segunda-feira, janeiro 28, 2008

Elas

Alfredo teve um sono agitado nesta madrugada, dois amores passados lhe visitaram em sonho, primeiro um mais recente, fresco não só na memória, como na sensibilidade, em seguida, um bem mais antigo, do qual ele se lembrava muito esporadicamente e com boa vagueza. Ela(1) lhe convidou para um jantar em sua casa, comemorava o namoro, que logo se transformaria em casamento. Ela(1) queria apresentá-lo, carregava na consciência uma finalidade ilustrativa: Alfredo precisava aperceber-se do que ele não tinha, como se fosse culpado pelos seus genes. Seu futuro marido é atlético, alto e forte. Em todo o resto Alfredo é mais e mesmo assim ela(1) preferiu ter o que mostrar às amigas do que se sentir acompanhada apenas no refúgio do lar. Durante o jantar, Alfredo viu nos seus(1) olhos infelizes a resignação e o rancor dirigidos respectivamente ao namorado e a ele. Ela(1) desejava o impossível, queria extrair o melhor de cada e cozinhá-los numa única forma. O futuro-tolo-marido foi o único a não perceber o clima angustiante na mesa, os olhares engasgados, dali saiu para o sofá com a felicidade própria de um glutão e o sono da digestão.

Ela(2) apareceu sem cenário, em um sonho de fundo branco, nos braços, carregava uma criança, fruto do casamento recente. Enquanto brincava e sorria com o seu filho, ela(2) queria apenas mostrar o que Alfredo havia perdido, ao não ter ousado roubá-la de seu namorado, pois naquela época já quase esquecida por Alfredo, ela(2) o amava e ele a ela. Alfredo era escrupuloso demais, não se atreveria, achando que o amor dos outros era mais puro e merecedor que o seu e ela(2) temia a solidão, como a maioria das mulheres. Nos olhos dela(2) não havia rancor, apenas uma suave melancolia, que agora se apagava com a presença alegre da criança. Alfredo não soube ao certo a que ela(2) veio em seu sonho, ela(2) tinha em seu semblante uma mensagem pessimista e outra otimista, como se lhe dissesse: "por tuas escolhas, perdeste algo para sempre, mas por elas poderás ganhar o teu futuro, aprendas a domar este medo que nos afastou". Mesmo que não as tenha dito, foi com essas palavras que acordou no peito; ao se levantar, sentiu-se um pouco melhor, diferente, pois hoje, lembrou-se, já é capaz de rasgar cartas de rivais.

domingo, janeiro 27, 2008

Promessa

Há quem se ache virtuoso por cumprir uma promessa. Olha-se no espelho com ar de dignidade por ter mantido a palavra que dera um ano atrás ou até mais. O prazer consigo mesmo dispara quanto mais espinhoso e sangrento for o caminho. "Lutei, resisti e venci!", dirá. Lembrará desses dias de sofrimento com sabor de heroísmo. Sim, lutou, massacrou e eliminou cada uma de suas vontades desvirtuantes. Este homem ou mulher agora se sente limpo, mas trata-se de uma limpeza cadavérica; lipoaspirou toda a sua carne, pois lhe soava pútrida e ignóbil. Contudo, era a própria carne que cortava, era a sua própria vida que matava e suprimia. E para que? Para aplacar a sua consciência débil, incapaz de conviver com a própria imundice, com as contradições que habitam o peito de cada um. Também o amor, mantido pelas juras, se transforma na mais monstruosa pulsão de morte quando a sua brasa já não é mais alimentada pela vontade íntima, mas sim pela obrigação, pela consciência. O pseudo-amante assim embriagado pelo odor límpido da sua obrigação, arrotará com satisfação todo o martírio que se impõe pelo outro, contará aos quatro cantos tudo que deixou de lado pelo outro, tudo que fez para estar do lado outro, como se o amor tivesse mesmo algo de heróico. Ele diz que se sacrifica com prazer pelo outro, pois o ama. Mentira! Não é ao outro que ele ama, mas a sua obrigação de amar, a sua necessidade de amar, a sua vontade de estar limpo e cheirar à pureza. O amor por um outro, na sua manifestação pura, simplesmente não contradiz o seu objeto e, o que é mais importante, muito menos contradiz com sacrifícios aquele de quem emana, pois nasce uníssono numa pulsão de vida orientada pelo outro. O amor genuíno é vida plena, sempre e talvez por isso ele não seja tão constante quanto gostaríamos em nossa oscilante existência.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Você, eu e nós

