segunda-feira, dezembro 31, 2007

O gosto do saber

Várias pessoas já me disseram sentir angústia por notar a sua impotência e incapacidade de conhecer tudo o que há para conhecer. O tempo é escasso, o trabalho demanda especialização, o bolso não é suficiente para tantos livros, alguns assuntos estão muito longe da sua compreensão etc. A mim não angustia ter de lidar com essas diferentes facetas da finitude humana. Claro que sou mordido pela curiosidade e quero sempre saber mais. Mas sem alvoroço. O conhecimento é como um prato refinado de comida, deve ser apreciado e degustado lentamente. Para que comer com pressa? Só para poder dizer "eu sei!"? Sim, você sabe, mas...até quando você saberá? O que me angustia de verdade não é pensar vagamente em coisas que eu não sei, que, justamente por não saber, sequer tenho como imaginar a não ser de modo bem confuso; o que me angustia é saber muito concretamente, de modo bem definido, que eu já não sei mais coisas que um dia eu soube, o que me angustia é saber que o que eu sei se esvai num jato contínuo na mesma velocidade, na mesma vazão com que aprendo novos assuntos. Eu me angustio pela perda real, não pela ausência do indefinido. Prefiro comer devagar sim, lentamente, tentando absorver e apreciar toda a variação de gosto e textura do alimento. Estou certo que assim a sua influência sobre o meu organismo será mais duradoura e mesmo mais profunda e intensa. Acaso se lembrará do gosto da comida quem a comeu de chofre, em segundos, mal mastigando? Talvez se lembre do mal-estar ocasionado pela gula e só. Sinceridade, eu não quero mesmo saber tudo, eu quero ter fruições intelectuais, quero sentir aquela comichão despertada pela compreensão que pouco a pouco vai se alargando e envolvendo o assunto estudado, que percorre solta e faceira nas suas associações, não quero apenas saber mais, quero também sentir e perceber o impacto deste saber em cada uma de minhas células. Enfim, quero a apreensão total de cada saber, quero mastigar o alimento completamente na minha boca, onde tenho nervos para senti-lo, até que derreta por inteiro. Nada de acúmulo eciclopédico, burro e voraz de vários saberes, o qual, aliás, causa náusea e gastrite.

domingo, dezembro 30, 2007

Milyang

O marido morreu em um acidente, e o filho foi brutalmente assassinado após sequestrado, e ela, elo terreno entre ambos, findou-se por dentro. Lágrimas, dor, desamparo. Brevíssimo, o amor reaparece, pelas mãos intangíveis de Deus. Ela o aceitou e sorriu, encobrindo a sua tristeza incrustada. Paralelamente, todo o tempo, ele estava lá, apoiando-a em tudo, respeitoso, amigo, dando-lhe um amor que ela rejeitava indignada. E, no entanto, as mãos dele eram tangíveis. Quanta incongruência! Arrisco um palpite explicativo: a dor foi tão intensa que lhe deixou um medo indomável, para casos assim, Deus é perfeito. Ele é imortal, seu amor incessante não se esgota e ele jamais abandona, a não ser quando finda a fé. Fé acabada, deus, agora minúsculo, inexiste, nenhuma dor por abandono. Na encruzilhada entre o palpável e o impalpável, o medo lhe soprou baixinho o veneno da fantasia. Fiou-se num amor inumano, sem decepções, baseado inteiramente na sua ilusão, na sua crença e, pasmem, sobretudo na sua vontade de sobreviver, perecer permanecendo. E, no enanto, o amor real, brutal e humano estava bem ali do lado dela, bastava abrir os olhos e estender as mãos. O ser humano amedrontado, porém, nega-se a viver. Segue-se mais uma tragédia. Mesmo esse amor cristalino, ideal, cheirando adocicado, foi capaz de lhe trair. Ela se preparou para perdoar o seu ofensor, o assassino de seu filho. Tentativa de resgatar a dignidade pela humilhação, pois não há nada mais ofensivo que o perdão, exercício puro da vontade de humilhar. Lá chegando, porém, sentiu funda a facada divina fincada nas costas: encontrou o seu ofensor sereno, em paz. Deus já o havia perdoado e expiado a sua culpa. Sucedeu-lhe a loucura. E ele imperturbável no seu amor permaneceu ao lado dela. Ao vivo e a cores em Secret Sunshine.

