quinta-feira, dezembro 25, 2008

A bela feia


De longe, realmente é bela; de perto, as imperfeições machucam as vistas. Muita pichação, não há quase prazer algum em sair pelas ruas a fim de se deleitar com os sentidos, pensando aqui no aspecto urbanístico e arquitetônico. O sobe e desce desanima qualquer perna. Ainda assim a visita vale à pena pelas guloseimas e o sorriso hospitaleiro que se vê estampado em cada mineiro. A melhor parte: os amigos de décadas com a mesma amizade incólume, faz-me pensar que, para algumas coisas mais abstratas, porém reais, o tempo é inofensivo.

terça-feira, dezembro 23, 2008

Da maturidade intelectual

"Ele ainda não está maduro", "precisa evoluir mais", "está confuso, precisa amadurecer mais". Metáforas assim são usadas para se referir ao "estágio de desenvolvimento intelectual" do aluno. Difícil discordar de que algumas idéias só saem, se moldam ou se articulam depois de muito ruminar. No entanto, desagrada-me a aceitação dogmática dessa crença bovina, a de que sem pastar, não há como inovar, ou até bem menos que isso, não há sequer como pensar ou descobrir algo interessante. Pode acontecer do pensamento de chofre ser mais agudo e penetrante que o pensamento ruminado. Perde-se coragem e ímpeto quando se pondera em demasia. O fato é emocional, mas que não deixa, por isso, de obstruir a verdade. Sorrateira ela é e, por isso, a prudência secular no cuidado em buscá-la. O medo de errar, no entanto, pode nos desviar igualmente do caminho certeiro. Às vezes é preciso arriscar e lançar a idéia tão logo apareça, antes que seus pesares a encubram nos escombros do pensamento. Quando fazê-lo? Só a sua própria experiência o pode indicar.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Da Covardia

Eu voltei, mas terei culhões para resistir dessa forma acovardada? Esse é o problema de ter a sobrevivência nas mãos de outros com os quais você discorda radicalmente em um assunto capital: a educação. A bolsa é boa, mas é uma merda. Penso também que se estivesse na iniciativa privada da computação, daria no mesmo. Sapos para engolir não faltariam. Melhor aqui, então, apesar de todos os pesares. Hoje escutei calado, muito embora não fosse dirigido a mim, a frase encorajadora: "não há nada que você diga que já não tenha sido dito de uma forma melhor por outra pessoa". Que forma estupenda de estimular a criatividade dos seus alunos! Sobre o ar interrogador desses últimos, ainda ouvi a analogia fenomenal: "as pessoas vão aprender a dirigir na auto-escola e não questionam as regras de trânsito, por que não adotam o mesmo comportamento aqui no curso?". Eu estava realmente ali? Quão mal o gênio malígno às vezes consegue ser comigo. Incrível como qualquer pessoa comum tem um bom senso infinitamente maior que a de qualquer filósofo acadêmico brasileiro. Os alunos querem ouvir mais sobre o papel do filósofo na sociedade, sua possível intervenção política e social. Depois de se olharem mutuamente, como se chegassem a um acordo implícito, desabafam raivosos: "não compete à filosofia agir, não conheço professor de filosofia que atue politicamente". Certamente Marx e Sarte não deram aulas de filosofia. Gênio, gênio, assim vou preferir ficar surdo. As psicólogas vieram relatar os resultados dos seus estudos sobre a evasão dos alunos. Atualmente, em torno dos 40% e teve ano que ficou em torno dos 80%. A maioria queixou-se do pouco espaço para pensar, da falta de estímulo para o pensamento próprio, ao contrário, ele é violentamente podado. No entanto, o corpo uníssono dos acadêmicos parece pensar que tudo vai bem, afinal, "nosso curso tem exclusivamente o objetivo de formar professores universitários". Quem ouve uma frase assim até se encolhe diante de tanta seriedade. Mas quem é que pode levar isso realmente a sério? Eu não posso. Estamos falando de dinheiro público. A graduação não pode ter apenas por objetivo formar alunos que farão mestrado e doutorado. Um curso que não tem esse objetivo exclusivo não perde, por isso, qualidade. Mas isso é o de menos, perto de tudo que ouvi, foi o menor dos males. O pior é o acordo tácito que está por trás dessa fala naquele contexto: a idéia pilar de que o professor universitário deve ser mais um papagaio que alguém que saiba pensar. Voltei para casa arrasado, principalmente comigo. Covarde. É só o que consigo me repetir. Consola-me pouco dizer-me que não adiantaria nada tentar convencê-los da importância de se estimular a criatividade dos alunos e valorizar suas idéias próprias. O tom de voz já exaltado diante de um simples relato de resultado de pesquisa se elevaria ao grito, eu não duvido, diante da discórdia frontal. Covarde. Seja um lobo em pele de cordeiro. 

quarta-feira, novembro 19, 2008

Da erudição e Da contradição

Então, já perto das 16:30, o professor especialista em Nietzsche encerrou a sua fala. Embora a maioria sempre saia embasbacada com a fala de eruditos que citam de cabeça não só frases do seu pensador preferido, mas também a página e o parágrafo onde se encontram e que arrotam sentenças em 4 línguas diferentes, o que, felizmente, não ocorreu desta vez, eu sempre saio com a impressão de que nada realmente profundo me foi dito, apesar de reconhecer a riqueza de informação e a persistência mnemônica do sujeito que se dá o trabalho de ficar decorando páginas e parágrafos. Mas riqueza de informação eu encontro na internet também. É por isso que, salvo raras exceções, o papel do erudito perdeu a sua razão de ser. Desde os anos 90 que a informação não precisa de mentes humanas para circular no espaço. Ela está virtualmente em todo o espaço. Há quem diga que os eruditos ainda são relevantes pelas associações que fazem entre as milhares de informações que eles acumularam e programa algum é capaz de fazê-las. Concordo que a computação ainda é muito burra para isso. Mas comparando os tempos, os 60 minutos dedicados a relatar as obras que Nietzsche leu ou deixou de ler, quando as leus, onde estudou, com quem estudou, a ordem de publicação dos seus livros, por fim, como um ou outro conceito foi usado de maneira diferente aqui e ali, e, em seguida, os ligeiros 5 minutos dedicados a formular o perspectivismo de Nietzsche e distinguí-lo do relativismo, eu concluo que o ganho de associação e clareza é quase nulo, e olha que julguei esse erudito, em especial, bastante inteligente. Não foi por falta desse atributo que a discussão ficou rala. Enfim, eu só queria dizer que, apesar de respeitar a figura do erudito, espero que sejam felizes com o que fazem, que se divirtam, eu pessoalmente geralmente não me enriqueço vendo o desempenho de um. E o motivo é muito claro: eu tenho mais sede de compreensão e verdade que de informação.

Só que a minha sede de verdade é circunscrita pelo ceticismo, relativismo e pluralismo. Quando lhe foi dada a palavra, o aluno acusou: "Eu acho que Nietzsche é cheio de contradições, são muitas contradições". Diferente do acadêmico inseguro, minha rusga com o aluno não  é pelo seu "eu acho". Eu realmente não entendo qual é a indignação do acadêmico com o "eu acho". Em muitos contextos, "eu acho que", "eu penso que" e até um leve "eu sei que" são equivalentes. Se vamos considerar ou não o que a pessoa diz depois do "que" depende da responsta que ela nos der para o porquê. Simples, não?  Minha rusga com o aluno se resume na conotação moral do seu ato de fala. Aponta-se a contradição em um autor como se estivesse exibindo uma chaga, algo ignóbil e vergonhoso. Incompreensível que ninguém tenha percebido a incongruência dessa reação ou, pior, o seu caráter exemplar, justamente depois de se destacar a luta de Nietzsche contra a verdade apolínea, a verdade socrática, metafísica, de uma cor e dimensão só. Ninguém mais que o princípio da não-contradição esteve em defesa ao longo dos séculos dessa verdade transcendente. Quer chegar até a verdade, ver a sua face, dar-lhe uma espiada? Eis a chave: não se contradiga. Mas não é só uma questão de imputar erro a quem se contradiz ou vetar-lhe a vista da verdade. Vai além, moralizou-se a coisa. Quem se contradiz, é mentiroso, é inconstante, não é confiável etc. E lá estava o dedo do aluno apontando indignado para a sujeira contraditória de Nietzsche. Fechemos o livro, não há nada ali que preste. O mesmo aluno que bebeu o mito da caverna, que se catequizou pela verdade apolínea, perde a visão das contradições da vida, escapa-lhe o devir vital. Trocou o ser pelo não-ser.

quarta-feira, novembro 05, 2008

Da consciência do pé

Um corpo miserável causa uma consciência miserável, todo mundo sabe disso. E se a velhice ou, para falar de um modo mais brando, o passar dos anos, tem, para mim, algum porém, é a convivência mais assídua e íntima com essa consciência. Perturba sentir a fragilidade se apossando do corpo a cada fração de segundo, ceifando potências e incrustando medos. Semana passada subi em uma árvore para colher umas pitangas que ela tanto ama. Não, antes que tentem concluir por mim, eu não caí da árvore. Ao descer, contudo, quando estava mais ou menos a um metro do chão, resolvi pular. Como a sola do allstar e nada são a mesma coisa, senti penetrante a dureza do chão. Dor momentânea que logo se esvaeceu no fluxo da consciência. Uma semana se passou e o local do impacto resolveu progressivamente revoltar-se contra mim, como se eu não tivesse lhe dado a devida atenção naquele seu momento nascente, e hoje vejo-me obrigado a ficar em casa por não conseguir andar. Acharia ótimo se não tivesse recebido aquele papelzinho pela fresta da porta convocando-me a comparecer nos Correios para receber uns livros encomendados. Ah, mas nem que eu vá de saci! De qualquer modo, aflige, anos atrás, algo bobo assim não causaria mais que uma coceira.

terça-feira, outubro 21, 2008

Back to Philosophy

Estou de volta à filosofia. Mamãe resolveu me acolher novamente, depois de me deixar vagando como um pedinte na terra dos bits por esses últimos 4 ou 5 anos. Sem ressentimentos. Mãe é Mãe, filho é filho e, pela natureza, estamos destinados a perdoar um o outro. Eu penso que ela quis me dar uma lição, não tanto de moral, mas como se quisesse me dizer, "se aqui na matrix tá ruim, lá fora tá pior ainda". Duvidei dela de teimoso e fui pra rua. Enquanto tinha dinheiro no bolso, diverti-me um monte, é verdade. Os bits até que são caras legais, jovens, borbulham idéias, diria que são hippies científicos, aceitam quase de tudo entre eles, cientificamente falando, é claro, bem diferente do tom casmurro e opressor em casa de mamãe, talvez porque ela espera demais de nós e, em parte também pelas toneladas de séculos pesando sobre os nossos ombros. Apesar dessa jovialidade de idéias entre os bits, eles tendem a adotar a moral de rebanho quando chega a hora de pedir dinheiro ao pai. E o pai desses caras, vou dizer curto e grosso, é um estereotipado protestante calvinista. Simplesmente intolerável e repugnante. Dá aos filhos o que comer com a estrita exigência de que estes panfleteiem o seu bom nome pelos quatro cantos. Quando começou a rarear as moedas em meu bolso e vi que teria de recorrer ao pai de algum bit e me sujeitar endireitado ao proselitismo paternal, mamãe apareceu de braços abertos, salvando-me da miséria espiritual que logo me imundaria. Volto à matrix, aos sonhos, aos gênios malignos, volto à terra das infinitas possibilidades, e, por que não dizer, dos sonhos de dimensões transfinitos? Em casa de mamãe, apenas os anos pesam, de resto, tudo lá tem um tom etéreo, esfumaçante, respirar é meio que brincar. E, de um certo modo, há uma parte de mim que quero sempre criança, ingênua. Se percebi algo entre os bits, é que não gosto de vida reta. É por demais artificial, alcançável sobretudo por estímulos e reforços que vêm de fora, de algo que absolutamente não sou. A vida verdadeira, cínica, porém corretamente falando, é curvilínea, pois é impossível, com essas pernas naturalmente cambotas que temos, caminhar em linha reta, ainda que diminuamos o tamanho do passo a dimensões infinitesimais. Andar é meio que saltar. Então é isso, salto de volta para a casa de mamãe, sem razões, sem justificativas, mas cheio de sonhos.

segunda-feira, outubro 06, 2008

Da única possível razão, desarrazoada.

