentos, eu perceba que decisões passadas não foram as melhores. Mas, se, no passado, foram as melhores, então não tenho porque me arrepender. Fiz o melhor de mim e, principalmente, fui fiel a mim mesmo. Jamais me arrependo por ser fiel a mim mesmo, ainda que mais tarde eu perceba, guiado por novos conhecimentos, que não tomei o melhor caminho. E julgar o meu eu passado pelo meu eu presente seria, aí sim, uma grande estultice, uma irresponsabilidade sem tamanha comigo mesmo e a minha auto-estima.

domingo, março 23, 2008

Achocalhado

Achocalhado, todo eu. Alma, vida, emoção, corpo achocalhados. Pela espinha percorre um intenso tremor, concluindo lá em cima, na consciência, a sensação de plenitude de sentido, vejo sem olhar. Ela me envenenou com o sabor doce e amargurado da sua existência. Nunca apeteceu-me vidas amenas, ou fingidamente amenas. Infiltro em sua alma contemplando cada cicatriz, aberta ou fechada, e apalpo suave imaginando a sua etiologia. Quanta doçura, fineza e inteligência na forma que elas acabaram infringindo à sua alma. Na superfície, nos encontramos com névoas de lúdica suavidade. Transbordo em bobeiras pueris. Ela também. Na profundidade, nossos dedos vão se entrelaçando num íntimo e compreensivo dar as mãos. Ela envenenou-me sim, sabe, atacando a minha mortífera apatia; vejo-me, então, vivendo plenamente, sem utopia, sem perder a consciência áspera da realidade com a qual nasci. Agradeço a ela por esse mergulho em seu existir, agora que começo a relembrar como é nadar.

sexta-feira, março 21, 2008

Egolatria.

De uma forma ou de outra todos nós somos egoístas. Uma tentativa de separar egoístas de não-egoístas seria dizer que os primeiros agem tendo em vista apenas os seus desejos e vontades, enquanto os segundos levam em consideração também os desejos e vontades de terceiros. Mas não é difícil perceber que se alguém leva em consideração o desejo de um terceiro, então ela teve desejo ou vontade de fazê-lo e, assim, ela é tão egoísta quanto os primeiros ali, conceitualmente não há diferença. Não vislumbro fuga possível da caverninha subjetiva. No máximo, concedo como altruístas atitudes irrefletidas e instintivas selecionados pela natureza para a proliferação e perpetuação da espécie, como a atitude de um pai ou mãe que se lança à morte para salvar a prole de um perigo ou ameaça iminente. E só, nada mais.

Embora sejamos todos essencialmente egoístas, há diversos sabores de egoísmo, conforme os desejos e as vontades eleitos como centrais em cada sujeito. Há aqueles que têm o desejo e a vontade de se sacrificar para atender os desejos e as vontades de terceiros. No fundo, é possível que estejam sendo movidos por algum medo, medo de magoar, de frustrar, de decepcionar. Então essas pessoas sacrificam muitos dos seus desejos para atender um desejo seu, o de não desapontar o outro. O outro nem precisa saber, e frequentemente não sabe, se essa pessoa atende as suas vontades por medo ou por querer, para ele, o efeito é o mesmo. E há aqueles que não se sentem muito inclinados para atender os desejos alheios a não ser quando assim estão com vontade, mas não por medo. Claro que entre um e outro há uma infinita gradação. Desconheço quem não tenha sentido medo de magoar alguma vez, que não tenha se sacrificado uma vez que fosse, da mesma maneira, mesmo os mais temerosos em magoar solapam em algum momento os seus medos para escutar outros desejos seus. E também é evidente que, em cada situação, cada qual ponderará a dimensão do seu sacrifício e a intensidade da mágoa alheia para a tomada de decisão. Não tudo é assim só branco ou preto, no meio há espaço para muita arte equilibrista.

Eu tenho como ideal o segundo sabor de egoísmo, embora esteja muito longe dele e me veja agindo por medo de magoar freqüentemente. Por que o prefiro? Por conta de outras crenças que eu tenho sobre autenticidade e sentido das minhas vivências. Quando alguém atende um desejo meu por medo, embora ela, de certa forma, não tenha se traído, pois atendeu o seu próprio medo, ela vive uma tensão, vive uma morte, a morte do desejo que ela teve de solapar para dar vida ao seu medo. Ela vive e morre ao mesmo tempo. E eu estaria vivendo uma ilusão, a ilusão de que a pessoa estaria, naquela minha vivência de prazer, pulsando, como eu, apenas vida. E nem eu, de fato, estaria pulsando vida completamente, quando muito, uma ilusória. Quando, ao contrário, os desejos e vontades de ambas as partes se conformam, a experiência de ambos é autêntica, genuína, repleta de vida, sem morte, sem cisão do ser, ambos estão plenos ali naquela vivência. Não tenho uma razão para lhes dar, mas essa é uma vivência que aos meus olhos está repleta de sentido.