Ah, você voltou, mesmo depois de tê-lo posto na rua aos chutes, dando-lhe todas as minha razões, enumeradas, uma por uma, eu disse que nunca mais queria te ver, eu disse, e eis aqui você novamente, deslumbrante, fálico, erótico até, cabelos esvoaçantes, gastos, como a de um bêbado acostumado a dormir na sarjeta, e fui eu quem os gastei, só eu, magistralmente, sempre, não, saia já, não quero vê-lo, por que vieste? por que? Sabe que não resisto, não hoje com essa gravidade tão rarefeita...Eu já tinha prometido a mim mesmo que não voltaria a lhe por as mãos, eu, eu mesmo disse outro dia que era uma vilania aproximar de você e agora me expões a essa situação, a essa tentação...não consigo nem mesmo tirar meus olhos de ti, que força é essa meu deus? Poupe-me, poupe-me, por favor, há pessoas aqui, o que elas vão pensar vendo essa esquizofrenia tão manifesta? Danem-se, oh, quanta grosseira, danem-se, já não me importo, e Ela, e Ela, sempre a me olhar com reprovação, disse-me que tinha nojo da estranheza, que gosta só da normalidade límpida, do perfume insonso, do sabor aquoso, então ela me jogava aqueles olhos grandes e imponentes, escaneando-me de cima à baixo e eu me encolhia todinho, pequeno, curvando-me sobre mim mesmo, como se fosse possível esconder as aberrações que cortam a minha pele de fora a fora. Foi melhor assim, eu me odiaria se tentasse mudar o meu cheiro por causa dela. Eu o adoro assim, aliás, desde pequeno que me cheiro com prazer, banhado ou não, inspiro com o nariz bem tateado na pele até não conseguir mais, sinto a mim, só a mim. Ela foi embora, concluindo, "Diferente demais!". Obrigado, respondi. Se para Ela não me importei em ser todo eu, não é diante de vocês que eu vou me reprimir, tinha até graça. De mais a mais, Ela já é passado muito bem assentado. Não é por Ela que vieste hoje aqui, sei que não. Eu o odeio e, no entanto, estás aqui, fiel, como se me pertencesse desde sempre, como se não me fosse possível ser verdadeiro sem você, sem as suas pinceladas tão marcantes e, no entanto, você é vil, completamente vil. O que seria de mim sem você?

domingo, janeiro 20, 2008

Dor de arreia

Exatamente assim, você não leu errado, "dor de arreia" é o nome que duas crianças criativas, eu e a minha irmã, demos à diarréia em nossa inocente ignorância. Diria até que com uma lógica perfeita. "Dor de cabeça" não denomina uma dor que sentimos na cabeça, e "dor de dente", uma dor no dente? Por analogia, a palavra "diarréia", soltada veloz, de chofre, era interpretada como "dor de arreia", afinal, a diarréia vinha acompanhada de uma dor, então só poderia ser dor de alguma coisa, claro, a dor de arreia, ainda que não soubéssemos ao certo o que era a arreia, por certo alguma coisa dentro das nossas barriguinhas. Assim pensávamos. Os pais achando graça nisso tudo demoraram a nos revelar a verdade.

E veja só, se quisermos viajar, a coisa faz mais sentido ainda. Diarréia tem a ver com soltura intestinal. Da "arreia" vem o "arreio", usado em cavalos para retê-los ou soltá-los na andança. Logicamente a arreia é o dispositivo muscular por meio do qual o intestino se prende e se solta. Daí a dor de arreia, quando há algo errado e doloroso nesse dispositivo.