Não há nada que me atinja mais do que a possibilidade da sua inexistência, do seu cessar, do seu deixar de ser entre as minhas possibilidades perceptivas futuras. Meus sonhos foram imundados de pesadelos sem ti, expressei isso com o forte e demorado abraço amedrontado que lhe dei ao acordar. Mesmo o maior dos convictos fraqueja diante do maior dos seus temores. Já aprendi a viver sem muita coisa, para falar a verdade, com quase nada, meu ceticismo já matou todas as razões, todos os motivos, menos, paradoxalmente, essa necessidade que se arraiga no maior dos mitos: o do amor romântico. Mesmo que me fosse contada milimetricamente cada antecedente histórico que deu origem a esse mito socialmente localizado e contextualizado, mesmo que eu reconhecesse a sua tolice, e eu a reconheço, ainda assim não deixaria, e não deixo, de sentir, em minhas respirações e palpitações, a necessidade de amar única e totalmente. Talvez resida aí o resquício mais sólido do meu instinto de sobrevivência, habilmente incutido pela seleção natural. E daí? Grito eu para todos os lados. Acaso isso perturba em uma porção infinitesimal que seja a forma como me sinto? Não. Ou ainda uma explicação psicológica mais íntima, se quiseres, na forma de uma disjunção: ou eu percebo que sou necessário para um outro, não um outro qualquer, é óbvio, mas você concretamente, ou eu me faço desnecessário para mim mesmo e perco todos os laços que me prendem ao mundo. Patética conclusão irrefutável. Amor que me atordoa se não lhe serve de alívio, remédio, por pouco que seja e, no entanto, sem ele, não quero nada além do nada.

sábado, setembro 20, 2008

As cores.



Eu diria que ela é uma artista coloral. Suas cores estão sempre em rica harmonia, cintilando meus olhos, me fazem lembrar das caixas de lápis de cor e massinha que ganhava quando criança no início das aulas. Passava horas contemplando a beleza das cores lado a lado, o azul celeste, o azul turquesa das águas das piscinas, o amarelo sol, o verde grama, o marrom tronco, o beje azulejo, o vermelho telhado, o cinza nuvem, infantil mesmo nas representações; as massinhas em barrinhas retangulares, macias de apertar, demorava-me enamorando-as antes de partir para a destruição tatual, gostava de fazer cobrinhas coloridas. O ciclo da massinha lembra o ciclo das vivências. Primeiro você se deslumbra com a nitidez e diversidade das cores, a novidade colorida. Depois a frustração entediante da massa acinzentada. Perdemos o interesse com o igual das coisas. Ela porém nunca se acinzenta diante dos meus olhos, mesmo na sua versão menos viva e colorida, ela desperta a reação de todos os meus bastonetes. Ela tem sede de cores invisíveis, de cores que não existem ou simplesmente de cores que estão além do nosso infante aparelho visual. Quantas lágrimas não pipocam dos seus olhos verde-negros borrados pela impercepção de todas essas cores transcendentes. Se pudesse, lhe daria uma caixa de lápis de cor com todas essas cores inomináveis. Eu que sempre fui muito cinza por fora e por dentro, tenho me sentido bastante colorido, tanto que até ela suspeita do meu acinzentado passado. Diz-me que era conversa fiada minha. Não era. Só que com o seu colorido presente tão vivo diante dos meus olhos, eu me esqueço do cinza de ontem e ignoro o de amanhã. Se alguma vez transpareci irritar-me com ela, confesso-o, foi comigo que me irritei profundamente por não conseguir irradiar uma nova cor que lhe despertasse o sorriso.

segunda-feira, setembro 08, 2008

Sinta mais e pense menos

Downhill Roller

Já passei da idade que me permitira ser assim tão destemido. O corpo é sábio e traz, junto com o envelhecimento, a compreensão do seu retardo para se recuperar. Daí a reação emocional mais medrosa diante de situações que coloquem a integridade do corpo em risco.

O corpo é tão sábio que se não o ouço claramente, se não me atento ao seu modo não-verbal e intuitivo de dizer-me as coisas, de indicar-me para que lado ir e com que força, sou lançado ao chão. É como tocar violão. A última coisa que se deseja em uma atividade motora é a intervenção da consciência reflexiva. Se ela brota, o desempenho será pífio. Notas erradas em um caso, cara no chão, no outro. Para todas as aprendizagens motoras, vale a máxima: sinta mais e pense menos.

Eu e os meus patins que o digam. É uma questão de foco. Não se concentrar jamais no que se deve fazer, quais ações tomar, mas sim no que se está fazendo, no produto. Concentrar-se sim na música produzida, no som, e os dedos irão para onde devem ir; jamais pense nos dedos ao tocar. Igualmente, jamais pensar em como mover as pernas; devo apenas sentir o meu corpo, o seu equilíbrio; concentrando-me nele, nessas sensações, evito a cara no chão.

terça-feira, setembro 02, 2008

Agora foi, mas do outro lado da força.

Parece inusitado que um aluno da graduação seja contratado para ser professor, ainda que substituto, deste mesmo curso e na mesma instituição. Eu não esperava que aceitassem a minha candidatura, mas um professor encorajou e lá no edital estava escrito que aceitariam títulos equivalentes de mestre. "Equivalência" sem critério não diz muita coisa, pode ser tanta uma coisa larga quanto restrita. E o professor foi categórico enquanto me encorajava: "filosofia é IA". Conforme entendamos esse "é", eu devo discordar, óbvio. Por outro lado, é inegável a penetração que uma disciplina tem na outra. Então apostei na equivalência dos meus títulos com os de informática/computação. Aceitaram.

Sobre as condições, bem melhores agora. Sou aluno do curso e, portanto, relativamente "conhecido". Não vou me desfazer do meu argumento da postagem anterior, ainda penso o mesmo. No entanto, preciso dizer: por mais cabaços que as pessoas de exatas "tendam" a ser, estas em específico, os examinadores, me surpreenderam, em primeiro lugar, ao aceitar a minha inscrição e, em segundo, ao mostrar uma tal atitude ética na avaliação que se esperaria encontrar mais facilmente naqueles que justamente teorizam sobre a coisa: os filósofos. Justamente o contrário. Posso estar pisando em falso, não tenho obviamente como provar que houve favorecimento no concurso para prof. substituto no departamento de filosofia, embora tenha ficado meio na cara. Muita conjunção providencial de uma vez só. Também não posso dizer que eu ser conhecido pelos professores que me examinaram no departamento de informática não tenha também me favorecido de alguma maneira. Certamente que sim. No entanto, os candidatos que deixei para trás também foram alunos não só do curso, mas também do mestrado do departamento, de modo que, se eu fui favorecido por ser conhecido, eles também foram.

O que de certa maneira me deixa puto. Puto por ter de reconhecer que filósofos possam adotar a moral das panelinhas com muito mais facilidade e estar mais fechados à alteridade que as pessoas das exatas. Na verdade, essa guerrinha humanas vs. exatas é uma guerrinha boba. Importam as pessoas. Dei sorte de encontrar algumas pessoas boas na computação e azar de encontrar outras ruins na filosofia. Bem e mal é outra distinção difícil de ser feita a não ser em uma perspectiva pessoal, como fiz agora, para deixar claro.

segunda-feira, agosto 04, 2008

Do sentido sem sentido.

Não é que ele passe a ver o sentido das coisas quando está do lado dela, e sim que ele não sente a falta deste sentido. Acha até engraçado quando a pedra de Sísifo rola morro abaixo e tem de buscá-la novamente. Que lhe importa esse vai-vem eterno se a tem bem ao lado, se pode caminhar rumo ao nada ou mesmo a um qualquer todo desde que ela esteja presente em cada passo? Nem é também que lhe faltasse a capacidade de planejar e sonhar com um amanhã de mais de um mês, e sim que não era empolgante e divertido fazê-lo; agora é. Quer falar para vê-la sorrir, quer sorrir para fazê-la falar. Ele sabe que, num certo sentido, nada disso faz muito sentido, mas, num outro sentido, todo esse sem-sentido é muito sentido. Sentido demais e bom dimais, mineiramente falando. Ele se sabe uma faísca temporal perto da duração cósmica, mas que importa, que importa, conclui ele, "enquanto duro, quero-a". E quão idiota soará a sua sentença se um dia terminar e ele perdurar. Ele o sabe, como sabe de todos esses sem sentido...e como também esse em específico lhe é tão sentido. O que exatamente? A possibilidade sem-sentido do "se", que, embora possível, ele sente inconcebível e, por isso, sem sentido. Não só isso, essa mera possibilidade rouba todo o seu atual sentido, e ele teima contra isso, a cada dia, a cada instante, amando ela mais e mais.

quarta-feira, julho 23, 2008

A diferença que faz diferença não é qualquer diferença

Eu penso assim: mesmo uma pequena diferença em meio a quase nenhuma diferença faz toda a diferença, ao passo que qualquer diferença no meio de várias diferenças não faz quase diferença alguma. É por isso que, apesar do ser comum ao qual somos coagidos e constrangidos social e biologicamente, temos uma unicidade tão visível. É por sermos exageradamente iguais que nossas poucas diferenças nos tornam espantosamente únicos e visivelmente diferentes. Fôssemos tão radicalmente diferentes uns dos outros, ficaríamos perdidos na indiferença de tantas diferenças. Nada se destacaria. Então, mesmo diferentes uns dos outros, não seríamos, por assim dizer, diferentes aos olhos de uns e outros.

Meu Lema

No Frio, é possível existir; no calor, é difícil até subsistir.

Outras naturezas, outras reações. Mas não existe explicação sensata para o fato de 70% da população desta cidade usar casacos e blusas de lã num dia ensolarado (21/07/2008) que bate os 30 graus.

segunda-feira, julho 21, 2008

Bom dia

A constatação de que estamos acostumados à secura do curitibano veio quando, ao entrar no restaurante do hotel em Pouso Alegre para tomar café da manhã, nos sentimos surpreendidos com a chuva calorosa de "bom dia" que nos foi dirigida. Eu e ela ficamos visivelmente atrapalhados, já não esperávamos por isso. E mesmo apreciando a casmurrice curitibana na sua discrição, no seu bom gosto em não querer saber demais da vida alheia, eu sinto falta sim de um alegre "bom dia", e me ofendo quando dou um e sequer sou respondido. Ir a BH ou a qualquer lugar de Minas me faz lembrar o quão agradável é começar o dia assim.

E quão surpresa e feliz não ficou a minha namorada quando, saindo pelo portão da casa de minha mãe, chegou-lhe nos tímpanos o desabafo: "mas que cabelo bonito, moça, quero pintar o meu assim também!". Era o motorista do caminhão de lixo que, com toda a simplicidade e sem nenhuma malícia, soltava alegre, de sorriso banguelo, o efeito que lhe imprimia nas vistas o cabelo cherry bombado da minha namorada.

Mas pára por aí. Não muito mais que o seu povo me agrada em BH, já o disse outras vezes. Lembro agora do e-mail que meu tio enviou ao governador sugerindo que a capital fosse transferida para Curvelo. A idéia era resgatar a BH pacata e até fria dos anos 60. Depois, na viagem de volta, eu e a Marcely tivemos a idéia de entrar com um projeto no congresso, pleiteando a mudança da capital do Paraná para BH e a de Minas para Curitiba, obrigando todos os curitibanos a se mudarem num prazo de até 2 anos para BH e os mineiros de BH para cá. Mas como eu sei que dificilmente chegaremos a viver no melhor dos mundos possíveis, fico aqui só sonhando em quão Curitiba ficaria *das mais estribada* se recheada de mineiros.

quarta-feira, julho 02, 2008

Cozinhar é bom se...

Uma das coisas boas, entre inúmeras outras, de se morar com a pessoa amada é que somos levados, eu ao menos, à arte de cozinhar com fervoroso impulso. Desde que ela veio para cá, sinto enorme prazer em assumir o papel de chefe. Meio canhestro ainda, é verdade, mas se antes eu tinha preguiça até de fazer um miojo para mim, é notável que agora eu passe com alegria algumas horas preparando uma deliciosa sopa eslava para nós. 

Cozinhar é bom se você tem um outro a quem deseja dar prazer. É como no sexo. Quando ama, só o seu gozo jamais é suficiente, pelo contrário, seu gozo só é completo quando o outro goza também. O amor é incompatível com o egoísmo na cama. Na cozinha é a mesma coisa, você só fica satisfeito com a própria comida quando o outro, ao degustá-la, expressa na face um verdadeiro gozo palatal. 

quinta-feira, junho 26, 2008

Esperança Instintiva

Hume já dizia, o ceticismo é inócuo, ele é incapaz de atentar contra a nossa tendência natural a crer. Isso não significa que a razão seja inoperante na formação de crenças, que não devamos até estimular um certo grau saudável de dúvida, mas apenas que a razão é escrava dos nossos impulsos e instintos. Quando tenta suplantá-los, pelo ceticismo, fracassa.

O ser humano, a besta das bestas, foi dotado pela natureza com uma inigualável capacidade de ter esperanças, somos instintivamente esperançosos. Eis a sabedoria da sobrevivência. Ao nos dotar da capacidade de "conhecer" o mundo e prever o futuro, a natureza precisou compensar o pessimismo que daí emergiria naturalmente, posto que a probabilidade de quem tá na merda é continuar na merda, nos congratulando com este instinto de se agarrar a meras possibilidades mesmo quando elas são improváveis.