Não espero dela certezas eternas, assim em um plano mais elevado do pensamento, embora em um momento ou outro, a insegurança emocional possa fazer esse clamor, mas isso é efêmero, não devo permitir que me domine. Como não desejar que ela dê vazão a toda a sua necessária solidão, que lhe é tão afeita e produtiva, que lhe rende o bem-estar de estar consigo mesma e as palavras de quem se entende ou busca se compreender? Como poderia gostar, ter por ela um sentimento e lhe desejar uma vida cindida, tensa e regida pelo medo? Não, não posso fazer isso sem deixar de ser fiel às minhas demandas mais profundas de sentido. Quando estivermos juntos será pela sinceridade das suas vontades, e das minhas, e isso é sublime, é vida pura, é belo. Eis um dos meus tons esperançosos diante da vida. Dela espero a mais admirável das sinceridades consigo mesma. E tentarei retribuir em igualdade. Tudo isso é muito ideal, é verdade, mas nossas ações são pautadas em ideais.

segunda-feira, março 17, 2008

5 personagens

A Caminhante me enviou um même, a idéia é arrolar os 5 personagens mais marcantes da sua experiência literária. Ela fez um ranking na sua apresentação, mas vou colocar os meus aqui sem ordem de prioridade e importância, pois de fato não consigo metrificá-los.

Eis a lista:

Anna Karenina. Já faz tanto tempo que pousei os olhos sobre ela que perdi os detalhes do seu caráter, mas impressionou-me indelevelmente a sua intempestividade sentimental, os seus arroubos caprichosos e, o que nos transparece de maneira mais viva no seu drama, a vivência angustiante do vazio, até que ela encontra alguma esperança ou sentido no amor.

Bentinho. É o exemplo mais do que perfeito do efeito de um caráter cético na vida prática. Como é a vida de alguém que tem a desconfiança incrustada no peito? Eis Bentinho. A mesma narrativa contada por outros olhos provavelmente teria um tom mais conclusivo a respeito da suposta traição de Capitu, mas não pelos olhos céticos de Bentinho.

Príncipe. O que mais me chamou atenção em sua personalidade não foi tanta a sua imensa disposição para a compaixão, mas a consciência sofrida das suas limitações mentais. E acabei me compadecendo por ele ao longo de quase todo o livro.

Andrey Nikolayevich Bolkonsky. O que é a experiência de morte? Como enfrentar o medo da morte? Bolkonsky é ferido gravemente em uma batalha contra os franceses de Napoleão e durante duas semanas, em seu leito de morte, o vemos refletindo sobre essas questões. É a narrativa mais densa que já li sobre a experiência de morte, sobre o enfrentamento da própria morte. Cheguei até a idealizar uma morte igualmente lenta para mim, a fim de que pudesse degustá-la também aos poucos.

Sinclair. É um personagem tão sombrio quando deveria ser para alguém que se coloca desde cedo a árdua e sofrível missão de mergulhar em si mesmo em busca do auto-conhecimento. O enfrentamento das verdades pessoais mais duras é vivenciado com profunda consciência e introspecção. Não há muito espaço para o auto-engano.

