segunda-feira, março 31, 2008

Rafael

Quanto de incerteza Rafael pode suportar? Ele se pergunta. Ele sente a corrosão da sua alma com cada uma das questões que se coloca. Chega a arder, é como se a cada dia cortassem um pedaço de si. E para cada certeza que perde, aparece um medo. Sua alma é assim cheia de hematomas emocionais, ultra-sensível ao toque. Hoje sentiu que todos o desacreditavam, que não havia ouvido que lhe desse mais confiança e assim começou a duvidar dos próprios relatos que fazia de si mesmo. Seria ele mesmo confiável? Seus próprios olhos não poderiam estar sempre a enganá-lo? Rafael se amedronta ao pensar que talvez ele não saiba quem é. O que afinal ele teme? E se não sabemos quem somos, o que se seque daí? O que há para temer? Seria talvez o fato de não poder olhar para si e encontrar um terreno sólido onde pisar e, assim, ter onde fincar a convicção de suas decisões? "Fiz assim, pois sou assado". Não, não é isso. Rafael sabe que a diferença entre agir com maior ou menor convicção tem mais um efeito externo, persuasivo, do que interno, acalentador. Pouco lhe importa se a sua decisão é mais ou menos convicta. Com efeito, ele sabe ainda mais, ele sabe que a sua convicção pouco tem a ver com o seu conhecer-se. Suas decisões o definem, no clichê existencialista. O grau da convicção exibida na decisão não emana de coisa alguma que ele conheça, ela é também definida e formada no próprio ato de decidir. Ainda assim, Rafael teme não se conhecer. O que há de tão ruim em não saber quais predicados aplicar a si?

Rafael conclui: a dificuldade toda está em viver a tensão de se conhecer sem se conhecer. Nem é tão paradoxal o que ele pensou quanto parece à primeira vista. Rafael não se deixa enganar, duvida tanto, levanta tantas possibilidades, que afasta de si qualquer predicado, qualquer assertiva, não assume nenhuma, não se deixa apanhar, nem se apreender pela linguagem, pelos conceitos. Ele se vê, assim, um nada, um vazio. Ele não se conhece. Contudo, há um quê de si com o qual ele se encontra e se confronta no seu viver pela emoção e o sentir. O fato de a decisão não estar assentada num solo duro do conhecer-se afirmativo não faz do sujeito uma marionete, um projeto para qualquer coisa, um nada que pode ser tudo. Não, definitivamente, não. No ato da decisão, Rafael encontra-se consigo mesmo da maneira mais intensa e intuitiva possível, ele se sente por completo durante e pela decisão. Esse sentir que lhe dá o conhecimento de si jamais é verbalizado, mas é automaticamente transferido, na verdade, já está imerso nela, na convicção da decisão. Quando Rafael decide contra o que ele é, a própria decisão já vai se tornando branda em seu ato. Ele já decide enfraquecido, desgostoso de si, às vezes, até arrependido. Quando, ao contrário, ele se encontra na decisão, o ato é pleno de vida, Rafael se vê todo comprometido no ato, até suas últimas células. Não, esse contato emocional que Rafael tem consigo ao decidir não é sensualista, não é efêmero, nem arbitrário, é de fato sua apreensão mais absoluta de si, ainda que ele não possa lhes dar qualquer razão a favor. Tampouco pode duvidar que assim seja. Ele se conhece sem se conhecer. Então, o que há de ruim em não se conhecer a priori é a espera angustiante de só se conhecer a posteriori, pois Rafael tem muita necessidade de si e sabe que nem toda vivência é um encontro consigo. E ele teme os desencontros.

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