Quase diariamente me perguntam, e eu também, a razão pela qual não me mato. Tivesse eu uma razão para não me matar talvez aí sim me mataria, pelo gosto de contestá-la, para sentir-me livre dela também, ainda que pela última vez. Mesmo o amor não é uma razão. Mesmo com amor, as coisas ruins continuam ruins, a diferença é que aquele instinto de esperança recebe um reforço.

Com o amor há, porém, uma compensação: as coisas que já eram boas ficam ainda melhores. Mas eu sei que isso não serve de consolo e não diminui em nada o desconforto do que é ruim.

Do Concurso.

Pena que o concurso, aquele referido tempos atrás, não é para mim. Não tive tempo para estudar adequadamente em virtude das aulas de computação que acabei assumido e das n disciplinas que estava fazendo. Não, não é papo de derrotado, estou sendo apenas realista. Tenho plena noção do que seria necessário estudar para fazer uma "boa" prova aos olhos da banca, assim como soube quando concorri com sucesso ao mestrado e ao doutorado. Nessas horas, é triste, não basta escrever com diligência e inteligência. Muita erudição é importantíssimo também. E fiquei sabendo que para esse concurso da UFPR se inscreveram nada menos e nada mais que 67 pessoas, euzinho aqui incluso. Alguns professores há anos da UFRGS, UFBA etc. E é uma vaga só. Mas fiquei feliz com uma coisa. Se antes eu pensava em fazer uma prova burocrática, cheia de dedos e montado em filósofos, para tentar convencer a banca, agora chutei o balde e vou fazer a prova do jeito que eu gosto, tematicamente. Pelo menos saio de lá feliz ao me reconhecer nas próprias palavras. 

Das aulas

Ironia do destino. Não foi pela filosofia que perdi o medo de dar aulas. Muito pelo contrário. Eu me refugiei na computação não só pelo gosto de programar, mas por ter contado a mim mesmo enfaticamente a mentira de que padecia de fobia social. Pior, acreditei nessa mentira por muitos anos. E como a filosofia não me dava outra alternativa de sustento, corri atrás da computação, fugindo sempre do enfrentamento público. Mas agora eu sei, eu não tenho fobia social alguma, eu só tenho timidez, talvez um pouco acentuada, mas nada grave, nada que atrapalhe a boa execução de uma aula. E, como eu disse, foi a computação que me desmentiu, descortinou-me a verdade. Ela me empurrou para uma turma de 16 alunos e ali, durante dez dias, 4 horas por dia, eu tive de falar e ensinar. E eu ensinei e falei. Sem nervosismo, sem taquicardia, sem nada aterrador que me vinha à mente quando eu imaginava essa situação nos tempos em que ainda filosofava na graduação, mestrado ou doutorado. Agora que conheço a verdade, quero mais do que nunca dar aulas, de filosofia, pois filosofia, para ensinar, é mais divertido que computação. Muito mais.   

quinta-feira, junho 19, 2008

Eu por mim mesmo.

Esses dias recebei do meu ex-orientador, o legal, não o ex-ex, o chato, um e-mail em que ele me pedia para escrever uma autobiografia de até 5000 caracteres; o motivo: minha tese foi escolhida para concorrer, pelo departamento de filosofia da UFMG, ao prêmio CAPES lá de melhor tese do ano. Eis, então, a minha "autobiografia":

É difícil para mim precisar em que momento tive o meu primeiro contato com a história da filosofia. Provavelmente, ainda pequeno, quando, curioso pela origem do meu nome, fui em busca de livros sobre a mitologia grega. Mas não foi nesta época que a conheci de fato. Passei a infância e a pré-adolescência com a mesma inquietação dos filósofos pré-socráticos, interessado em conhecer a origem do universo e seus elementos mais fundamentais. Cheguei, então, à física bem antes de conhecer a filosofia e, por muito tempo, motivado também pelo gosto e facilidade com os cálculos, projetei-me no futuro como físico. Somente naquele ano de decisão inadiável sobre o futuro profissional é que tomei um contato direto e efetivo com a filosofia através da leitura de alguns livros sobre filosofia da ciência indicados por um tio que, então, se formava em filosofia pela UFMG.

A leitura desses livros provocou uma completa reorientação das minhas inquietações intelectuais, percebi pela primeira vez que entender o que era o conhecimento e como ele poderia ser obtido eram questões para as quais eu precisava de uma resposta antes de procurar saber sobre as leis físicas que regem o universo. Hoje, claro, não vejo o assunto assim, mas na época, senti-me completamente compelido para a filosofia em virtude dessa reorientação das minhas próprias questões. Não só isso, senti-me, de fato, curioso por saber o que era o conhecimento, o que os filósofos haviam falado sobre ele. Era algo novo para mim, até então, essas questões tinham passado pela minha mente, se é que tinham, apenas de maneira obscura, confusa; quando as vi postas claramente, senti a necessidade de passar mais tempo com elas. Decidi, assim, pela filosofia profissionalmente. A física poderia esperar, ela tinha de esperar.

Ingressei na graduação de filosofia da UFMG em 1995, então, com 17 anos. Foi um ano desafiador e amedrontador, meu contato anterior com a disciplina se limitava àqueles livros citados acima, e, de cara, deparei com professores sequiosos em esbanjar o jargão filosófico. Muita coisa foi dita nas salas de aula sem que eu conseguisse entender. Temi que o curso não fosse para mim. Cogitei até mudar para física ou ciência da computação. Mas a medida que aprofundava as minhas leituras e me acostumava com o palavreado obtuso dos filósofos, senti-me mais à vontade entre eles. Vieram as provas, os trabalhos e sai-me bem neles. Alguns professores elogiaram a minha argumentação e eu comecei a me convencer que tinha jeito para a coisa. Novamente, as ciências exatas tiveram de esperar um pouco mais.

No ano de 1996, foi abrutamente arrancado do curso de filosofia. Já tinha ouvido falar de Hobbes e dos tentáculos poderosos do Leviatã, mas só fui compreender a sua real força quando ele me agarrou. O Exército achou que eu era interessante nas suas fileiras. Ironicamente, eu era, na época, anarquista. Aceitei, no entanto, o destino sem revolta, curioso até pela experiência inusitada, consolado com os relatos de filósofos que tinham também passado pela experiência militar.

Em 1997, voltei ao curso, com muita vontade e mesmo vigor físico para a pesquisa. Agradeço aos milicos por esse preparo. Conheci Wittgenstein e apaixonei-me pela sua vida e obra. Percebi que mais fundamental ainda que a questão do conhecimento era a questão do sentido. Nem tanto assim, é verdade, como se verá em seguida. Na época, pareceu-me claro, antes de perguntar qualquer coisa, essa pergunta precisa ter um sentido e o filósofo austríaco incutiu-me a dúvida de que muitas perguntas não tinham. Eu precisava, assim, saber (vejam só) o que era o sentido.

Daí em diante fui perdendo a minha ingenuidade intelectual e aprendendo a exercer essa atividade que se costuma denominar de "acadêmica", fazendo pesquisa, criticando artigos, buscando entender os filósofos, suas idéias e tentando escrever as próprias. Algo nessa atividade me irritava, na filosofia brasileira, em especial, a hegemonia exegética. Mas, por sorte, encontrei alguns professores que me estimularam e encorajaram a abordar a filosofia de uma maneira mais temática, que é o tipo de abordagem com a qual me sinto mais à vontade, por nenhuma razão fundamental, é verdade, apenas uma questão de gosto. Assim pude continuar na filosofia, seguindo mais ou menos o percurso esperado de um acadêmico: especializando-se. Formei-me no ano de 2000 e já em seguida iniciei o mestrado. Ainda interessado no conhecimento, foquei-me num tipo específico, o perceptivo. Critiquei aqueles que combatiam a idéia de que há crenças justificadas não-inferencialmente pela percepção. Em seguida, no doutorado, enfim, tentei positivamente articular essa idéia, provendo uma compreensão filosófica de como essa justificação se dá. Defendi a tese em 2007. Desde, então, sou um filósofo desempregado.

quarta-feira, junho 18, 2008

Do azar

Qual a probabilidade de cair um raio na minha cabeça? Quase a mesma de ganhar na mega-sena, correto? Errado. Hoje a probabilidade de cair um raio na minha cabeça deve ser de 1 em 500000, ou até menos, quem sabe, 1 em 10000. Desculpem-me pelo sarcasmo, mas é impossível não ter agora diante do mundo e com o mundo, seja lá o que isso for, uma reação de revolta e indignação, mesmo sabendo que isso não faz sentido. E o que nessa vida faz sentido? Como se já não bastasse meu irmão ter quase morrido ao cair ou pular do quarto andar, depois de ter passado três semanas em coma, agora que ele começa a se recuperar, a falar, ainda que meio embolado, minha mãe que estava cuidando dele integralmente é atropelada. Urucubaca familiar? Tenho medo de ser estraçalhado pelo trem que passa aqui nas imediações da minha rua amanhã ou depois. Eu não preciso, como o Kyle do South Park, desenvolver aos 8 anos de idade uma hemorróida para duvidar da existência divina, nem ser submetido aos piores infortúnios, como o Cândido de Voltaire, para concluir que não vivemos no melhor dos mundos possíveis; o ateísmo/agnosticismo eu abraço com ou sem desgraças, mas é impossível diante de acumuladas desgraças não se sentir irracionalmente irritado com o mundo. O mundo é como ele é, sim, indiferente a mim, eu sei, mas ele é uma bosta, enfim, eu, agora, neste instante, não consigo ser indiferente a ele.

terça-feira, maio 20, 2008

Da Queda

Parece que foi outro dia que subi a escada eufórico gritando para a minha irmã, "nasceu, nasceu, é menino". Urrei tão alto que quando ela foi contar a novidade na escola para a vizinha amiga, recebeu em resposta: "eu já sei, ouvi o seu irmão". Veio ao mundo gigante, quatro quilos e não sei lá quantas. Um bebê forte, força que eu espero ele ainda ter agora quando mais precisa...Eu tinha então nove anos quando ele nasceu. Eu era constantemente convocado para tomar conta dele e gostava. Lembro em especial de um ursinho azul que usava para fazê-lo gargalhar, aquela gargalhada gostosa de bebê que só de ouvir nos faz rir também. Eu esfregava o ursinho na sua barriga e obtinha o efeito. Até hoje não entendo qual era a graça, não creio que eram cócegas, mas vai lá saber como a esfregada do ursinho era percebida pela sua mente infante. Depois quando ele cresceu um pouco mais, com dois ou três anos, era uma beleza vê-lo na piscina mergulhando. Parecia que tinha nascido nadando. Não é exagero, todo mundo se espantava ao ver aquela coisa miudinha mergulhando, sem bóias. Com cinco e seios anos vinha sempre bater na minha porta pedindo para ir nadar com ele. Soltava a mesma gargalhada do ursinho quando eu o tirava da água e o lançava bem alto.

Desde sexta-feira estou assim, mnemônico, escavando a minha memória e imaginando o que ainda não vi e reluto em ver. Sonho com quedas, penso na queda, imagino a queda, seu corpo estendido no chão, seu crânio com afundamentos em vários lugares, não consigo parar de pensar, principalmente quando estou sozinho. As informações desencontradas, antes foi do terceiro andar, agora é do quarto. Antes tinham chamado o IML ao invés do socorro, agora parece que fizeram o correto. Antes não estava alcoolizado, agora parece que estava. Quase 5 anos sem colocar um pingo de álcool na boca e depois de um mês sozinho, tudo desaba. Uma festa da psicologia, ele bebe muito, ele vai para a casa delas, bebem mais, ele está agitado, elas vão para um quarto, ele para um outro, passa uma ou duas horas, elas escutam um barulho, vão para o quarto onde ele estava, não o vêm lá, olham pela janela e ele está estirado lá embaixo. Foi o que elas contaram. Será que algum dia ele vai recobrar a consciência para nos contar o que houve? Escorregou? Pulou? Se escorregou, foi azar fomentado pela burrice já que ele sabia que uma gota de álcool na sua boca chamaria outras milhares. Se pulou, teve o azar de não obter o fim pretendido. Sim, não é por ser o meu irmão e por amá-lo que vou mudar a minha opinião de que os suicidas devem ser respeitados pela sua escolha, ainda que eu não queira que as pessoas do meu afeto se matem e sofra se o fizerem.

Eu falei em burrice, mas estou sendo injusto. É muito fácil para um não-viciado falar que é burrice um alcoólotra ceder à sua cede etílica. E o que sei eu da intensidade da sua necessidade e desejo? Isso me faz pensar nas pessoas que ficam buzinando no ouvido daqueles que não bebem para beberem, que fazem cara de reprovação moral por não beberem, que oferecem drogas e exaltam seus efeitos; e eu me pergunto se essas pessoas que chegam sempre cheias das melhores intenções de divertimento, ah sim, claro, no fundo elas querem ver esse outro feliz como elas, tendo prazer, tendo lá as suas compreensões mais "ampliadas" do mundo, mas eu me pergunto se em algum momento elas se preocupam em saber se a sua "vítima" é ou não alguém facilmente susceptível ao vício. Não, não estou dizendo que o oferecido é o culpado pelo vício do outro, não retiro o livre-arbítrio deste último, mas devemos reconhecer também que o livre-arbítrio deste último não é tão livre assim e que o oferecido tem sim uma parcela de responsabilidade ao ofertar. As pessoas são diferentes e umas têm uma propensão muito maior a se viciar do que outras. Devemos ter isso sempre em mente.