domingo, março 16, 2008

nonsense

Eu peguei a conversa no meio, mas pude entender muito bem quando ela disse à amiga que não tinham ficado um segundo sequer em silêncio, que fora um jantar espetacular, que era uma pena não ter batido o físico e tal, que, de outro modo, nas palavras dela, ele seria o seu número certo de sapato. Acho engraçado falar de relacionamentos como se fosse uma questão de encaixar aqui e ali, parece que estão montando um quebra-cabeças, um freudiano diria que no fundo essa metáfora de sapatos, gavetas e sei lá mais o que é apenas uma camuflagem para a penetração. Faz sentido, porque a moça falou do físico e tal. E não sai da minha cabeça o seu critério para a seleção do perfil psicológico perfeito: nenhum segundo em silêncio, nem um, nem meio, nem zero. Eu, eu que sou um autista sem a indiferença do autista, que faço com isso? Eu me pergunto se essas pessoas que falam o tempo todo se lembram depois de tudo o que falaram. É, mas aí também tem um erro meu, por que diabos dar tanta importância assim à memória, à lembrança? As pessoas estão apenas ali falando, falando e falando e a única finalidade mesmo é falar, não é lembrar. Eu não, além de falar, quero lembrar, pois, enquanto falo e ouço, absorvo tudo que estou sentindo ao longo. Se não lembro, se não posso reviver essas sensações, que sentido teve falar tanto? Mas isso também é meio idiota. Para que reviver ali solitariamente impressões passadas se posso simplesmente viver novamente com muito mais vivacidade essas sensações? Daí que falar, falar e falar parece ser até mais coerente. Pode até ser, é que a minha preocupação com o sentido me impede de simplesmente falar, falar e falar sem nunca pensar. No fundo sou apenas o resultado de uma patologia, de uma anormalidade, alguém, como muitos outros por aí, que sofre de uma obsessão relativamente acentuada com o sentido. Tem cura para isso? Não sei. Tem droguinha para isso? Também não sei. Só sei que nada disso faz sentido.

sábado, março 15, 2008

Amor nos tempos do Cólera.

Logo depois de ter entregado à amada a sua primeira carta de amor, Florentino Ariza volta para casa febril, sofrendo todo o desespero da espera de uma possível resposta. Consolado pela mãe, ela lhe diz para aproveitar bem aquela dor, dor de amor, pois ela não iria durar para sempre. É o que penso das minhas dores, todas elas, exceto as dores físicas, é claro, falo aqui das dores da alma; essas eu procuro saborear na mais absoluta sobriedade, sem analgésicos etílicos ou qualquer outro amaciante entorpecente. Quero viver completamente as minhas dores, extrair delas todo o conhecimento possível, pois só assim mitigo o meu medo, e o que é mais importante, só assim me sensibilizo para o outro.

Lembro em especial agora das dores de morte, dores que nascem com términos, abandonos, finais e, claro, com a própria morte. Uma em especial é-me inesquecível, pela forma como me arrebatou, me consumiu e dilacerou ao longo de algumas semanas. Noites em claro, choro compulsivo, e o que era mais aterrador: impossibilidade completa de imaginar o amanhã, como se a mente estivesse amarrada no pé da cama e não conseguisse se projetar no além. E o além tomava a forma do próprio vazio. Chegava a sentir pânico com o embotamento da imaginação, a impossibilidade de sonhar, por mais que tentasse e esforçasse, não conseguia. Era-me mesmo impossível imaginar até as coisas mais banais do dia-a-dia, como tomar café da manhã, ir para a faculdade etc. Eu pedia desesperadamente pelas imagens, mas a mente recusava-se a formá-las. Tal desespero emocional infundia-se pelo corpo na forma de calafrios, náuseas e uma certa queimação da região lombar que até hoje não sei identificar muito bem o que é. Quando a dor psíquica é muito grande, o corpo se ressente também, se enfraquece. Penso nesses dias sem pesar algum, mesmo com um olho atento ao temor que me provocam, pois também me evocam um amor que já senti e desta lembrança eu gosto. É esperançosa.

O filme do título é bom, mesmo para quem já leu o livro, mas desaponta logo na primeira fala com o inglês canhestro saído da boca do Juvenal, ali estirado no chão, morrendo. Espanhol, por favor!

terça-feira, março 11, 2008

Fé em si mesmo

Se eu fosse recomendar um preceito para o bem-viver tal como o fazem religiosos ou membros de uma seita qualquer, ele teria a seguinte forma: tenha fé em si mesmo. Há outros que querem dizer a mesma coisa, mas sob perspectivas diferentes: seja sempre o seu juiz, seja fiel a si mesmo etc. Prefiro, no entanto, o primeiro, o termo "fé" ali é significativo e, ao mesmo tempo, paradoxal. Ele indica uma força irracional, um meio de se sustentar, de manter a confiança em si, mesmo quando todas as razões lhe indicam o contrário. Contudo, é paradoxal que ele apareça em um preceito quando ele é o próprio sustentáculo do ser e não algo que se possa escolher, seguir ou agir em conformidade por livre arbítrio. Ainda assim ele cabe naquela fórmula. Em se tendo essa força, ela se auto-propulsiona, ela leva o sujeito a segui-la.