Pois sim, quando eu tiver uma filha eu lhe ensinarei "dor de arreia" e segregarei em seus ouvidos o absurdo médico de falar "diarréia", palavra tão sem lógica e sentido na cabeça de uma criança que se depara de uma maneira mais imediata com a dor e os seus diversos tipos. É, é isso o que farei.

sábado, janeiro 19, 2008

Medo

Ontem senti medo sim, na casa de minha irmã, em Bragança Paulista, uma certa apreensão percorria-me o corpo ao pensar que teria de entrar na infindável São Paulo por um lado e encontrar uma certa saída do outro lado, completamente sozinho, sem nunca ter passado por lá antes de carro. Mandei mensagens para várias pessoas que talvez já tivessem passado pelo mesmo, buscando alguma informação reconfortante, mas só recebi de volta palavras de conforto moral, muito bem-vindas, é claro. O medo tomou uma tal dimensão que cheguei a baixar o mapa rodoviário do Estado de São Paulo em busca de uma rota alternativa, que evitasse passar pela capital. Achei uma, passando por Jundiaí, Itu e Sorocaba para depois pegar a Régis Bittencourt já na metade do caminho. Desisti por ser igualmente complicado, todas essas cidades são de um porte razoável e também nunca estive nelas. Até a minha irmã ficou um pouco apreensiva e me ajudou a procurar outras alternativas, numa dessas, levou-me até o centro do Estado de São Paulo, depois eu desceria pelo meio do Paraná, passaria por Ponta Grossa para enfim chegar em Curitiba. Uns 300 quilômetros a mais. Foi quando eu percebi a dimensão descontrolada e patética do meu medo. Era preciso enfrentá-lo e domá-lo antes que ele me dominasse por completo. Assunto encerrado e decisão tomada, iria passar dentro de sampa mesmo. Muni-me de um mapa da cidade e fui dormir para descansar. Acordei no outro dia ainda um pouco apreensivo, a cabeça confusa com os sonhos de estrada, mas resoluto. Tomei o café, abracei a minha irmã quase choroso já com saudades e parti ao encontro do meu destino.

Bem, desnecessário dizer que o desconhecido tem um efeito intempestivo sobre a imaginação, contribuindo para o surgimento de medos desmedidos. Claro que fiquei tenso, pois estava sozinho e tinha de prestar atenção no trânsito e nas placas, qualquer erro poderia significar algumas horas na busca do caminho correto. Quando você tem alguém de copiloto te guiando para onde ir, fica bem mais fácil. Mas tirando esse excesso de tensão, de atenção redobrada, foi muito tranqüilo, entrei em São Paulo, peguei a marginal e fui indo até aparecer (o medo era, e se não aparecessem?) as placas indicando a Régis Bittencourt. Quando elas apareceram, fui só seguindo. Depois de mais ou menos uma hora eu já estava aliviado fora de sampa.

Por que estou narrando tudo isso aqui para mim? É que eu fiquei pensando em como é ruim ter de enfrentar absolutamente tudo sozinho, ainda que isso me ajude a ficar mais forte de alguma maneira. Confesso que senti um certo quê de tristeza com este pensamento.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Amor

Ele amava tanto, mas tanto que chegava a lhe doer a razão, saia louco a cata de cada palavra dela que fosse, até em papel rasgado, costurava-os depois interpretativo, sorria imaginando-a pensando, como se a sentisse por dentro. Diante dela, emudecia por completo, queria ouvir-lhe tudo, tudo, tudo. Mas ela era muito arredia, tinha um coração por demais sangrado, passou a querer a amar pela razão. Então fugiu assustada, enxergou o amor dele como loucura.

Casa

Esta casa, onde já não tenho mais um quarto, sempre me assombrou pela sua fauna diversificada. Agora não, nas suas paredes velhas e descascadas, restam apenas as lagartixas, bem gordinhas, é verdade, pois no verão são abençoadas pelo excesso de pernilongos. Desde que fiquem ali na sala, não me incomodo. Não sei se iria querer dormir com uma no quarto onde 30 anos atrás fui feito. Não combina.