Esse é um bom exemplo de porque a moral deontológica não funciona sempre, a moral que diz que uma ação é boa se foi motivada por uma intenção boa. Como diz o ditado, de intenções boas, o inferno está cheio. Que se dane a boa intenção de compartilhar com o outro a sua alegria gregária, sim, eu digo, enfie no rabo essa intenção. Seja utilitarista a este respeito, pense nas conseqüências do seu ato, pense que elas podem não ser boas e se há uma chance grande de não serem, evite-o. É o que você DEVE fazer. Vou colocar de uma maneira mais clara para você entender. Se você não sabe se uma pessoa tem alta propensão a viciar (pior ainda se sabe que tem) e dado o efeito devastador que é para uma pessoa viciar-se no que quer que seja, sim, se você ainda não se convenceu disso, leia "O Jogador" do Dosto, então parece moralmente recomendável que você não oferte a essa pessoa substâncias reconhecidamente como viciantes. Deu para pescar a idéia? Espero que sim...

Comecei pensando no meu irmão em tom triste e terminei moralizando em tom de revolta. E fico assim o dia todo mesmo oscilando. Eu penso nele estendido no chão e me entristeço, imagino seus colegas cheios de ofertas efusivas e me revolto. E só para deixar claro aos desavisados, eu não fiz uma apologia contra o uso de drogas ou bebidas, eu bebo, para início de conversa, eu fiz uma consideração moral sobre o ato de ofertar a terceiros drogas ou bebidas.

segunda-feira, maio 12, 2008

Da fraqueza amorosa

Concordo que se eu encarasse todos os dias o medo da perda, a possibilidade do fim, eu desenvolveria talvez uma musculatura emocional para suportar os tempos difíceis, mas esses olhos pequenos que a natureza me deu foram constituídos de tal maneira que eles não conseguem enxergar um palmo a frente se não houver no ambiente um mínimo, um pingo ou cisco que seja, de luz esperançosa. Você me dirá que eu deveria aprender a me virar no escuro, que cegos o fazem, mas talvez eu seja fraco para essas coisas. Ou não. Para falar a verdade, eu tenho mais medo de me acostumar com a escuridão a ponto de não sentir mais falta da luz do que da própria escuridão. Eu sei que uma coisa não implica a outra, sei que é virtualmente possível aprender a viver na escuridão sem cair de amores por ela, que é possível ser forte sem ser ao mesmo tempo indiferente. No entanto, será o forte forte o suficiente para jamais sucumbir à vontade de poder que é inerente ao exercício da sua força? Eu não sei, eu duvido. Nas entranhas de cada psiquê vive um Narciso. Quando ele é despertado pela sua vaidade, nada mais parece importar... Sabe, se ser forte implica em escravizar-se à vontade de poder, à contemplação vaidosa de si, então prefiro ser um fraco e continuar podendo amar um outro que não seja eu mesmo. Prefiro temer perdê-la a amar-me só e apenas.

Você não escuta esses pensamentos que me passam pela mente, já dorme. Eu não tenho sono, não quero dormir, quero continuar assim, velando o teu sono com a mão que acaricia a sua face, sentindo na pele o medo de perdê-la, esse medo que, na verdade, é apenas a face complementar do amor que tenho por ti.

terça-feira, maio 06, 2008

Concurso

Dois meses atrás recebi um e-mail do meu ex-orientador-substituto (sim, não foi possível terminar o doutorado com o "original") me convidando a participar de um concurso para professor na UFMG. Confesso que titubeei, pela UFMG apenas, é verdade. Nunca escondi minha opinião arrogante (ou não) de que a UFPR está alguns anos luz atrás da UFMG. Só que Belo Horizonte é quente demais para mim, tem uma feiúra desorganizada que fere meu senso estético libriano e poluída e morrada a ponto de me proibir caminhadas decentes sem precisar fazer uma viagem quilométrica até encontrar um lugar apropriado. Enfim, inviável. Tem um pró só que me faz falta: seu povo. Nas minhas idealizações, a cidade perfeita seria Curitiba com o frio que diziam fazer no passado e habitada por mineiros. Só pelo seu povo titubeei então com o tal concurso. Mas aí conheci uma pessoa muito especial, a qual, diga-se de passagem, não é curitibana, e a tentação dissipou-se na mesma velocidade com que ela me encantou. Na verdade, nem lembrava ou pensava mais no tal concurso, estava e estou em outra. Lamento, Belo Horizonte, você já me deu tudo o que tinha de me dar.

Eis que hoje recebo um e-mail de um professor daqui falando de um concurso para professor na UFPR. Certo que irei concorrer. Só estou titubeando quanto a direcionar toda a minha atenção para ele nos próximos meses ou mantê-la dividida entre o concurso e a computação. Decisões, decisões. Por mais pesadas e difíceis que sejam, eu as amo. Sinto-me vivo quando tenho de decidir. Ao mesmo tempo, oscilar o pêndulo novamente para a filosofia me faz sentir meio sanfona. Alguns ainda apontarão acusadores e dirão: você é indeciso e não sabe o que quer. Discordo. Sei sim. É que eu não quero uma coisa só, mas várias. Embora eu seja completamente monogâmico no relacionamento, sou promíscuo na minha relação com o saber. Um só não basta, careço de vários. Pronto, confessei. E ainda não decidi o que fazer!

terça-feira, abril 29, 2008

Paranóia.

Em dias normais, quando ele amanhece cinza e chuvoso, eu acordo e levanto com uma alegre disposição. Hoje não. Vi pela janela o cinza que tanto me agrada, escutei os pingos torrenciais da chuva que caia, refrescantes, mas continuei sem forças para levantar. Minhas obrigações vieram à mente e nada. Não imagino que sonho ou pensamento noturno possa ter tido para acordar assim. Sinto o efeito, desconheço a gênese. Minto. Lembrei-me da minha paranóia. Não é isso, não penso que sou perseguido, que há alienígenas tentando me capturar ou que, quando algo dá errado no trabalho ou na faculdade, exista uma confabulação dos meus colegas, superiores e professores para me sacanear. Não tenho esse tipo de paranóia, não acho que sou perseguido, nem que as pessoas vão se esforçar para me prejudicar, não me dou toda essa importância, embora até tenha motivos para pensar que sou perseguido. Uma pessoa disse ter me visto passar várias vezes sem que eu a tenha visto ou notado. Não tenho medo. Sofro do que se pode chamar de "paranóia emocional" ou "paranóia pessimista". Suponho sempre que serei rejeitado e que se a minha presença não causa desgosto, desperta, na melhor das hipóteses, indiferença. Tenho olhos de águia para os sinais da rejeição. Um olhar distante, a falta de um sorriso no momento oportuno, as mil e uma maneiras, talvez muitas inventadas por mim, do enfado se expressar em um rosto, a delonga em responder-me, em qualquer situação, presencial, e-mail, msn, este, então..., tudo isso é filtrado em pilo automático pelos meus olhos como sinais inequívocos da rejeição. Pergunto-me de onde provém essa falsa (?) convicção de que enfado, quais seriam os acontecimentos remotos que a teriam fomentado. Seria o fato de a minha mãe não ter me dado uma gota sequer do seu leite materno, ou seriam os abraços que minha tia me negava sem qualquer motivo que eu pudesse entender, tão pequeno para compreender, mas tão atento para sentir, enquanto agarrava todos os seus outros sobrinhos diante dos meus olhos com efusiva alegria, ou o fato de ser sempre, sempre, o último a ser escolhido nos esportes coletivos, mesmo odiando-os, vendo-me, então, forçado a encarar olhares de ódio no time que me recebia ou, na melhor das hipóteses, de pena resignada, ou ainda o ser jogado no sofá do meio enquanto meu pai se derretia, na esquerda, justo ele canhoto, em carícias com a minha irmã e a minha mãe se comprazia, no sofá da direita, atenta e indiferente a mim o programa televisivo? Poderia continuar a lista e talvez me faltassem dedos para ela. Nasci com essa tendência pessimista e cada um desses itens a reforçou e comprovou, destacando a rejeição diante dos meus olhos e ofuscando todas as outras manifestações de apreço e carinho por mim, ou a soma delas incrustou em meu peito a convicção que me sentencia? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Mesmo quando estou consciente de todos esses fatos, mesmo quando em um ato fervoroso de esperança imagino infundadas todas as rejeições lembradas, ainda assim não consigo evitar as interpretações pessimistas. Elas invadem a minha mente, aparecem como um rio caudaloso transbordando; nessas horas, sinto que não sei nadar, afogo-me. Tantas vozes me acuando. Veja, nem respondem o que diz, não é interessante, olha só, agora estão monossilábicos, pare, não cause tanto enfado, afaste-se, afaste-se. Então recolho-me na quietude. A voz continua. Não percebe que preferem beltrano, ciclano e fulano a você? Por que insiste? Por que se humilha tanto se percebe o desprezo? E sinto-me humilhado e desprezado. Piora ainda quando aparece a culpa. Sim, culpa. Antes de aceitar completamente resignado o corpo que se afunda no rio, lanço-me em desesperadas batidas, buscando um último engolfo de ar, a última respiração. Pinto-me melancólico. Espero a compaixão. Que sensação de miséria me gera a consciência desse ato! E culpa, culpa mortal por ter exercido sobre o outro uma influência tão vil, mesmo que sem intenção, mesmo que levado pelo desespero do afogamento. Então paro de me agitar. Vejo-me afundando aos poucos. O frio da água me adormece.

E, no entanto, seria capaz de me lançar ferino a quem me acusasse de falta de amor próprio. Vivo essa contradição. Eu simplesmente não consigo imaginar razões sensatas para que me rejeitem, para que me pretiram tanto, tenho ampla convicção e consciência de inúmeras qualidades minhas, e, no entanto, não só sinto a rejeição como a interpreto e vejo em tudo quanto é canto. Daí nasce mais uma situação, entre tantas outras, para a sensação de completa solidão.

quarta-feira, abril 23, 2008

Ela, o vermelho e a confissão.

Ela chegou de mansinho, com dúvidas, reticente, como era de se esperar com a dor tão recente. Se eu confessar a ela, não vai acreditar, mas a verdade é essa: quando seus olhos pequenos e doces me encontraram pela primeira vez, tremi todo; o vermelho dos seus cabelos dilatou agradavelmente a minha atenção. Eu estava com o meu livro azul do Nietzsche nas mãos, abaixei a cabeça e fingi que lia compenetrado um último pensamento, enquanto ela se aproximava; estava nervoso, não conseguia ter nenhuma idéia para a primeira fala, embora milhares de pensamentos passassem cortantes pela minha mente. Eu com essa minha mania de me achegar nas pessoas pelas suas palavras, já tinha apreciado as dela, estive com seus pensamentos sem estar com ela e agora ela me aparecia bem diante de mim, provocando-me a tremura de um admirador. Segurei firme o meu livro, esperado dele talvez algum apoio, e senti aumentar a cada passo que ela dava, na boca do estômago, o receio da rejeição. Foi ela quem perguntou do livro azul. Eu lhe respondi gestualmente, mostrando a capa. Não fez nem que sim, nem que não, eu desconhecia, então, o seu desgosto pelo autor. Arrogância desmedida, confessou-me depois. Concordo, ainda assim aprecio a sua iluminação, nada que umas boas reprimendas e correções não resolvam. E que importa isso agora na minha lembrança? Nada. Enrolo para postergar a confissão do meu desejo súbito, ao sentir irrefutável a sua presença, de enfiar-me na mochila junto com o livro ou de sair correndo dali desesperado. Esconda-se, esconda-se rapaz..., agora é tarde, ela está ao lado te olhando e espera alguma reação. Nessa idade e com essa vergonha. Que vergonha! O calor era imenso e ela deu a agradável sugestão de caminharmos pela rua. Eu suava muito, calorento que sou, e ainda mais pelo nervosismo. E a consciência desse fato só me fazia suar ainda mais. Lastimável. Queria sumir, definitivamente. Mas aceitei a sua sugestão, controlando as minhas pernas fugidias, e assim fomos peripatéticos. Feitos baratas tontas, cruzamos as mesmas quadras e ruas dezenas de vezes. A tontura, eu assumo, era toda minha. Quase tive uma síncope na primeira curva quando ela soltou: "acho que a conversa ainda não engatou". O sinal da rejeição apitou forte, respirei fundo e chamei em meu socorro a tranqüilidade do introverso, só ela poderia salvar-me do pânico do tímido. E ela veio. Mais alguns passos e pude voltar a respirar normalmente. Conversamos bem, muito bem mesmo e fiquei ainda mais admirado do que já estava. Não vivo só de pensamentos e também gosto de ver as pessoas no mundo. Adorei vê-la assim. Adoro vê-la assim.