domingo, março 09, 2008

Ato público

Chega! Hoje vou ter de contar. Guardei essa observação por muito tempo pensando que ela fosse incorreta, afinal, quando mudamos para uma cidade nova, chegamos lá de olhos arregalados, procurando por qualquer diferença comportamental, só que nos esquecemos que não mantínhamos os olhos assim tão abertos na cidade de origem e o que agora nos parece diferente na cidade nova talvez fosse habitual também na de origem. Enfim, julgamentos comparativos que não foram balizados por uma metodologia mais rigorosa são muito provavelmente errôneos. Foi com este medo que protelei o que logo lhes confessarei. Não que eu tenha me munido de uma metodologia muito rigorosa para atestar a verdade do meu juízo, mas considero a evidência reunida bastante razoável.

Na verdade, até hoje eu achava que o meu juízo deveria se limitar ao curitibano do sexo masculino. Mas eis que minha mãe, tendo passado oito meses em Porto Alegre, lança, sem que eu lhe tenha falado absolutamente nada sobre o assunto, o mesmo juízo a respeito dos porto-alegrenses. Fiquei imensamente surpreso na hora. Não que eu pretenda agora alargar o meu juízo e transformá-lo numa sentença regionalista, continuarei me limitando aos curitibanos, foram os que presenciei. No entanto, o fato de a minha mãe ter notado lá em Porto Alegre o mesmo que observo aqui sugere, pela diversidade das fontes de informação, que nossos olhos não estão, neste caso, tão carregados de prejuízo. Até porque a minha mãe não é do tipo antropólogo e se este comportamento lhe saltou às vistas, então é mais provável que de fato haja uma diferença comportamental do que ela tenha simplesmente notado algo que também é habitual na sua cidade apenas por estar com olhos mais abertos.

Tudo começou quando, andando em uma rua bem próxima do centro, de movimento considerável de carros e pessoas, observei um cidadão fazendo X. Achei um pouco estranho, mas na hora nem dei muito assunto, pensei se tratar de coisa de bêbado, apesar da claridade e do horário: meio-dia. Com o tempo, comecei a observar outros cidadãos fazendo o mesmo com relativa freqüência, e o que é pior, não se poderia dizer que estavam bêbados, de modo algum. Vi trabalhadores, jovens, adultos, vi até aluno da UFPR fazendo X ou pelo menos usava a mochila da instituição e se vestia como estudante, enfim, o ato não parece fazer distinção social ou de idade. Vi eles fazendo isso em ruas movimentadas em pela luz do dia. Não é nada recatado, não percebo nenhuma vontade de esconder o ato. Parece que fazem disso um assunto público mesmo. Um dia, para o meu espanto, vejo um moleque de uns 10 anos de idade fazendo X em pleno pátio do centro politécnico. O pai ao lado nada falou. Eu fiquei encafifado, ficava pensando, será que em Belo Horizonte faziam isso e nunca notei? É tão comum e despudorado lá quanto é aqui?

Em meu socorro vieram outros forasteiros, alguns paulistas, outros nortistas, compartilhando o meu espanto. Falando baixinho, quase segregando, relataram-me também as inúmeras vezes que viram curitibanos do sexo masculino fazendo X. Contaram-me a mesma despreocupação com o horário e o lugar que eu já tinha observado. Era o que me faltava para fortalecer a convicção do meu juízo e afastar a idéia de que estava sendo preconceituoso com os curitibanos. Ainda assim faço o juízo com certa timidez, pois é espantoso que um povo tão orgulhoso da sua civilidade, que não joga papel no chão, o que aliás muito me agrada, faça isso assim nas suas ruas de maneira tão despudorada e com tanta freqüência.

O que é X, afinal? Cansei de ver nessa cidade os seus espécimes masculinos abrirem sem vergonha suas barguilhas, retirarem seus equipamentos sexuais para fora a fim de regar a cidade com o seu amor uréico. Sim, já ouço o clamor indignado. Até parece que ninguém mija nas ruas em Belo Horizonte ou São Paulo. Claro que muitos mijam, eu mesmo já mijei. Mas na noite calada, na surdina, completamente bêbado, e ainda assim envergonhado, andando várias quadras até encontrar um beco bem escuro, olhando para todos os lados temendo o flagrante. O que me espanta aqui não é o fato bruto de mijarem, mas o fato de não sentirem vergonha, de não se preocuparem em se esconder, de não selecionar ruas vazias e desertas. Talvez em Belo Horizonte mijem nas ruas com a mesma freqüência que se mija aqui, mas como fazem isso na surdina, ninguém nota, ninguém vê, não é algo que salta às vistas. Aqui não, não há dia que caminhe umas três horas pela cidade sem ver uma instância do ato impudico. E segundo os relatos da minha mãe, acontece o mesmo em Porto Alegre. Vai ver é coisa do sulista fazer da mijada um ato público.

