segunda-feira, dezembro 17, 2007

A volúpia do desejo

Quando ela sentou do meu lado e percebi de relance os seus cabelos ruivos, de imediato olhei malicioso para Alfredo, que estava sentando em um banco bem na minha frente. Ele não se conteve e sorriu. Dali em diante não seria mais possível ter um pouco da sua atenção para a conversa. Seus olhos brilharam em movimentos bruscos e amplos, perscrutando cada fio de cabelo daquela mulher. Mais tarde ele me segregou, sua atenção cresceu num átimo não apenas por ser ruiva, mas pelo seu enxame de sardas, centenas delas, umas mais claras, outras mais escuras, espalhadas delicadamente pelo seu belo rosto albino. Eu não olhei fixamente para ela, estava mais interessado nas reações de Alfredo enquanto ele a esquadrinhava de cima a baixo. Súbito seu sorriso deu lugar ao desapontamento quando seu olhar atingiu as mãos dela. Não por serem feias, ao contrário, eram belíssimas, não tanto quanto as da vizinha, disse-me depois Alfredo, mas tinham uma delicadeza consoante às suas sardas suaves, de uma brancura que lhe inspirou a mais profunda paz. Afetou-lhe na verdade o estúpido compromisso estatelado no anular da jovem ruiva. Eu logo vi que se tratava de uma curitibana, sem lhe ouvir o sotaque, apenas por observar a espessura expressiva do seu anel; o curitibano, diga-se de passagem, é de uma discrição impressionante nos assuntos casamenteiros... Mas era tudo um grande gozo estético, o coração de Alfredo, já sabemos, anda por outras bandas, o compromisso da ruiva não lhe abalou mais do que alguns segundos, foi mais um indignação com a estupidez do anel e logo o seu rosto voltou a expressar a satisfação contemplativa de quem admira a manifestação mais pura e ingênua da beleza.

Era neste ponto que eu queria chegar. Uma das coisas que mais admiro no Alfredo, no que ele se distingue abruptamente de mim, é essa sua maneira cândida e nobre de admirar uma mulher. Eu sou mais instintivo, já teria olhado de imediato para as carnes dela, guiado por uma volúpia demoníaca, ele não, deteve-se em suas mãos, na sua candura facial e sobretudo nas suas expressões, tentando lhe extrair a alma, os pensamentos e observando, ao mesmo tempo, se eles eram compatíveis com a sua beleza delicada. Quando depois perguntei a ele se tinha sentido desejo pela ruiva, ficou profundamente ofendido. "Ora, que absurdo, como se você não soubesse do meu sentimento pela vizinha!", disse-me ele enrugando o rosto quase nervoso. Ora, que bobagem, por que a presença de um sentimento impediria a emergência de um desejo? Depois ele me explicou que esse impedimento, nele, era rigoroso, que lhe era impossível, mesmo com muito esforço, ferver o seu sangue senão com a imaginação da amada. Reconheceu, é verdade, que a visão ou a imaginação de outras mulheres poderiam lhe despertar o desejo, afinal, ele não é menos homem e carne do que eu, mas tão logo brotasse esse desejo, seu coração e mente seriam trespassados por ela, em emoção e em imagens, sendo-lhe impossível evitar a sua presença esmagadora.

Tudo isso me parece de um romantismo muito tolo, disse-lhe afinal. "Pode ser, pode ser...", ele começou a desenvolver, "mas não vejo entre eu e você muita diferença além do fato do meu desejo ser concentrado e o seu disperso. Enquanto o seu emerge apenas do instinto errático, cambiante de minuto em minuto, completamente subjugado ao exterior, o meu brota de uma amálgama coordenada entre instinto e emoção e, por isso, é até mais forte e intenso que o seu; além de durar no tempo, tem um foco que não emana apenas da pele, da química corporal, enfim, do que é externo, mas também do próprio ser, seja lá o que isso for, é um desejo que brota de uma semente que sou eu mesmo, não é algo que apenas me acontece. Na forma não diferem. Meu desejo não é menos violento e obsceno que o seu, quando ela me trespassa, estou liberto de qualquer pudor, meus olhos flamejam, deliro com ela sob todas as formas de união carnal, mas, e aqui nos distanciamos, enquanto a violência do seu desejo violenta, reduzindo a pessoa ao corpo, sugando-lhe a química apenas para a satisfação do desejo, a do meu penetra na alma, eleva o corpo à categoria de pessoa, cada gota de suor toma a dimensão de um orvalho que o corpo dela esponjal absorve, pois todo esse desejo voluptuoso, e não menos demoníaco, vem aveludado por uma capa emotiva, que, quando toca, não só absorve, mas doa também, cede, sou animal sem ser animalesco. No fundo, o romântico aqui é você, olhando para a dimensão mais idealista do termo, pois acredita numa natureza dicotômica e cindida muito pouco humana. Assim, para concluir e calar a leviandade que me sugeriu há pouco, meu desejo dual, que vem de fora e de dentro, embora possa ser desperto por aquela ruiva, e sim, eu a admirei, não poderia tê-la por objeto, pois na sua própria dinâmica, intangível pela minha vontade, as mãos alvas da ruiva seriam magicamente substituídas pelas mãos arredondadas da vizinha, e assim com todo o resto, de modo que, quando me desse conta, estaria entrelaçado não com a ruiva, mas com aquela que só de ver ou pensar me emociona.".

Um comentário:

Luiselza Pinto disse...

Imaginei-me como sendo um Alfredo sem freios e mergulhei intensamente em algumas coisas que ele sentiu. Sim... A questão é a presença esmagadora e, infelizmente, nem sempre esmagada. Não sei se há alguma sapiência na natureza, mas, deveras, ela nos impõe o que, somente com muito esforço é possível transpor. As guerras podem ser vizinhas; próximas ou distantes. Ainda assim, dilaceram, de uma ou outra maneira. E a volúpia do desejo deve ser mesmo vermelha... Como Alfredo compreende Luiselza, neste exato momento. Luiselza convidaria Alfredo para um certo lugar, num certo dia, de uma cerimônia específica, e conversariam muito. Observariam muito, ou tudo, com olhos de raios-x. Ele olharia todo o corpo da mulher? Luiselza buscaria inteligência e olhar; não mais. Todo o restante soaria como acessórios dispensáveis. Alfredo entende bem Luiselza...