sábado, dezembro 29, 2007

Calor

A umidade brota da pele impiedosa, rompe poros, escorre incomodamente pelo corpo e deixa a sua marca salgada. Olho para a cama, os livros que lá estão, a vontade de ler, de apropriar-me de algum pensamento, mas sinto um cansaço só de me imaginar lendo suando, as palavras se arrastando, a concentração embotada. Realmente não dá. Realmente eu não poderia. Não aquentaria. Aquela oferta de fazer pós-doutorado em João Pessoa foi bem recusada. Eu não suportaria por muito tempo. O ser humano se adapta, mas bem, uns se adaptam mais facilmente que outros, há toda uma fisiologia particular, particularíssima a se considerar, eu sou calorento, é fato. Aos 15 graus ainda estou só de camiseta. E de mais a mais, chega dessa vida de cigano. E que família a nossa, ein, estava comentando mesmo esses dias com a minha irmã. Migrante desde os antepassados. Conosco não foi diferente. Eu aqui, ela em São Paulo, o pai no Espírito Santo, o irmão em Porto Alegre, a mãe em Minas. O mesmo destino para a família do irmão da minha mãe, que, durante toda a minha infância, foi muito próxima da gente. A prima querida no Rio, a irmã dela em Natal, o irmão em Tocantins, a mãe nos confins do Pará, o pai no Espírito Santo. Poxa, só está faltando alguém no centro-oeste. Alguém tem de ir para lá! Nem olhem para mim. Cuiabá, imagine, uma cidade que fica num fosso, abaixo do nível do mar, onde 30 graus é fresco, brandura e suavidade. Família de curiosos, isso sim. E agora volto ao Espírito Santo, passar uns dias, rever o pai, a dona Maria, minha segunda mãe, a sua comida boa, o seu colo gostoso, mas sinto um peso aqui sobre a minha pele, uma ardência queimada, só de imaginar o calor natural do vale do rio doce com o seu por do sol tão lindo quanto quente, incandescente. Pequeno, nos dias de mais violento calor, eu pegava gelo para chupá-lo ou passá-lo pelo corpo, depois ia me deitar no piso de ardósia, lá na varanda, esperando pelas esporádicas correntes de vento e ria de prazer quando elas vinham. Ficava ali horas, às vezes com um livro, outras com algum brinquedo ou apenas olhando as formigas que traçavam o seu caminho entre os vãos das pedras. Só tem uma coisa boa nessa história de calor, minha carência baixa para zero, sai de perto, não tem abraço, nem beijo, nem nada. É, paz de espírito no meio de um inferno corporal.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Serra Verde Express




Depois que ela nos entregou as latas de refrigerante, explicou: "abre de baixo para cima, puxando o pino, está bem?". Eu e minha irmã nos olhamos com ares de incompreensão. Procurei pelas minhas fraldas, meus pais ou qualquer pessoa mais velha que pudesse ser legalmente responsável por mim e pela minha irmã. Ninguém, estávamos sós, a mercê da própria sorte e, para falar a verdade, adultos. A frase foi lançada de chofre sem pensar, só pode. A despeito dessa bola fora, a guia foi super simpática, loquaz e cativou-me com o seu sorriso largo e amistoso. Pensei até em fazer o passeio novamente só para vê-la outra vez. Para falar a verdade, eu sempre caio de admiração por essas pessoas que lidam com o público com desenvoltura, seja a simpatia fingida ou não. Elas têm um talento que eu definitivamente não tenho. Admiro mesmo, fico olhando embasbacado.