sexta-feira, março 07, 2008

Silêncio Introverso

O jeito é tomar o último copo e degustar o meu silêncio com a única pessoa que conheço apreciá-lo: eu. E no fundo, quando fico calado na companhia alheia, nem é por não ter o que falar, ou por não querer falar, é por desejar que a pessoa tenha, assim como eu, a oportunidade de voltar a atenção para as suas sensações e emoções de modo a aproveitar por completo o momento. Isso é coisa de introverso, eu sei. Não deveria tentar impor o meu jeito de ser ao extrovertido, ele não quer saber de silêncio, ele quer falar, quer dispersar, quer se movimentar, agir, não tem dessa de voltar para si para perceber melhor o impacto emocional do objeto/ser/pessoa que ele tem na sua frente.

E eu ali ao lado absorvendo e apreciando maravilhado a empatia que me infundia, mas é certo que ela não sentiu nenhuma e exasperava-se com o meu mutismo. Nessas horas penso em falar aleatoriamente qualquer coisa só para deixar o outro menos incomodado, mas acabo resistindo a essa idéia de não ser eu mesmo. Talvez esteja sendo um pouco egoísta ao agir assim, ao não tentar resistir ao magnetismo das minhas emoções internas, no entanto, o que a outra pessoa ganharia, além de uma falsa sensação de entrosamento, ao me perceber forçando uma fala que não saiu de mim naturalmente? Opto pela sinceridade silenciosa, mesmo que isto me custe a dolorosa percepção do enfado nos olhos alheios. Eu compreendo tudo isso muito bem, o que não me impede de sentir na pele o estranhamento que provoco.

quinta-feira, março 06, 2008

Homem vai na barbearia. Ponto.

Desde que cheguei nessa cidade meu hábito de cortar o cabelo ficou embotado. Aqui na minha quadra, há três salões, um deles supostamente unissex, pelo menos tem uma placa lá que o intitula assim. Por uma questão de comodidade, passei a freqüentá-lo, porém apenas de quatro em quatro meses. Nada contra o corte, que é bem feito até. O que me desmotiva a ir lá é o seu público majoritariamente feminino. Do sexo masculino, além de mim, só vi lá uma vez um menininho de uns 6 anos. Antes mesmo de chegar na porta fico envergonhado, a cara se avermelha ainda mais quando entro e todas aquelas mulheres me encaram interrogativas, como se eu fosse um criminoso por estar ali. "O que você deseja?". Fazer a unha do pé é que não, né minha cara?

Então que essa semana eu precisava cortar o cabelo, com esse calor, não o suporto muito grande. Acordei bem cedo para ver se encontrava o salão ainda vazio, só que exagerei na antecipação, estava fechado. Resolvi dar uma volta no quarteirão, passei ali no Mercado Municipal e lá dentro deparei com uma barbearia. Opa, vamos tentar, logo pensei. Entrei e sentei na poltrona de espera. Um sujeito nos seus 40 anos estava já na cadeira sendo servido pelos cortes do babeiro e um velhinho esperava também a vez. Ambiente silencioso, sem tagarelice e ao meu lado a gazeta do povo que, se não é um bom jornal, pelo menos é um jornal, pois lá no salão tinha só Caras, Gente e sei lá mais o que fofoqueiro que não me dizem respeito.

As conversas não foram ininterruptas, ao contrário, eram agradavelmente permeadas por silêncio, falou-se do caso da Colômbia, do governo, de carros e um pouco de futebol também, é claro, difícil faltar, o velhinho, quando me viu lendo a seção de economia, chegou mais perto para perguntar o preço da soja e me falou um pouco sobre o mercado da commoditie, mas sabe, tudo assim bem leve, agradável, pausado, nada histérico, nada muito pessoal, como aconteceu uma vez lá no salão, chegou-me uma patricinha, não, não sou eu que estou lhe dando esse rótulo, ela mesma se descreveu assim, estava cheia de trejeitos, chamando a atenção, e logo se pôs a narrar em alto bom tom e com detalhes sórdidos a briga que teve com a sua mãe na noite anterior; eu quase desesperado olhava para as outras mulheres esperando alguma cara de indignação ou mesmo de enfado, mas todas estavam muito bem sintonizadas e interessadas no relato, como se a novela da noite anterior continuasse ali. Nesse dia eu até queria um corte mais curto, mas quando a cabeleireira me perguntou pela primeira vez se estava bom, não pensei duas vezes, já fui me levantando, falando que estava ótimo e fugi dali o mais rápido possível.