Sei que nesse primeiro encontro não causei nela o mesmo impacto que ela me causou. Só no segundo, talvez. Paciência. Culpa minha de ter falado menos para observar mais? Não sei. Quando nos despedimos, ela me deu um abraço e um sorriso, guardei-os comigo a noite toda; na verdade, até hoje os tenho bem vivos e coloridos. Fui embora para casa sonhando alto, só fui dormir quando a madrugada perdia a sua mocidade.

terça-feira, abril 15, 2008

Babaquice

Algo que me choca e desencadeia a minha revolta é a babaquice humana. Então tinha esse carinha que, enquanto terminava o seu doutorado, passeava lá pelo departamento todo sorridente, cheio de amizade, enturmado, só na humildade. Não muita, é claro, mas também não se notava lá nenhuma intenção de se distinguir, pelo menos nada muito consciente. Pintou um concurso no departamento, ele apressou sua defesa, estudou lá um monte e passou. Mérito dele, claro. Vieram as férias. No início do semestre tava ele lá pronto para assumir o cargo e junto com ele a sua mudança de personalidade. Agora anda de olhar grave, sem muito sorriso, já não cumprimenta a todos, só os de interesse, os professores mais velhos, olha meio de desdém para os alunos etc. Enfim, faz questão de afirmar a sua distinção professoral. Dava para fazer melhor, um carimbo assim com letras bem garrafais "PROFESSOR", tinta nova e fresca, e pimba, bem forte na testa. Tudo bem, pra quem usa franja não dá, mas entre uma rajada e outra de vento todo mundo também ficaria sabendo. Sério, eu sinceramente não entendo porque a obtenção de um título ou a lotação de um cargo tenha de mudar radicalmente a percepção que a pessoa tem de si. Eu chamo isso de babaquice. Eu tento me imaginar no lugar dele, passando por uma situação semelhante e espero mesmo não ser afetado dessa maneira por uma mudança desse tipo.

segunda-feira, abril 14, 2008

A Lágrima lúgubre-feliz

meu tom brega-romântico pincela a lágrima lúgubre-feliz: ali durante o abraço que completa, quando os olhos se fecham para o melhor sentir e o bem-estar se infunde por todo o corpo, nos levando àquela sensação remota e primeva de unidade total, eis que um pensamento atrevido emerge na penumbra, vagueando nas bordas da mente, cutucando pontiagudo o conforto arredondado, dura pouco, é verdade, nem um piscar de olhos, mas traz consigo o medo remoto, a possibilidade da negação do abraço presente, o vislumbre da ausência do bem envolvente, tudo muito vago, um mero ponto no oceano do conforto presente, mas suficiente para desencadear algumas sinapses; e o corpo reage pelo arco-reflexo, o abraço se retese, de olhos ainda fechados, desce vagarosa a lágrima lúgubre-feliz, evidencia insofismável do pensamento relâmpago e cuja existência é dada a apreciar somente pelos extasiados, só aí ela ganha o seu sentido; vai-se embora rolando, esvaindo-se sobre a pele, valorando o próprio êxtase que buscou negar na possibilidade lúgubre, deixando-o, porém, incólume na efetividade.

terça-feira, abril 08, 2008

Somente um pesar...

Eles falam risonhos, parecem se divertir, a gesticulação é enérgica e os movimentos bruscos do corpo expelem viva sinceridade, mas sinto-me apático, a maior parte do tempo é assim, confesso com certo pesar; eu começo prestando atenção no que estão dizendo, até me esforço para achar graça também e raramente consigo. Quando sim, brinco e me envolvo com a mesma patetice. Mas dura pouco. A consciência da minha tolice emerge e me retenho ou então sinto que o meu tom abobado não encontra respaldo. Aí me retenho mais ainda, envergonhado. Um deles me falava qualquer coisa e eu já não sabia mais o que era, ele sorria e eu respondi com lábios fingidos sem saber o porquê da graça. Não faço isso em completo piloto automático, às vezes é semi-consciente, nem é por querer parecer sociável, é por não querer que se sintam sem atenção. É horrível sentir-se desatendido. Eu dou muita atenção, muita mesmo e, às vezes, a dou até sem estar atento. Não acho que isso seja de todo falso, é um caso em que o efeito benéfico desculpa a ausência da intenção. Mas só faço assim com os de pouco ou médio apreço. Os de muito apreço têm sempre a minha atenção real, completa, nem tinha como ser diferente, estou ligado a eles por um vivo interesse, digo, interesse neles. É o que me alimenta de verdade, me tira da apatia, os seres humanos, raríssimos, que se me permitem o mergulho. Não só isso, que também me despertam, por razões que desconheço, a vontade de lhes conhecer a essência. A eles me dôo integralmente. Mas com os outros ali, os de médio, pouco ou nenhum apreço, ah, confesso, às vezes eles me estimulam o vazio total, não um vazio de sentido, angustiante ou entediante, vazio de pensar mesmo. Fico diante deles completamente absorto no nada. Nunca meditei, mas pelo que falam da experiência, é o que penso ter nessas situações, um certo não-pensar. Depois essa tranqüilidade vazia dá lugar ao pesar por não ter participado da interação, por ter vivido toda a situação não como se estivesse nela, de dentro, mas um passo atrás, de fora, só olhando. Pior de tudo é saber que isso é tolo. De fora, percebemos o sentido para terceiros, como fica facilmente visível nos filmes, o sentido da existência de uma pessoa parece saltar às vistas. Só que para o Eu, o sentido está sempre dentro e não há como percebê-lo de fora, o sentido é o tipo de coisa que o Eu só pode viver imerso sem nunca tocar. Eu mesmo cavo a minha tragédia querendo viver com dupla cidadania. Ou lá ou cá, meu caro. E quem disse que me controlo? A todo instante quero capturar o sentido das minhas vivências, por ciúmes de mim, por curiosidade, por não querer perdê-las, por esmerar pela intensidade máxima da vivência, por ser assim doentio na vontade de transcender, e, claro, quando tento fazê-lo, o sentido que havia se subtrai magicamente da vivência, ou, em outras palavras, a vivência se des-vivencia. Aí aparece aquela consciência tão bem conhecida do vazio de sentido, da angústia e do tédio, cada qual com um sabor doloroso diferente. Eu só não me considero um caso perdido porque pelo menos o amor eu vivencio completamente de dentro, não coloco nem um dedinho pra fora, pelo menos nessa dimensão meu instinto se mantém sábio e imune à estultice da razão. É o que me enraiza na vida.

sexta-feira, abril 04, 2008

Carência ética

E se deus fosse o diabo? Nada mudaria. Assim como nada mudaria se deus existisse. Dostoievsky se questionava, "se deus não existe, então tudo é permitido"? Eis o problema do homem que se deixa corroer completamente pela incerteza e procura fora de si o fundamento para os seus valores. E tem algum fundamento? Valores não são todos iguais, alguns lhe são mais caros que outros. Podemos fundamentar alguns valores em outros mais preciosos. Mas lá no fundo, o que sustenta o seu valor mais querido? Nada. Ele carece tanto de fundamento quanto a sua certeza de que tem uma mão ao olhar para ela. São absolutos? De forma alguma. Rocha dura que nunca fura? Também não. Mas são vigas assim assentadas que só com muita mina para implodir. Ah, mas se é possível implodi-las, eliminá-las, estou no vazio, no escuro. Que me serve de guia? Eis o problema daquele homem novamente: sua carência de certeza é proporcional à incerteza que vivencia. Não é a ausência do absoluto que o faz carente da certeza, é a carência do certo que o faz sentir a ausência do absoluto. O não-carente está relativamente satisfeito com as vigas que tem, até que lhe apareça uma forte, mas bem forte razão para pensar em contrário. Para o carente, até a razão chinfrim lhe deixa insatisfeito com o que tem. O carente quer o absoluto e sente mais do que tudo a sua falta justamente por estar carente, amedrontado, inseguro quanto ao que fazer. Não tem em si a força necessária para andar, por isso a busca fora, no imutável. E, pelo mesmo motivo, ele é o tipo que, se não se engana achando que encontrou o absoluto, conclui que tudo é permitido e arruína a sua vida em um caos completo. Tudo e qualquer coisa lhe é e não é guia ao mesmo tempo. Claro, se não há um absoluto, ou não o encontro, ou, ainda pior, perco a esperança de encontrá-lo quando sinto a sua falta mais do que tudo, vivo por completo o desespero. Desesperado aceito qualquer coisa. O carente que não encontra o absoluto se fere mortalmente a cada instante. Pior ainda é o carente que se engana achando ter encontrado o absoluto. Para ele o sancionado e permitido é muito bem definido. Ele abraça esse absoluto com toda a intensidade da sua carência. A força com que agora o defende é proporcional à carência que sentia. Ele range os dentes a quem se lhe opõe. Ele mata se for preciso, se suspeitar que querem lhe tirar o aconchego do absoluto. No fundo, ele teme o retorno da carência. Esse carente acaba ferindo mais aos outros que a si mesmo. Sua ação é definida e precisa, violentamente precisa, ele jamais se realinha.

E o não-carente? Ah, ele vai seguindo a vida com o bom-senso e a prudência aristotélicas. Ele anda, para e escuta as vozes alheias. Pensa, realinha-se caso ache necessário e continua o ciclo. E para ele, tudo é permitido? Não, mas a sua linha do que é e o que não é permitido também não está traçada para todo o sempre. Ele se permite o retraçado, movido pela sua força interna, não pelo oba-oba do carente que concluiu que tudo é permitido. Para este, não há retraçado, só rabiscos.

Assim, a questão de se tudo é ou não permitido, caso não haja um absoluto, não se conclui por uma martelada demonstrativa, ela se fecha pela psicologia. É preciso se conhecer, perceber as suas necessidades e carências. E eu, o que eu sou, um carente ou um não-carente? Ora, eu sou um ser humano, imerso no tempo, impossível ser apenas uma coisa ou outra o tempo inteiro, a vida toda. É o que eu acho. Esmero pela sobriedade prudente. Sinto-a presente. Tenho por ideal: a não-carência e o relativismo nada oba-oba que se lhe segue.

quinta-feira, abril 03, 2008

Temor

Temo: ter uma emoção que vibra pelo corpo, chega aos olhos, onde brilha seu existir e perceber que ela aí morre sem ser captada por quem está na sua origem.

terça-feira, abril 01, 2008

1 de abril.

Como hoje é um dia para se contar mentiras, eu vou me contar uma que tenha cara de verdade. Ninguém saberá, nem eu mesmo, quando comecei a mentir, se já não o fiz, nem quando pararei. Essa dúvida dará à verdade o sabor da mentira e à mentira a cara de verdade. No fundo, meus amigos, são uma e mesma coisa, faces da mesma moeda. Eu minto descaradamente, sempre menti, essa confissão vos faço com a mais límpida sinceridade e cara lavada. Minto pelo prazer da verdade. Pouco me importa se o que digo é verdade ou mentira, nunca saberei mesmo, mas que tenha a cara e o efeito da verdade, ah, para isso não poupo esforços! Não é pela diversão, eu juro, não há mentira que eu pregue sem me sentir culpado, quando abro a boca e vejo a credulidade no meu interlocutor, sinto um nojo profundo de mim mesmo, ou ódio até, apesar do meu fingimento perfeito, repito a mim mesmo o tempo todo: "vil, vil!". E não paro, sigo em frente mirabolante. Quanto mais mentirosa a mentira, mais prazer me dá ao notar que lhe conferi um ar verossímil. Prazer de vaidoso, pela astúcia engendrada? Nada disso. Sou humilde até na mentira. No fundo a obsessão que me persegue é simplesmente essa: estética. Talvez muitos não saibam, mas eu sou libriano e eis aí a chave explicativa que lhes dou. Minto porque a verdade é bela, porque tenho horror à feiúra da inverdade, da mentira. Não, eu sei que não são a mesma coisa, eu sei que a mentira é uma coisa humana e a inverdade é uma coisa lá da semântica. Mas percebam que é preciso mentir vigorosamente para encobrir esse caráter humano da mentira, para que ela resplandeça como verdade; sem mentir bem, a mentira fica assim feia com o seu aspecto mentiroso. Por isso eu minto e muito, apenas em nome do meu amor pela verdade.

segunda-feira, março 31, 2008

Rafael

Quanto de incerteza Rafael pode suportar? Ele se pergunta. Ele sente a corrosão da sua alma com cada uma das questões que se coloca. Chega a arder, é como se a cada dia cortassem um pedaço de si. E para cada certeza que perde, aparece um medo. Sua alma é assim cheia de hematomas emocionais, ultra-sensível ao toque. Hoje sentiu que todos o desacreditavam, que não havia ouvido que lhe desse mais confiança e assim começou a duvidar dos próprios relatos que fazia de si mesmo. Seria ele mesmo confiável? Seus próprios olhos não poderiam estar sempre a enganá-lo? Rafael se amedronta ao pensar que talvez ele não saiba quem é. O que afinal ele teme? E se não sabemos quem somos, o que se seque daí? O que há para temer? Seria talvez o fato de não poder olhar para si e encontrar um terreno sólido onde pisar e, assim, ter onde fincar a convicção de suas decisões? "Fiz assim, pois sou assado". Não, não é isso. Rafael sabe que a diferença entre agir com maior ou menor convicção tem mais um efeito externo, persuasivo, do que interno, acalentador. Pouco lhe importa se a sua decisão é mais ou menos convicta. Com efeito, ele sabe ainda mais, ele sabe que a sua convicção pouco tem a ver com o seu conhecer-se. Suas decisões o definem, no clichê existencialista. O grau da convicção exibida na decisão não emana de coisa alguma que ele conheça, ela é também definida e formada no próprio ato de decidir. Ainda assim, Rafael teme não se conhecer. O que há de tão ruim em não saber quais predicados aplicar a si?