Mas vamos ao que interessa: são três horas e meia de puro verde, serra, pontes, túneis, corredeiras e represas. Valeu à pena sim. E preste muita atenção nessa dica: opte pelo lado esquerdo do trem. Ao comprar a passagem, vão lhe dizer que a venda é seqüencial. Se der azar e a próxima for do lado direito, espere aparecer alguém para comprá-la e compre logo em seguida a do lado esquerdo. A melhor vista da serra, panorâmica, que se estende até o mar, está desse lado. Não sabia disso e me senti prejudicado.



A segunda dica é que não tem muita coisa para fazer em Morretes além de comer o tal do barreado, prato típico do litoral do Paraná e que, diga-se de passagem, ainda não me convenceu. Assim, não façam a burrice de comprar a passagem de volta, no caso de preferir o retorno de ônibus, depois do almoço. Não pensamos nisso e ficamos presos na cidade até às 16:00, num calor infernal. Pelo menos conseguimos um banco debaixo de umas árvores na beira de um rio e ali ficamos lendo por umas duas horas.



E se você, como eu, for muito calorento, considere fazer esse passeio em outra época, no outono ou inverno. Estava insuportavelmente quente.

Vergonha!

Vergonha, vergonha! Sim, é uma verdadeira baixeza lançar mão da compaixão para sensibilizar o outro quando o seu poder de sedução é nulo. E por toda a parte vemos essa vilania. Quando o seu brilho natural não apetece aos olhos do almejado, quando, ao contrário, ele lhe vê fosco, você começa então a pintar e desenhar o seu sofrimento, a sua dor. Que vulgar! Você pensa, se não sou admirado, que ao menos me distancie da indiferença pela compaixão. E assim começa a se dedicar à pintura dos sentimentos, aperfeiçoando-se no uso dos tons de cinza e do negro na arte do auto-retrato, tornando-se mestre na retórica do sofrimento, amplificando, exagerando e inventando detalhes inauditos da sua dor. Quer assim ver o outro chorando por ti, dispondo-se a seu favor, com ar protetor e consolador diante da sua fraqueza vilmente manifesta. Não, nem sempre isso é consciente, mas pouco importa, é baixo. E talvez pior ainda do que este, e repare que falo aqui de um tipo ao qual, em um momento ou outro, todos nós nos aproximamos, sim, eu também confesso a minha vilania, pior ainda é aquele que se deixa seduzir pela compaixão, oh, e também aqui sou um pecador, talvez até mais aqui. Fracos, são todos fracos, somos todos fracos. Lembremos, por exemplo, do Princípie, personagem principal de O Idiota; quando mais a sua firmeza foi necessária e demandada, quando não só o seu futuro próximo e longíngüo estavam em jogo, mas também o da sua amada Aglaia, ele fraqueja e sucumbe por completo diante da compaixão, diante da pintura mais sombria e lúgubre que Nastassia já havia feito de si mesma. Naquele segundo abissal, colossal, de um peso incomensurável, ele se atordoa, se indigna até mortalmente com Aglaia, pois sim, naquele seu instante de completa indecisão ele fere irreparavelmente o amor que ela lhe tinha, seu poder, enfim, é mais fraco que o da Nastassia, e ele se curva diante dela, a compaixão sai vitoriosa, vence até o seu amor. Aonde chegamos, meus amigos, o amor sendo vencido pela compaixão! Lutemos, lutemos contra essa vilania, essa fraqueza dupla que tenta a todo instante nos infectar e corroer.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Irritação