Nos meus primeiros anos de vida, a selvageria por aqui era mais intensa. Nos dias de chuva, bastava ir até a garagem para observar as rãs que buscavam refúgio no interior de casa, depois vinhamos com a vassoura devolvê-las à sarjeta. À noite, ao menos enquanto o terreno ao lado permaneceu baldio, era a vez dos ratos invadirem a cozinha em busca literalmente do queijo mineiro que aqui nunca faltou. Bem planejada para essa terra infernal, ela tem uma claraboia em uma de suas extremidades, permitindo uma agradável ventilação; em contrapartida, uma passagem desimpedida para os ratos da vizinhança. Lembro de armar as ratoeiras com a Dona Maria e lembro também de ver pela manhã bem cedo, com um certo nojo e terror, o rato ensangüentado, quase partido ao meio.

O banheiro que ficava imediatamente ao lado do quarto onde dormíamos eu e a minha irmã era literalmente sombrio. Suas pequenas basculantes eram insuficientes para que o sol lhe desse um tom agradável e aceitável. Mas o motivo principal para este cômodo até hoje me causar uma impressão desagradável, diria até um certo medo angustiado, é outro: foi lá que me deparei umas três ou quatro vezes com aranhas caranguejeiras. Numa destas, eu já estava sentado no vaso fazendo as minha necessidades, quando eu a vi saindo debaixo do cesto de roupas, enorme e imponente, dirigiu-se para a frente da porta, que estava fechada, e ali ficou, impedindo-me a retirada. Então com seis anos fui apresentado ao pânico. Ele foi-me tão monstruoso que já não lembro mais o que se sucedeu dali em diante. Gritei e muito.

Depois adolescente, morando em Minas, notei novidades quando certa vez vim passar aqui as minhas férias. A noite veio caindo e logo percebi uma movimentação para fechar as janelas. Bati de peito, isso não, com esse calor? Nem pensar! Logo me explicaram que, com a "urbanização" do lote vizinho baldio, a derrubada das mangueiras que ali habitavam e tornavam o meu dezembro suculento, os ratos evoluídos, vulgo morcegos, arranjaram novo pouso e morada no telhado de nossa casa. Nessas férias mesmo tive que lutar com um que se perdeu aqui dentro.

O episódio mais bizarro aconteceu ainda na infância. Estávamos todos na sala assistindo ao Fantástico, que, na década de 80, era certamente dirigido por um sádico, com seus fundos musicais assustadores e a voz grave do Cid Moreira pedindo aos pais que retirassem as crianças da sala em virtude das fortes cenas que viriam a seguir...eu e minha irmã ficávamos atrás da parede escutando os gritos e imaginando o terror. Se tivéssemos visto as cenas, possivelmente o medo seria menor. Mas como vinha dizendo, estávamos na sala, meu pai deitado no sofá e eu e minha irmã empoleirados nele. Foi quando eu apontei para o rodapé da parede e disse quase rindo com os meus inocentes sete anos, "Pai, olhe, é um cobra". Acostumado com a nossa fauna diversificada, ele retrucou sem olhar. "É só uma minhoca, filho". Eu já tinha visto minhocas e a achei muito grande para ser uma, resolvi insistir. "Não é não, é um cobra e ela está indo para o meu quarto!". Meu pai olhou então, e só me lembro dos seus olhos ficando esbugalhados de terror ao notar viva e colorida a jararaca venenosa se rastejando pela sala. Depois disso foi um deus nos acuda, eu, minha irmã, minha mãe pulando para cima do sofá e o meu pai e a Dona Maria correndo atrás da cobra com vassouras. Lá se foram mais quinze minutos de pânico até darem um fim à pobre coitada que provavelmente havia se perdido do leito do Rio das Graças.

domingo, janeiro 13, 2008

Cherie

Ela tem o hábito higiênico de apagar meticulosamente todos os seus rastros, nenhuma pegada é deixada para trás, como se fosse possível trespassar uma pessoa sem lhe alterar um fio de cabelo, um átomo. Ela gostaria de ser de um outro mundo, como quem interagisse com os homens incausadamente, sem deixar efeitos. É aí que você se engana, cherie, a impressão na alma é indelével, só a morte apaga. Depois que se deste a mim, por qualquer perspectiva ou ângulo que seja, não podes mais tirar-se de mim. Não mesmo.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Cancelamento

Preciso de um único funcionário ou qualquer outra coisa violentável e representativa da Caixa Econômica Federal sobre a qual eu possa despejar de maneira concentrada, focada e com extrema violência e sadismo, sem o menor sentimento de culpa ou remorso, toda a minha ira acumulada ao longo de duas horas estiolantes e irrecuperáveis na tentativa de cancelar um mísero cartão de crédito.