Enfim, pela metade do preço tive um corte tão bom quanto o do salão e a minha espera foi adornada pela mais perfeita paz. Saí dali convicto de que lugar de homem é na barbearia.

segunda-feira, março 03, 2008

Algumas pessoas têm fé. Outras não a têm e invejam aqueles que a possuem. Por fim, há ainda aqueles que ignoram a fé por completo, seguem em frente sem se importar com a questão. Pascal chamou os primeiros de "felizes", os segundos, de "infelizes" e os últimos, de "loucos". Fui feliz até mais ou menos os treze anos de idade. Desde então venho oscilando entre a infelicidade e a loucura. Segundo Pascal, é claro. Confesso que a loucura tende a tornar a vida um pouco mais leve, sem o peso amargo do infeliz; contudo, desprovido da âncora dos felizes, você precisa ser um exímio equilibrista para andar sobre a corda bamba sem cair.

sábado, março 01, 2008

In-verdades à trois

- Hoje em dia todo mundo acha que pode dar palpite sobre qualquer coisa, todo mundo tem a sua opinião sobre qualquer assunto.
- É verdade...
- Você começa a discutir um assunto com uma pessoa e ela já vem logo te calando: "você tem a sua opinião, e eu tenho a minha". E o que é pior, ela acha que tanto você quanto ela estão corretos.
- E num é? (concordando em tom irônico com a indignação).
- É um absurdo. Se eu digo uma coisa, e a outra pessoa diz o contrário, ou eu, ou ela está correto.
- Evidentemente...(que tolinho, pensa secretamente)
- Assim fica tudo muito fácil e todo mundo vai para casa com ares de sabichão.

Sim, sim, a senhorita Verdade é uma mocinha muito da metida e vaidosa, difícil de ser conquistada, os mais céticos diriam impossível obter o seu coração, quanto muito a sua atenção; já os relativistas, gozadores da vida, chamam de "Verdade" a rapariga mais barata da esquina, e enfiando a mão no bolso, saem de mãos dadas cada qual com a sua. Desfilam esnobes pelas ruas.

Há verdades psicológicas por trás disso tudo. Como vamos chamar esse senhor que anda atrás de uma moça que nunca viu e que acredita piamente ser capaz de reconhecê-la quando lhe pousar as vistas? Que sabe ele dela? Na verdade, nada, nem mesmo se ela existe, embora já tenha se convencido da sua existência e delire com a sua virgindade. Parece que nasceu com essa convicção inscrita no peito. Na sua alma, notamos o carimbo da sua verdade psicológica: sonhador frustrado. Refugiando-se em seus sonhos e delírios, ele vive até com uma certa animação a sua frustração diária do desencontro.

Esse senhor tem um amigo, um falso amigo, para dizer a verdade, que anda em sua companhia para tudo quanto é lado: o cético. Este aí não passa de um fingidor, minha gente. No fundo, bem secretamente, ele não acredita que a moça perseguida pelo seu amigo exista. Mas ele jamais lhe confessa tal coisa. Faz justamente o contrário. Ele pega na mão do amigo, meio assim viadinho mesmo, e sai com ele pelas ruas fingindo que a procura também, mas sua intenção secreta é destilar o sadismo e rir-se por dentro com a frustração do amigo. Sempre que o vê arregalando os olhos cheios de esperança diante de uma moça, ele chega bem pertinho do seu ouvido com uma dúvida penetrante. Que prazer sente em vê-lo chorar! Tanto ódio só por invejar a esperança do amigo e apenas nesse ódio encontra o sentido da sua existência parasitária.

Que sujeirada! O relativista é um piolho de puteiro, o sonhador, um lunático frustrado e o cético, um infiel invejoso! Que balbúrdia! Você me coloca o relativista para falar do cético, o cético, do sonhador e o sonhador, do relativista. Opa, e agora, quem está falando? Isso não é justo, quem ficará com a palavra final? Ora, pouco importa. Na memória da platéia, vence quem gozou mais.