O que mais lhe dói não é nem tanto a rejeição, ele a entende e a assimila com uma paz quase estóica, o que mais lhe rasga por dentro é perceber a irritação que a presença do seu afeto ou carinho gera nela. Isso desce engasgando, cortando. O seu curso de raciocínio para a rejeição é o seguinte: "da mesma forma que não me cabe pedir razões para o sentimento que aflora, e muitos vezes elas lhe seriam até contrárias, também não há qualquer motivo para que o sentimento correspondente não tenha surgido nela. Em mim surge e pronto, nela não surge e pronto. Eis o fundo do poço, não há mais onde escavar, razões a encontrar". Esse pensamento amansa a sua alma e mitiga a dor da rejeição. No entanto, ele não consegue produzir o mesmo pensamento para a irritação, repulsa e, quem sabe, nojo gerados pela percepção do seu afeto. Ele se pergunta, "por que o afeto de uma pessoa por mim e pela qual eu não tenho nenhum sentimento forte me irritaria? Não acho uma resposta, não entendo, a empatia não rola. Faço uma pergunta indevida?" Talvez. A irritação também não poderia ser uma paixão bruta, desmotivada? Por que não? Ela não acontecer nele é uma contingência, mas em outros corpos, com outras fisiologias, ela pode ser nata, instintiva, uma opção natural do organismo para repelir o que não lhe agrada, mesmo que não lhe seja nocivo. Sim, pode ser que seja assim. Mas pensando bem, há uma outra explicação melhor: a irritação não emana da mera percepção do afeto não correspondido, mas sim da imaginação do que ele pode fomentar, pois sabemos como é comum alguém se arrebatar, exagerar, dramatizar pelos seus sentimentos a ponto de manifestar-se àquele que não o corresponde de maneira insistentemente irritante. Assim, mesmo que algo acalorado e vibrante não tenha emergido na pele do apaixonado, a imaginação antecipa para o presente a irritação futura. Sim, isso parece bem mais razoável. Ele acaba de ter essa mesma compreensão e ela adocica um pouco a sua experiência, mesmo que não elimine todo o azedume.

Resta ainda a maior de todas as suas aflições presentes. Uma vez percebida a irritação que produz, independente da sua causa, se é que tem uma, o que fazer, que curso de ação tomar? Pois sim, sua consciência se aflige, "como posso conviver com o fato de que irrito, desagrado e assim faço mal àquela que justamente só quero bem?" Ele vê dois caminhos, ou melhor, duas possibilidades, pois falar em 'caminhos' parece pressupor que está em condições de escolher um deles, e não é certo que seja este o caso. Por um lado, ele poderia seguir como um espírito forte, centrado em si mesmo, lançando fora qualquer culpa, libertaria sua pulsão de vida por completo, seu afeto floresceria incandescente, mesmo que viesse a ter por conseqüência provocar uma irritação ainda maior nela, mas ele estaria vivo e estaria sendo fiel a si mesmo. Por outro lado, ele poderia reunir todas as suas forças destrutivas, evocar seu Tanatus, e dirigi-lo impiedosamente se não tanto para o seu afeto, que, eu creio, ser indestrutível por volição, ao menos para a sua manifestação, ceifando assim parte de si. Ele se espancaria dia após dia até que o afeto se tornasse comprimido e fraco a ponto de se perder e se afogar no mar confuso das paixões. Uma extinção por repressão.

Poupa a ela ou a si, a sua consciência ou o seu sentimento? Essa pergunta faz sentido, há escolha possível aqui? Ele se sente cindido, esquizofrênico com este dilema em mãos.

domingo, dezembro 23, 2007

Elizabeth McGovern



Ela debuta em Ordinary People (1980). O filme é muito ruim, eu particularmente não gostei. Um garoto nos seus 16 ou 17 anos entra em crise existencial, apresentando tendências suicidas, após perder o irmão em um acidente de barco. Sente-se culpado por não ter conseguido ajudá-lo. O tempo inteiro tive vontade de entrar no filme com uma corda para finalizar com o choramingo do menino: tome, enforque-se logo! Mas não é do chato que eu quero falar. É dela, é só por ela que eu assisti até o final, mesmo sendo uma personagem secundária. Vocês sabem o que é se apaixonar literalmente pela imagem, pela visão, pelo que a pessoa tem de mais externo? Pois é, confesso, vulgarizei-me diante dela, caí de quatro. Não resisti aos seus olhos de lince, aos cabelos curtos, à voz meiga, às roupas escolares, oh sim, quase um ataque pedófilo, fui completamente abatido pelo desejo de olhar. E por favor, não me venham com links de fotos atuais dela, eu não me apaixonei por ela, nem por ela com os seus 20 anos, antes ou depois do filme, mas exatamente por ela assim, neste filme, nessa personagem, nesta cena, com esse olhar, apaixonei-me por uma aparição única e instantânea sua que a fotografia e o cinema congelaram para mim no eterno. Claro que uma paixão assim, sensual, visual, perceptiva, só é saudável se completamente fugaz. Oh sim, já passou, mas fica aí o tributo à beleza da moça.