Rafael conclui: a dificuldade toda está em viver a tensão de se conhecer sem se conhecer. Nem é tão paradoxal o que ele pensou quanto parece à primeira vista. Rafael não se deixa enganar, duvida tanto, levanta tantas possibilidades, que afasta de si qualquer predicado, qualquer assertiva, não assume nenhuma, não se deixa apanhar, nem se apreender pela linguagem, pelos conceitos. Ele se vê, assim, um nada, um vazio. Ele não se conhece. Contudo, há um quê de si com o qual ele se encontra e se confronta no seu viver pela emoção e o sentir. O fato de a decisão não estar assentada num solo duro do conhecer-se afirmativo não faz do sujeito uma marionete, um projeto para qualquer coisa, um nada que pode ser tudo. Não, definitivamente, não. No ato da decisão, Rafael encontra-se consigo mesmo da maneira mais intensa e intuitiva possível, ele se sente por completo durante e pela decisão. Esse sentir que lhe dá o conhecimento de si jamais é verbalizado, mas é automaticamente transferido, na verdade, já está imerso nela, na convicção da decisão. Quando Rafael decide contra o que ele é, a própria decisão já vai se tornando branda em seu ato. Ele já decide enfraquecido, desgostoso de si, às vezes, até arrependido. Quando, ao contrário, ele se encontra na decisão, o ato é pleno de vida, Rafael se vê todo comprometido no ato, até suas últimas células. Não, esse contato emocional que Rafael tem consigo ao decidir não é sensualista, não é efêmero, nem arbitrário, é de fato sua apreensão mais absoluta de si, ainda que ele não possa lhes dar qualquer razão a favor. Tampouco pode duvidar que assim seja. Ele se conhece sem se conhecer. Então, o que há de ruim em não se conhecer a priori é a espera angustiante de só se conhecer a posteriori, pois Rafael tem muita necessidade de si e sabe que nem toda vivência é um encontro consigo. E ele teme os desencontros.

sábado, março 29, 2008

Duração

Tanto cansaço da noite que se transformou em dia, e ao mesmo tempo tanta vontade de que esse dia se estenda até a noite sem que nenhum segundo se perca na inconsciência do sono. Não sinto o tempo, não vivo o tempo, ele transcorre, ele me perpassa e eu vivo nEla, com Ela e através dEla, a duração eterna de um instante.

sexta-feira, março 28, 2008

Arrependimento e Burrice

Sempre digo que nunca me arrependo das minhas escolhas e decisões. A frase é um pouco exagerada. É raro realmente eu me arrepender, mas é possível. Quando? Nas situações em que pratico a burrice. E agora preciso lhes explicar o que entendo por tal coisa. Antes, a frase de efeito que gosto de propalar: a burrice sempre tem um preço, e é muito alto.

"burro", "burrice", "estultice" geralmente são palavras usadas em contextos em que queremos falar ou da falta de uma capacidade, ou da negligência de uma responsabilidade. Quando alguém diz "fulano é burro", e atenção aqui para o "é", está querendo dizer que falta a este sujeito alguma capacidade. Talvez ele não seja bom em uma matéria qualquer e alguém já lhe lança a ofensa, "seu burro". Penso que este não seja um bom uso da palavra, embora seja corriqueiro e eu esteja muito longe de querer legislar sobre a linguagem, o que realmente seria uma estultice. Contudo, imagine uma pessoa disléxica cuja capacidade de leitura é, então, deficitária. Embora alguns possam jocosamente se referir à leitura dessa pessoa como burra, há uma certa incongruência em fazê-lo. O disléxico não tem culpa pela sua deficiência. Ele simplesmente a tem. E "burro" é uma palavra de carga negativa, ela segrega, ela estigmatiza, ela contém um tom de reprovação moral. E não parece fazer muito sentido reprovar alguém por ter uma deficiência pela qual ela não é, nem foi responsável. Em todo caso, algumas capacidades podem ser adquiridas e mesmo desenvolvidas e, nesses casos, quando há uma falta e chamamos a pessoa de burra, não estamos tanto nos referindo a sua falta, mas a sua irresponsabilidade ou desleixo em não desenvolvê-la. Se eu digo que quero aprender a jogar bem xadrez, mas não treino muito e, a o me verem jogar mal, alguém diz "o cara ali está sendo burro", o que ele está dizendo é que estou sendo desleixado e negligente ao não tentar desenvolver a minha capacidade de jogar xadrez.

Então chegamos nessa segunda acepção da burrice, que não tem nada a ver com faltas cognitivas, mas sim com desleixo, negligência e irresponsabilidade. Este tipo de burrice está mais para um acontecimento, ela ocorre quando você sabe que seria melhor fazer X, mas acaba fazendo não-X. Daí até dizermos, nesses casos, que "fulano foi burro", não que ele seja. Por exemplo, fulano, universitário instruído, sabe tudo sobre a transmissão de DSTs, saí numa baladinha, conhece uma gostosinha, e acaba transando com ela sem camisinha, no furor lá do seu tesão. Ele sabe que não estava fazendo o melhor para si, mas fez mesmo assim. Foi burro. E a sua burrice pode vir a lhe custar muito cara, como disse. Ela sempre tem um preço elevado. Se vai ser cobrado ou não é, em parte, uma questão de sorte ou azar. Mas se for cobrado, não tem para onde chorar. Enfim, sempre que tenho um conhecimento e o negligencio nas minhas ações, fazendo o contrário do esperado, estou sendo burro e legitimo que outros apontam para mim e digam "ele foi burro!".

Este tipo de burrice não ocorre apenas quando você negligencia um conhecimento, ocorre também quando você ignora um valor que lhe é fundamental. O preço a pagar, nesse caso, será a auto-flagelação da sua própria consciência. Nada mais burro do que ser infiel a si mesmo e amargar depois a dor de enojar-se de si.

Assim todos os arrependimentos que tive em minha vida se resumem em todas as vezes em que fui burro, pois todas as minhas burrices me custaram muito e nem sempre pude contar com a sorte de uma dívida não cobrada. De outro modo, jamais me arrependo, mesmo que, mais tarde, adquirindo NOVAS informações e conhecimentos, eu perceba que decisões passadas não foram as melhores. Mas, se, no passado, foram as melhores, então não tenho porque me arrepender. Fiz o melhor de mim e, principalmente, fui fiel a mim mesmo. Jamais me arrependo por ser fiel a mim mesmo, ainda que mais tarde eu perceba, guiado por novos conhecimentos, que não tomei o melhor caminho. E julgar o meu eu passado pelo meu eu presente seria, aí sim, uma grande estultice, uma irresponsabilidade sem tamanha comigo mesmo e a minha auto-estima.

domingo, março 23, 2008

Achocalhado

Achocalhado, todo eu. Alma, vida, emoção, corpo achocalhados. Pela espinha percorre um intenso tremor, concluindo lá em cima, na consciência, a sensação de plenitude de sentido, vejo sem olhar. Ela me envenenou com o sabor doce e amargurado da sua existência. Nunca apeteceu-me vidas amenas, ou fingidamente amenas. Infiltro em sua alma contemplando cada cicatriz, aberta ou fechada, e apalpo suave imaginando a sua etiologia. Quanta doçura, fineza e inteligência na forma que elas acabaram infringindo à sua alma. Na superfície, nos encontramos com névoas de lúdica suavidade. Transbordo em bobeiras pueris. Ela também. Na profundidade, nossos dedos vão se entrelaçando num íntimo e compreensivo dar as mãos. Ela envenenou-me sim, sabe, atacando a minha mortífera apatia; vejo-me, então, vivendo plenamente, sem utopia, sem perder a consciência áspera da realidade com a qual nasci. Agradeço a ela por esse mergulho em seu existir, agora que começo a relembrar como é nadar.

sexta-feira, março 21, 2008

Egolatria.

De uma forma ou de outra todos nós somos egoístas. Uma tentativa de separar egoístas de não-egoístas seria dizer que os primeiros agem tendo em vista apenas os seus desejos e vontades, enquanto os segundos levam em consideração também os desejos e vontades de terceiros. Mas não é difícil perceber que se alguém leva em consideração o desejo de um terceiro, então ela teve desejo ou vontade de fazê-lo e, assim, ela é tão egoísta quanto os primeiros ali, conceitualmente não há diferença. Não vislumbro fuga possível da caverninha subjetiva. No máximo, concedo como altruístas atitudes irrefletidas e instintivas selecionados pela natureza para a proliferação e perpetuação da espécie, como a atitude de um pai ou mãe que se lança à morte para salvar a prole de um perigo ou ameaça iminente. E só, nada mais.

Embora sejamos todos essencialmente egoístas, há diversos sabores de egoísmo, conforme os desejos e as vontades eleitos como centrais em cada sujeito. Há aqueles que têm o desejo e a vontade de se sacrificar para atender os desejos e as vontades de terceiros. No fundo, é possível que estejam sendo movidos por algum medo, medo de magoar, de frustrar, de decepcionar. Então essas pessoas sacrificam muitos dos seus desejos para atender um desejo seu, o de não desapontar o outro. O outro nem precisa saber, e frequentemente não sabe, se essa pessoa atende as suas vontades por medo ou por querer, para ele, o efeito é o mesmo. E há aqueles que não se sentem muito inclinados para atender os desejos alheios a não ser quando assim estão com vontade, mas não por medo. Claro que entre um e outro há uma infinita gradação. Desconheço quem não tenha sentido medo de magoar alguma vez, que não tenha se sacrificado uma vez que fosse, da mesma maneira, mesmo os mais temerosos em magoar solapam em algum momento os seus medos para escutar outros desejos seus. E também é evidente que, em cada situação, cada qual ponderará a dimensão do seu sacrifício e a intensidade da mágoa alheia para a tomada de decisão. Não tudo é assim só branco ou preto, no meio há espaço para muita arte equilibrista.

Eu tenho como ideal o segundo sabor de egoísmo, embora esteja muito longe dele e me veja agindo por medo de magoar freqüentemente. Por que o prefiro? Por conta de outras crenças que eu tenho sobre autenticidade e sentido das minhas vivências. Quando alguém atende um desejo meu por medo, embora ela, de certa forma, não tenha se traído, pois atendeu o seu próprio medo, ela vive uma tensão, vive uma morte, a morte do desejo que ela teve de solapar para dar vida ao seu medo. Ela vive e morre ao mesmo tempo. E eu estaria vivendo uma ilusão, a ilusão de que a pessoa estaria, naquela minha vivência de prazer, pulsando, como eu, apenas vida. E nem eu, de fato, estaria pulsando vida completamente, quando muito, uma ilusória. Quando, ao contrário, os desejos e vontades de ambas as partes se conformam, a experiência de ambos é autêntica, genuína, repleta de vida, sem morte, sem cisão do ser, ambos estão plenos ali naquela vivência. Não tenho uma razão para lhes dar, mas essa é uma vivência que aos meus olhos está repleta de sentido.

Não espero dela certezas eternas, assim em um plano mais elevado do pensamento, embora em um momento ou outro, a insegurança emocional possa fazer esse clamor, mas isso é efêmero, não devo permitir que me domine. Como não desejar que ela dê vazão a toda a sua necessária solidão, que lhe é tão afeita e produtiva, que lhe rende o bem-estar de estar consigo mesma e as palavras de quem se entende ou busca se compreender? Como poderia gostar, ter por ela um sentimento e lhe desejar uma vida cindida, tensa e regida pelo medo? Não, não posso fazer isso sem deixar de ser fiel às minhas demandas mais profundas de sentido. Quando estivermos juntos será pela sinceridade das suas vontades, e das minhas, e isso é sublime, é vida pura, é belo. Eis um dos meus tons esperançosos diante da vida. Dela espero a mais admirável das sinceridades consigo mesma. E tentarei retribuir em igualdade. Tudo isso é muito ideal, é verdade, mas nossas ações são pautadas em ideais.

segunda-feira, março 17, 2008

5 personagens

A Caminhante me enviou um même, a idéia é arrolar os 5 personagens mais marcantes da sua experiência literária. Ela fez um ranking na sua apresentação, mas vou colocar os meus aqui sem ordem de prioridade e importância, pois de fato não consigo metrificá-los.