Liguei ao todo 8 vezes. De uma maneira mágica e com profunda coincidência, espantosa até, sempre que lhes anunciava o motivo do telefonema, o cancelamento do cartão, a ligação caia alguns segundos depois. Evidente, a instituição financeira deve ter fortes vínculos com as instâncias divinas, zelosas em manter nas cercanias daquela a ovelha desgarrada e lucrativa.

Qual o motivo? Eu quero. Hã, não entendi. Estou a fim, sacou? Preciso saber o motivo. Veja bem, senhor, senhora ou senhorita do Marketing, das Vendas ou de que setor diabólico for, preste bem atenção e instrua os seus subalternos da telechateação com a minha instrução: quando, ao ser ser interpelado por um motivo, o cliente declarar a sua suprema volição, seu inalienável arbítrio sobre as suas decisões, não tente lhe extrair uma outra motivação marginal, como se estivesse sendo coagido por ela. Esta busca patética e imbecil só vai irritar ainda mais o cliente que agora absorto se vê obrigado a digladiar com uma voz que insiste em não compreender o simples e quase monossilábico "eu quero!".

domingo, janeiro 06, 2008

Se...

Se, por assim dizer, e aqui a suposição vai longe da atual realidade, da minha solteirice sem paternidade, mas vamos lá, se a minha filha chega para a sua mãe, então minha namorada/companheira/esposa, com um livro nas mãos e pede, quase implorando, com a sua vozinha doce e curiosa de criança, para que ela leia uma história e esta mesma mãe, prostrada em um sofá, abraçada à preguiça a que todos nós temos direito uma hora ou outra, lhe responde com a negativa em favor de um programa televisivo qualquer, um filme que seja, na melhor das hipóteses, então, neste mesmo instante, estarei lhe comunicando a separação e, claro, a filha virá comigo.

Ah, futura namorada/companheira/esposa, não seja atroz, lhe negue um banho, um lanche, uma roupa, um presente, mas, por favor, não lhe negue a leitura de um livro!!! Isso eu não perdôo.

sábado, janeiro 05, 2008

Humilhação

Pior do que ver uma criança chorando é ver um homem humilhado, possesso na sua dor, completamente encerrada pela sua fraqueza; a fúria fervilhando vermelha nos olhos, de onde ela não sai jamais, mas está ali estampada para qualquer um ver. O humilhado não tem forças para irradiar o seu ódio, de outro modo ela findaria antes mesmo de nascer, no tapa reativo, no "não, isso eu não aceito!". Sofre moralmente e emocionalmente. Seu ódio contido só lhe corrói, veneno mortal ao amor próprio. Ele fraquejou, não o conheço, não sei seus motivos, as convenções sociais que lhe passaram pela cabeça, o poder alheio que estimou, mas calou-se, mordeu-se por dentro, enrolou a própria língua. Eu vi quase de perto, atento, e ele notou que o via, o que, infelizmente, só ajudou a aprofundar ainda mais a sua humilhação, mesmo que eu estivesse lhe dizendo, "oh não, eu entendo". O melhor era não ter entendido, não ter visto nada.

O ofensor, por seu turno, não parecia estar minimamente perturbado, agia com tranqüilidade e desenvoltura, como se aquela violência irrompida de suas mãos e boca fosse o seu natural. Imagino mesmo que fosse. Tanto orgulho, tanta força, tanta vontade de se expor e se mostrar que qualquer sensibilidade mais aflorada sente-se mesmo humilhada na sua presença. Seria diferente se ele tivesse a intenção de ofender. Mas ele sequer parecia perceber a humilhação do ofendido, seguia rente, sem nem encará-lo.

Eu fico me perguntando, independentemente da força/vontade de cada um, vocês não têm curiosidade de saber o efeito do que diz e faz no seu interlocutor?