Alfredo me acotovelando aqui: "que beleza de mãos!". Certo...certo.

sábado, dezembro 22, 2007

Control


Completamente em preto e branco, em sintonia com a existência poética e depressiva de Ian Curtis, Control (2007) nos exibe com primor os cinco últimos anos da vida deste músico, vocalista da banda Joy Division. O roteiro é baseado em texto da sua própria esposa, Deborah Curtis. Quem, como eu, curte a banda ficará satisfeito com a seleção das músicas que compõem a trilha sonora do filme. Cobrem bem a obra e caem perfeitamente para o momento vivido por Ian. Transmission, Isolation, Disorder, She's Lost Control, Love Will Tear Us Apart, para citar algumas. Independente de gostar ou não da banda, o drama de Ian, sua vida dividida entre dois amores e a banda, suas crises epilépticas e suas próprias angústias existenciais, são suficientes para envolver o público. Ao ver a performace do Ian nos shows, seus movimentos desarticulados dos braços, finalmente entendi a maneira esquisita de dançar dos seus fãs que eu via nas boates góticas em meados dos anos 90. Ah, não falei ainda de Atmosphere, não é mesmo? Esperei por ela todo o filme, angustiando-me a cada minuto com a sua ausência imperdoável. Ela foi deixada para o final, servindo de fundo para o suicídio de Ian. Decisão corretíssima do diretor, pois não consigo lembrar de outra composição que melhor o resuma e o expresse. É uma letra rarefeita, confusa, taciturna, fazendo bolhas de sentido que logo se arrebentam, ao passo que a melodia é de uma calma e paz penetrantes.

Atmosphere

Walk in silence,
Dont walk away, in silence.
See the danger,
Always danger,
Endless talking,
Life rebuilding,
Dont walk away.

Walk in silence,
Dont turn away, in silence.
Your confusion,
My illusion,
Worn like a mask of self-hate,
Confronts and then dies.
Dont walk away.

People like you find it easy,
Naked to see,
Walking on air.
Hunting by the rivers,
Through the streets,
Every corner abandoned too soon,
Set down with due care.
Dont walk away in silence,
Dont walk away.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

A volúpia do desejo

Quando ela sentou do meu lado e percebi de relance os seus cabelos ruivos, de imediato olhei malicioso para Alfredo, que estava sentando em um banco bem na minha frente. Ele não se conteve e sorriu. Dali em diante não seria mais possível ter um pouco da sua atenção para a conversa. Seus olhos brilharam em movimentos bruscos e amplos, perscrutando cada fio de cabelo daquela mulher. Mais tarde ele me segregou, sua atenção cresceu num átimo não apenas por ser ruiva, mas pelo seu enxame de sardas, centenas delas, umas mais claras, outras mais escuras, espalhadas delicadamente pelo seu belo rosto albino. Eu não olhei fixamente para ela, estava mais interessado nas reações de Alfredo enquanto ele a esquadrinhava de cima a baixo. Súbito seu sorriso deu lugar ao desapontamento quando seu olhar atingiu as mãos dela. Não por serem feias, ao contrário, eram belíssimas, não tanto quanto as da vizinha, disse-me depois Alfredo, mas tinham uma delicadeza consoante às suas sardas suaves, de uma brancura que lhe inspirou a mais profunda paz. Afetou-lhe na verdade o estúpido compromisso estatelado no anular da jovem ruiva. Eu logo vi que se tratava de uma curitibana, sem lhe ouvir o sotaque, apenas por observar a espessura expressiva do seu anel; o curitibano, diga-se de passagem, é de uma discrição impressionante nos assuntos casamenteiros... Mas era tudo um grande gozo estético, o coração de Alfredo, já sabemos, anda por outras bandas, o compromisso da ruiva não lhe abalou mais do que alguns segundos, foi mais um indignação com a estupidez do anel e logo o seu rosto voltou a expressar a satisfação contemplativa de quem admira a manifestação mais pura e ingênua da beleza.