Eis a lista:

Anna Karenina. Já faz tanto tempo que pousei os olhos sobre ela que perdi os detalhes do seu caráter, mas impressionou-me indelevelmente a sua intempestividade sentimental, os seus arroubos caprichosos e, o que nos transparece de maneira mais viva no seu drama, a vivência angustiante do vazio, até que ela encontra alguma esperança ou sentido no amor.

Bentinho. É o exemplo mais do que perfeito do efeito de um caráter cético na vida prática. Como é a vida de alguém que tem a desconfiança incrustada no peito? Eis Bentinho. A mesma narrativa contada por outros olhos provavelmente teria um tom mais conclusivo a respeito da suposta traição de Capitu, mas não pelos olhos céticos de Bentinho.

Príncipe. O que mais me chamou atenção em sua personalidade não foi tanta a sua imensa disposição para a compaixão, mas a consciência sofrida das suas limitações mentais. E acabei me compadecendo por ele ao longo de quase todo o livro.

Andrey Nikolayevich Bolkonsky. O que é a experiência de morte? Como enfrentar o medo da morte? Bolkonsky é ferido gravemente em uma batalha contra os franceses de Napoleão e durante duas semanas, em seu leito de morte, o vemos refletindo sobre essas questões. É a narrativa mais densa que já li sobre a experiência de morte, sobre o enfrentamento da própria morte. Cheguei até a idealizar uma morte igualmente lenta para mim, a fim de que pudesse degustá-la também aos poucos.

Sinclair. É um personagem tão sombrio quando deveria ser para alguém que se coloca desde cedo a árdua e sofrível missão de mergulhar em si mesmo em busca do auto-conhecimento. O enfrentamento das verdades pessoais mais duras é vivenciado com profunda consciência e introspecção. Não há muito espaço para o auto-engano.

domingo, março 16, 2008

nonsense

Eu peguei a conversa no meio, mas pude entender muito bem quando ela disse à amiga que não tinham ficado um segundo sequer em silêncio, que fora um jantar espetacular, que era uma pena não ter batido o físico e tal, que, de outro modo, nas palavras dela, ele seria o seu número certo de sapato. Acho engraçado falar de relacionamentos como se fosse uma questão de encaixar aqui e ali, parece que estão montando um quebra-cabeças, um freudiano diria que no fundo essa metáfora de sapatos, gavetas e sei lá mais o que é apenas uma camuflagem para a penetração. Faz sentido, porque a moça falou do físico e tal. E não sai da minha cabeça o seu critério para a seleção do perfil psicológico perfeito: nenhum segundo em silêncio, nem um, nem meio, nem zero. Eu, eu que sou um autista sem a indiferença do autista, que faço com isso? Eu me pergunto se essas pessoas que falam o tempo todo se lembram depois de tudo o que falaram. É, mas aí também tem um erro meu, por que diabos dar tanta importância assim à memória, à lembrança? As pessoas estão apenas ali falando, falando e falando e a única finalidade mesmo é falar, não é lembrar. Eu não, além de falar, quero lembrar, pois, enquanto falo e ouço, absorvo tudo que estou sentindo ao longo. Se não lembro, se não posso reviver essas sensações, que sentido teve falar tanto? Mas isso também é meio idiota. Para que reviver ali solitariamente impressões passadas se posso simplesmente viver novamente com muito mais vivacidade essas sensações? Daí que falar, falar e falar parece ser até mais coerente. Pode até ser, é que a minha preocupação com o sentido me impede de simplesmente falar, falar e falar sem nunca pensar. No fundo sou apenas o resultado de uma patologia, de uma anormalidade, alguém, como muitos outros por aí, que sofre de uma obsessão relativamente acentuada com o sentido. Tem cura para isso? Não sei. Tem droguinha para isso? Também não sei. Só sei que nada disso faz sentido.

sábado, março 15, 2008

Amor nos tempos do Cólera.

Logo depois de ter entregado à amada a sua primeira carta de amor, Florentino Ariza volta para casa febril, sofrendo todo o desespero da espera de uma possível resposta. Consolado pela mãe, ela lhe diz para aproveitar bem aquela dor, dor de amor, pois ela não iria durar para sempre. É o que penso das minhas dores, todas elas, exceto as dores físicas, é claro, falo aqui das dores da alma; essas eu procuro saborear na mais absoluta sobriedade, sem analgésicos etílicos ou qualquer outro amaciante entorpecente. Quero viver completamente as minhas dores, extrair delas todo o conhecimento possível, pois só assim mitigo o meu medo, e o que é mais importante, só assim me sensibilizo para o outro.

Lembro em especial agora das dores de morte, dores que nascem com términos, abandonos, finais e, claro, com a própria morte. Uma em especial é-me inesquecível, pela forma como me arrebatou, me consumiu e dilacerou ao longo de algumas semanas. Noites em claro, choro compulsivo, e o que era mais aterrador: impossibilidade completa de imaginar o amanhã, como se a mente estivesse amarrada no pé da cama e não conseguisse se projetar no além. E o além tomava a forma do próprio vazio. Chegava a sentir pânico com o embotamento da imaginação, a impossibilidade de sonhar, por mais que tentasse e esforçasse, não conseguia. Era-me mesmo impossível imaginar até as coisas mais banais do dia-a-dia, como tomar café da manhã, ir para a faculdade etc. Eu pedia desesperadamente pelas imagens, mas a mente recusava-se a formá-las. Tal desespero emocional infundia-se pelo corpo na forma de calafrios, náuseas e uma certa queimação da região lombar que até hoje não sei identificar muito bem o que é. Quando a dor psíquica é muito grande, o corpo se ressente também, se enfraquece. Penso nesses dias sem pesar algum, mesmo com um olho atento ao temor que me provocam, pois também me evocam um amor que já senti e desta lembrança eu gosto. É esperançosa.

O filme do título é bom, mesmo para quem já leu o livro, mas desaponta logo na primeira fala com o inglês canhestro saído da boca do Juvenal, ali estirado no chão, morrendo. Espanhol, por favor!

terça-feira, março 11, 2008

Fé em si mesmo

Se eu fosse recomendar um preceito para o bem-viver tal como o fazem religiosos ou membros de uma seita qualquer, ele teria a seguinte forma: tenha fé em si mesmo. Há outros que querem dizer a mesma coisa, mas sob perspectivas diferentes: seja sempre o seu juiz, seja fiel a si mesmo etc. Prefiro, no entanto, o primeiro, o termo "fé" ali é significativo e, ao mesmo tempo, paradoxal. Ele indica uma força irracional, um meio de se sustentar, de manter a confiança em si, mesmo quando todas as razões lhe indicam o contrário. Contudo, é paradoxal que ele apareça em um preceito quando ele é o próprio sustentáculo do ser e não algo que se possa escolher, seguir ou agir em conformidade por livre arbítrio. Ainda assim ele cabe naquela fórmula. Em se tendo essa força, ela se auto-propulsiona, ela leva o sujeito a segui-la.

domingo, março 09, 2008

Ato público

Chega! Hoje vou ter de contar. Guardei essa observação por muito tempo pensando que ela fosse incorreta, afinal, quando mudamos para uma cidade nova, chegamos lá de olhos arregalados, procurando por qualquer diferença comportamental, só que nos esquecemos que não mantínhamos os olhos assim tão abertos na cidade de origem e o que agora nos parece diferente na cidade nova talvez fosse habitual também na de origem. Enfim, julgamentos comparativos que não foram balizados por uma metodologia mais rigorosa são muito provavelmente errôneos. Foi com este medo que protelei o que logo lhes confessarei. Não que eu tenha me munido de uma metodologia muito rigorosa para atestar a verdade do meu juízo, mas considero a evidência reunida bastante razoável.

Na verdade, até hoje eu achava que o meu juízo deveria se limitar ao curitibano do sexo masculino. Mas eis que minha mãe, tendo passado oito meses em Porto Alegre, lança, sem que eu lhe tenha falado absolutamente nada sobre o assunto, o mesmo juízo a respeito dos porto-alegrenses. Fiquei imensamente surpreso na hora. Não que eu pretenda agora alargar o meu juízo e transformá-lo numa sentença regionalista, continuarei me limitando aos curitibanos, foram os que presenciei. No entanto, o fato de a minha mãe ter notado lá em Porto Alegre o mesmo que observo aqui sugere, pela diversidade das fontes de informação, que nossos olhos não estão, neste caso, tão carregados de prejuízo. Até porque a minha mãe não é do tipo antropólogo e se este comportamento lhe saltou às vistas, então é mais provável que de fato haja uma diferença comportamental do que ela tenha simplesmente notado algo que também é habitual na sua cidade apenas por estar com olhos mais abertos.

Tudo começou quando, andando em uma rua bem próxima do centro, de movimento considerável de carros e pessoas, observei um cidadão fazendo X. Achei um pouco estranho, mas na hora nem dei muito assunto, pensei se tratar de coisa de bêbado, apesar da claridade e do horário: meio-dia. Com o tempo, comecei a observar outros cidadãos fazendo o mesmo com relativa freqüência, e o que é pior, não se poderia dizer que estavam bêbados, de modo algum. Vi trabalhadores, jovens, adultos, vi até aluno da UFPR fazendo X ou pelo menos usava a mochila da instituição e se vestia como estudante, enfim, o ato não parece fazer distinção social ou de idade. Vi eles fazendo isso em ruas movimentadas em pela luz do dia. Não é nada recatado, não percebo nenhuma vontade de esconder o ato. Parece que fazem disso um assunto público mesmo. Um dia, para o meu espanto, vejo um moleque de uns 10 anos de idade fazendo X em pleno pátio do centro politécnico. O pai ao lado nada falou. Eu fiquei encafifado, ficava pensando, será que em Belo Horizonte faziam isso e nunca notei? É tão comum e despudorado lá quanto é aqui?

Em meu socorro vieram outros forasteiros, alguns paulistas, outros nortistas, compartilhando o meu espanto. Falando baixinho, quase segregando, relataram-me também as inúmeras vezes que viram curitibanos do sexo masculino fazendo X. Contaram-me a mesma despreocupação com o horário e o lugar que eu já tinha observado. Era o que me faltava para fortalecer a convicção do meu juízo e afastar a idéia de que estava sendo preconceituoso com os curitibanos. Ainda assim faço o juízo com certa timidez, pois é espantoso que um povo tão orgulhoso da sua civilidade, que não joga papel no chão, o que aliás muito me agrada, faça isso assim nas suas ruas de maneira tão despudorada e com tanta freqüência.

O que é X, afinal? Cansei de ver nessa cidade os seus espécimes masculinos abrirem sem vergonha suas barguilhas, retirarem seus equipamentos sexuais para fora a fim de regar a cidade com o seu amor uréico. Sim, já ouço o clamor indignado. Até parece que ninguém mija nas ruas em Belo Horizonte ou São Paulo. Claro que muitos mijam, eu mesmo já mijei. Mas na noite calada, na surdina, completamente bêbado, e ainda assim envergonhado, andando várias quadras até encontrar um beco bem escuro, olhando para todos os lados temendo o flagrante. O que me espanta aqui não é o fato bruto de mijarem, mas o fato de não sentirem vergonha, de não se preocuparem em se esconder, de não selecionar ruas vazias e desertas. Talvez em Belo Horizonte mijem nas ruas com a mesma freqüência que se mija aqui, mas como fazem isso na surdina, ninguém nota, ninguém vê, não é algo que salta às vistas. Aqui não, não há dia que caminhe umas três horas pela cidade sem ver uma instância do ato impudico. E segundo os relatos da minha mãe, acontece o mesmo em Porto Alegre. Vai ver é coisa do sulista fazer da mijada um ato público.

sexta-feira, março 07, 2008

Silêncio Introverso

O jeito é tomar o último copo e degustar o meu silêncio com a única pessoa que conheço apreciá-lo: eu. E no fundo, quando fico calado na companhia alheia, nem é por não ter o que falar, ou por não querer falar, é por desejar que a pessoa tenha, assim como eu, a oportunidade de voltar a atenção para as suas sensações e emoções de modo a aproveitar por completo o momento. Isso é coisa de introverso, eu sei. Não deveria tentar impor o meu jeito de ser ao extrovertido, ele não quer saber de silêncio, ele quer falar, quer dispersar, quer se movimentar, agir, não tem dessa de voltar para si para perceber melhor o impacto emocional do objeto/ser/pessoa que ele tem na sua frente.

E eu ali ao lado absorvendo e apreciando maravilhado a empatia que me infundia, mas é certo que ela não sentiu nenhuma e exasperava-se com o meu mutismo. Nessas horas penso em falar aleatoriamente qualquer coisa só para deixar o outro menos incomodado, mas acabo resistindo a essa idéia de não ser eu mesmo. Talvez esteja sendo um pouco egoísta ao agir assim, ao não tentar resistir ao magnetismo das minhas emoções internas, no entanto, o que a outra pessoa ganharia, além de uma falsa sensação de entrosamento, ao me perceber forçando uma fala que não saiu de mim naturalmente? Opto pela sinceridade silenciosa, mesmo que isto me custe a dolorosa percepção do enfado nos olhos alheios. Eu compreendo tudo isso muito bem, o que não me impede de sentir na pele o estranhamento que provoco.

quinta-feira, março 06, 2008

Homem vai na barbearia. Ponto.

Desde que cheguei nessa cidade meu hábito de cortar o cabelo ficou embotado. Aqui na minha quadra, há três salões, um deles supostamente unissex, pelo menos tem uma placa lá que o intitula assim. Por uma questão de comodidade, passei a freqüentá-lo, porém apenas de quatro em quatro meses. Nada contra o corte, que é bem feito até. O que me desmotiva a ir lá é o seu público majoritariamente feminino. Do sexo masculino, além de mim, só vi lá uma vez um menininho de uns 6 anos. Antes mesmo de chegar na porta fico envergonhado, a cara se avermelha ainda mais quando entro e todas aquelas mulheres me encaram interrogativas, como se eu fosse um criminoso por estar ali. "O que você deseja?". Fazer a unha do pé é que não, né minha cara?

Então que essa semana eu precisava cortar o cabelo, com esse calor, não o suporto muito grande. Acordei bem cedo para ver se encontrava o salão ainda vazio, só que exagerei na antecipação, estava fechado. Resolvi dar uma volta no quarteirão, passei ali no Mercado Municipal e lá dentro deparei com uma barbearia. Opa, vamos tentar, logo pensei. Entrei e sentei na poltrona de espera. Um sujeito nos seus 40 anos estava já na cadeira sendo servido pelos cortes do babeiro e um velhinho esperava também a vez. Ambiente silencioso, sem tagarelice e ao meu lado a gazeta do povo que, se não é um bom jornal, pelo menos é um jornal, pois lá no salão tinha só Caras, Gente e sei lá mais o que fofoqueiro que não me dizem respeito.

As conversas não foram ininterruptas, ao contrário, eram agradavelmente permeadas por silêncio, falou-se do caso da Colômbia, do governo, de carros e um pouco de futebol também, é claro, difícil faltar, o velhinho, quando me viu lendo a seção de economia, chegou mais perto para perguntar o preço da soja e me falou um pouco sobre o mercado da commoditie, mas sabe, tudo assim bem leve, agradável, pausado, nada histérico, nada muito pessoal, como aconteceu uma vez lá no salão, chegou-me uma patricinha, não, não sou eu que estou lhe dando esse rótulo, ela mesma se descreveu assim, estava cheia de trejeitos, chamando a atenção, e logo se pôs a narrar em alto bom tom e com detalhes sórdidos a briga que teve com a sua mãe na noite anterior; eu quase desesperado olhava para as outras mulheres esperando alguma cara de indignação ou mesmo de enfado, mas todas estavam muito bem sintonizadas e interessadas no relato, como se a novela da noite anterior continuasse ali. Nesse dia eu até queria um corte mais curto, mas quando a cabeleireira me perguntou pela primeira vez se estava bom, não pensei duas vezes, já fui me levantando, falando que estava ótimo e fugi dali o mais rápido possível.

Enfim, pela metade do preço tive um corte tão bom quanto o do salão e a minha espera foi adornada pela mais perfeita paz. Saí dali convicto de que lugar de homem é na barbearia.

segunda-feira, março 03, 2008

Algumas pessoas têm fé. Outras não a têm e invejam aqueles que a possuem. Por fim, há ainda aqueles que ignoram a fé por completo, seguem em frente sem se importar com a questão. Pascal chamou os primeiros de "felizes", os segundos, de "infelizes" e os últimos, de "loucos". Fui feliz até mais ou menos os treze anos de idade. Desde então venho oscilando entre a infelicidade e a loucura. Segundo Pascal, é claro. Confesso que a loucura tende a tornar a vida um pouco mais leve, sem o peso amargo do infeliz; contudo, desprovido da âncora dos felizes, você precisa ser um exímio equilibrista para andar sobre a corda bamba sem cair.

sábado, março 01, 2008

In-verdades à trois

- Hoje em dia todo mundo acha que pode dar palpite sobre qualquer coisa, todo mundo tem a sua opinião sobre qualquer assunto.
- É verdade...
- Você começa a discutir um assunto com uma pessoa e ela já vem logo te calando: "você tem a sua opinião, e eu tenho a minha". E o que é pior, ela acha que tanto você quanto ela estão corretos.
- E num é? (concordando em tom irônico com a indignação).
- É um absurdo. Se eu digo uma coisa, e a outra pessoa diz o contrário, ou eu, ou ela está correto.
- Evidentemente...(que tolinho, pensa secretamente)
- Assim fica tudo muito fácil e todo mundo vai para casa com ares de sabichão.

Sim, sim, a senhorita Verdade é uma mocinha muito da metida e vaidosa, difícil de ser conquistada, os mais céticos diriam impossível obter o seu coração, quanto muito a sua atenção; já os relativistas, gozadores da vida, chamam de "Verdade" a rapariga mais barata da esquina, e enfiando a mão no bolso, saem de mãos dadas cada qual com a sua. Desfilam esnobes pelas ruas.

Há verdades psicológicas por trás disso tudo. Como vamos chamar esse senhor que anda atrás de uma moça que nunca viu e que acredita piamente ser capaz de reconhecê-la quando lhe pousar as vistas? Que sabe ele dela? Na verdade, nada, nem mesmo se ela existe, embora já tenha se convencido da sua existência e delire com a sua virgindade. Parece que nasceu com essa convicção inscrita no peito. Na sua alma, notamos o carimbo da sua verdade psicológica: sonhador frustrado. Refugiando-se em seus sonhos e delírios, ele vive até com uma certa animação a sua frustração diária do desencontro.

Esse senhor tem um amigo, um falso amigo, para dizer a verdade, que anda em sua companhia para tudo quanto é lado: o cético. Este aí não passa de um fingidor, minha gente. No fundo, bem secretamente, ele não acredita que a moça perseguida pelo seu amigo exista. Mas ele jamais lhe confessa tal coisa. Faz justamente o contrário. Ele pega na mão do amigo, meio assim viadinho mesmo, e sai com ele pelas ruas fingindo que a procura também, mas sua intenção secreta é destilar o sadismo e rir-se por dentro com a frustração do amigo. Sempre que o vê arregalando os olhos cheios de esperança diante de uma moça, ele chega bem pertinho do seu ouvido com uma dúvida penetrante. Que prazer sente em vê-lo chorar! Tanto ódio só por invejar a esperança do amigo e apenas nesse ódio encontra o sentido da sua existência parasitária.

Que sujeirada! O relativista é um piolho de puteiro, o sonhador, um lunático frustrado e o cético, um infiel invejoso! Que balbúrdia! Você me coloca o relativista para falar do cético, o cético, do sonhador e o sonhador, do relativista. Opa, e agora, quem está falando? Isso não é justo, quem ficará com a palavra final? Ora, pouco importa. Na memória da platéia, vence quem gozou mais.

sábado, fevereiro 23, 2008

Filósofo

Eu estava sentado sozinho tentando pensar em algo que pudesse despejar no papel quando vejo na porta de entrada um rosto meio conhecido. Ele olhou para mim com a mesma cara de indagação, tentando buscar na memória alguma imagem para o reconhecimento. Não sei quem fez primeiro a cara de agora eu sei quem você é, mas passados dez segundos, ele já estava sentado na minha mesa, seu copo estava cheio e bebíamos ao reencontro. É o único aluno de filosofia que conheço nessa cidade, mas de um contato mínguo, é verdade, majoritariamente cibernético. Ele gosta de Hegel e eu sinceramente nunca tive paciência para esse hermético de escrita embromada e obscura. Mas eu o deixei falar apaixonadamente sobre o seu filósofo predileto e, ao mesmo tempo, fui lembrando de mim mesmo, anos atrás, quando ainda estava na graduação de filosofia e demonstrava uma paixão parecida, embora por outro filósofo: Wittgenstein.

Eu já tinha quase me esquecido dessa época áurea e encantada dos primeiros anos de encontro com a filosofia em uma graduação regular. Tudo é muito intenso e apaixonado, a ingenuidade e a esperança são elevadas, o vírus cético ainda não se infiltrou na carne, a mente vive imersa em sonhos longínquos, densos e coloridos, cada rosa que se vê na rua parece lhe dizer algo profundo, cada mente humana, um universo sem fronteiras, até que, ao final do curso, você começa a entrar em um contato mais íntimo com a sua dimensão institucional e burocrática. Em um dia terrível, que te marcará para sempre, você pergunta ao seu provável futuro orientador se seria possível escrever a dissertação de mestrado na forma de um diálogo, e ele, com olhos de reprovação e quase indignação - afinal, como, a essa altura, você aparece com um absurdo desses na boca? -, lhe dirá que absolutamente não, que um diálogo não é científico, não tem a estrutura de um texto acadêmico, apesar de ter sido cultivado
amplamente na antiguidade e ter sido resgatado na modernidade por uns e outros. Claro, filosofia agora é ciência e o seu gênero literário, o paper. Seja coerente com o seu tempo, meu filho.

Você avança nos degraus da academia e se vê cada vez mais cercado de pressões que não lhe parecem ter absolutamente nada a ver com aquela paisagem livresca e sublime que lhe infundia os sentidos nos primeiros anos. A liberdade que você supunha ter para pensar é cada vez mais restringida até o dia que você chega mesmo a sentir vergonha por pensar. Filósofo não pensa, ou melhor, como ousa, como ousa pensar que é um filósofo? De onde veio toda essa arrogância? Quando muito, você é um estudante de filosofia. E do pior tipo: um estudante que não busca nada além de uma compreensão fingida. Vamos, meu filho, venha comigo, vou lhe ensinar a repetir bem, temos muitos mantras aqui, há de gostar de algum.

Um dia você é apresentado ao paper, esse modelo primoroso e consagrado da literatura científica. Essencial para o adestramento do seu pensar, para lhe dar, assim, uma certa linearidade e objetividade e, eu acrescentaria também, monotonia. Vamos lá, é fácil, fácil até demais. Introdução, revisão bibliográfica, paráfase, paráfase e mais
paráfases, desenvolvimento, isto é, comentário, comentário e mais alguns comentários, por fim, a sua tênue e ligeira conclusão onde você finge ter pensado alguma coisa. Os mais covardes até lhe segregam nos ouvidos conselhos valiosíssimos: nunca diga nada a não ser que esteja apoiado em um gigante, e se lhe apontarem os erros, balance os ombros, como quem diz: ora, é o gigante ali quem errou, ele é o culpado, estou isento. A filosofia que antes era sentida como um oceano de possibilidades, paraíso livre para a imaginação, lhe aparece agora como um deserto árido sob o cárcere do paper, onde só se pode andar de quatro. Nem preciso dizer o porquê. E o que é pior: tornou-se uma atividade tão fácil quanto entediante. Filosofia mecanizada, afiliada
à indústria científica, fábrica de papers.

A vivência entre os pares que antes era harmoniosa, fraterna e repleta de partilha torna-se cada vez mais violenta a medida que vamos sendo envenenados pela vaidade e o orgulho. Entramos no curso com ingênua franqueza, argumentos focados no assunto, e saímos de lá peritos nos golpes ad hominem. Se é para bater, bata forte. Na pessoa, claro, idéias aqui pouco nos importa. Fomos expulsos do paraíso idílico, estimulados a falar línguas diferentes, a nos odiar, a encarar o diferente como oponente, a maltratá-lo, a olhá-lo de cima para baixo, arrogantemente. Cada vez mais vaidosos e cada vez mais solitários. A experiência filosófica se confunde, neste estágio, com a experiência de extrema solidão. Alguns levam tão a sério o mantra do repeteco, aprendem a copiar tão bem que cresce neles a convicção de que conhecem até melhor a obra do autor que o próprio autor, se bobear alguns até pensam ser a reencarnação espiritual do autor; babam raivosos quando você menciona os filósofos que eles tomaram por prediletos. É uma coisa meio louca e doentia mesmo. Cada qual achando que tem monopólio sobre a boca do filósofo adotado, como se já não bastasse o ridículo de adotar um.

Por fim, você tem o azar de cair nas mãos de um orientador que além de não ler o que você escreve, te faz passar de duas a quatro horas numa sala para ouvi-lo palestrar sobre os assuntos que interessam a ele, não sobre os que te interessam e que estão ali escritos no texto que ele deveria criticar. Mas ele critica, mesmo sem ler, ele critica. Ele aponta erros. Veja, esse argumento está fraco, não responde a essa possibilidade. Não? Respondo sim, veja aqui na página N. Ah, é verdade, devo ter passado rápido por ela. Se isso acontecesse vez ou outra, mas não, é a própria constante.

Então fiquei ali com ares de nostálgica melancolia contemplando todo aquele frescor filosófico juvenil ainda incólume das perversidades que a instituição acadêmica há de lhe inocular mais cedo ou mais tarde. Já notei, aliás, os primeiros indícios de vaidade crescente.