Era neste ponto que eu queria chegar. Uma das coisas que mais admiro no Alfredo, no que ele se distingue abruptamente de mim, é essa sua maneira cândida e nobre de admirar uma mulher. Eu sou mais instintivo, já teria olhado de imediato para as carnes dela, guiado por uma volúpia demoníaca, ele não, deteve-se em suas mãos, na sua candura facial e sobretudo nas suas expressões, tentando lhe extrair a alma, os pensamentos e observando, ao mesmo tempo, se eles eram compatíveis com a sua beleza delicada. Quando depois perguntei a ele se tinha sentido desejo pela ruiva, ficou profundamente ofendido. "Ora, que absurdo, como se você não soubesse do meu sentimento pela vizinha!", disse-me ele enrugando o rosto quase nervoso. Ora, que bobagem, por que a presença de um sentimento impediria a emergência de um desejo? Depois ele me explicou que esse impedimento, nele, era rigoroso, que lhe era impossível, mesmo com muito esforço, ferver o seu sangue senão com a imaginação da amada. Reconheceu, é verdade, que a visão ou a imaginação de outras mulheres poderiam lhe despertar o desejo, afinal, ele não é menos homem e carne do que eu, mas tão logo brotasse esse desejo, seu coração e mente seriam trespassados por ela, em emoção e em imagens, sendo-lhe impossível evitar a sua presença esmagadora.

Tudo isso me parece de um romantismo muito tolo, disse-lhe afinal. "Pode ser, pode ser...", ele começou a desenvolver, "mas não vejo entre eu e você muita diferença além do fato do meu desejo ser concentrado e o seu disperso. Enquanto o seu emerge apenas do instinto errático, cambiante de minuto em minuto, completamente subjugado ao exterior, o meu brota de uma amálgama coordenada entre instinto e emoção e, por isso, é até mais forte e intenso que o seu; além de durar no tempo, tem um foco que não emana apenas da pele, da química corporal, enfim, do que é externo, mas também do próprio ser, seja lá o que isso for, é um desejo que brota de uma semente que sou eu mesmo, não é algo que apenas me acontece. Na forma não diferem. Meu desejo não é menos violento e obsceno que o seu, quando ela me trespassa, estou liberto de qualquer pudor, meus olhos flamejam, deliro com ela sob todas as formas de união carnal, mas, e aqui nos distanciamos, enquanto a violência do seu desejo violenta, reduzindo a pessoa ao corpo, sugando-lhe a química apenas para a satisfação do desejo, a do meu penetra na alma, eleva o corpo à categoria de pessoa, cada gota de suor toma a dimensão de um orvalho que o corpo dela esponjal absorve, pois todo esse desejo voluptuoso, e não menos demoníaco, vem aveludado por uma capa emotiva, que, quando toca, não só absorve, mas doa também, cede, sou animal sem ser animalesco. No fundo, o romântico aqui é você, olhando para a dimensão mais idealista do termo, pois acredita numa natureza dicotômica e cindida muito pouco humana. Assim, para concluir e calar a leviandade que me sugeriu há pouco, meu desejo dual, que vem de fora e de dentro, embora possa ser desperto por aquela ruiva, e sim, eu a admirei, não poderia tê-la por objeto, pois na sua própria dinâmica, intangível pela minha vontade, as mãos alvas da ruiva seriam magicamente substituídas pelas mãos arredondadas da vizinha, e assim com todo o resto, de modo que, quando me desse conta, estaria entrelaçado não com a ruiva, mas com aquela que só de ver ou pensar me emociona.".

domingo, dezembro 16, 2007

Sem desculpas

Eu entendo perfeitamente a intenção louvável de um pai de querer educar os seus rebentos com o que há de melhor na nossa cultura ocidental, colocando-os em contato com obras clássicas desde a mais tenra infância. Contudo, essa intenção egoísta não está acima de modo algum da vontade pública de usufruir de um concerto com o silêncio absoluto da platéia. Veja bem, se você quer que o seu pimpolho escute e deguste música erudita, submeta-o ao enxoval musical no conforto do seu lar. Eu não tenho nada a ver com isso. É de uma imbecilidade sem tamanha esperar e de uma crueldade insuportável querer que uma criança com menos de 10 anos fique sentada numa sala escura completamente quieta, sem falar e se mexer. Se muitos adultos pseudo-cientes de si mesmos já não conseguem segurar a própria língua, o que não esperar de uma criança que ainda sequer é capaz de distinguir-se do mundo! E sinceramente eu não sei de onde sai tanto bebê assim, estavam lá em enxame. Não é fácil me irritar, mas o som gutural de hominídeos infantes num concerto tira-me do sério, me desconcerta, me desconcentra. Não, não foi por ser de graça, o público era o mesmo. Quando paguei para ouvir a nona do Beethoven, a mesma horda estava lá. Não há desculpa para a má educação de pais com boas intenções.

domingo, dezembro 09, 2007

Mãos

Alfredo um dia abordou a vizinha e, desde então, troca algumas palavras com ela sempre que se encontram no elevador. Encontros não raros, é verdade, haja vista a sua diligência intuitiva em perceber os horários dela. Agora ele escreve também, movido pelo mesmo encantamento que outrora despertara o interesse do remetente, do qual, aliás, não temos mais notícias. Alfredo tem manias estranhas, como a sua fixação por mãos. Uma vez ele me disse que era capaz de extrair todo o perfil psicológico de uma pessoa só de olhar para as mãos dela. Não duvido que ele realmente leve a sério essa idéia, embora eu seja incrédulo sobre os seus resultados. Mas isso é lá com ele. Ontem ele me mostrou um bilhete que escreveu para ela e o reproduzo aqui a título de curiosidade, como exemplo da sua mania.

Enquanto te ouço falar, é difícil às vezes não me deixar levar pela beleza das tuas mãos, elas me magnetizam de tal maneira que só com muito esforço junto as tuas palavras em uma frase com sentido. Fico perturbado. Teus dedos perfeitamente arredondados, delicadamente grossos, sem gordura, diria ternos e maternais, embora não tenha ainda entrelaçado a minha mão na tua, entram imponentes na minha imaginação, arrebatando-me emoções e sensações. Tenho a impressão de que me sentiria seguro e calmo ao apertá-las. Preciso dizer: não há outras mais belas na minha experiência lembrada e não digo isso como clichê de sedução, não, não mesmo. As mãos sempre tiveram sobre mim um efeito notável de encantamento, diria até que não raramente viso-as antes mesmo de encarar a face de uma mulher, desinteressando-me dela, a despeito de tudo o mais, se forem grosseiras ou vulgares. Mas as tuas mãos se casam perfeitamente com tudo o que vejo em você. São francas, firmes, clássicas, sem excesso nas pinturas e no tamanho das unhas, que, aliás, estão sempre muito bem polidas. Não pretendo me delongar, só queria me explicar, caso algum dia tenha me estranhado por demorar demais na contemplação das tuas mãos. É consciente sim, mas nem por isso tenho o controle, é como se elas emitissem o canto das sereias e confesso estar muito longe da virtude de Odisseu. Sucumbo. Quando penso em você, lembro-me delas, sempre.