Eu estava sentado sozinho tentando pensar em algo que pudesse despejar no papel quando vejo na porta de entrada um rosto meio conhecido. Ele olhou para mim com a mesma cara de indagação, tentando buscar na memória alguma imagem para o reconhecimento. Não sei quem fez primeiro a cara de agora eu sei quem você é, mas passados dez segundos, ele já estava sentado na minha mesa, seu copo estava cheio e bebíamos ao reencontro. É o único aluno de filosofia que conheço nessa cidade, mas de um contato mínguo, é verdade, majoritariamente cibernético. Ele gosta de Hegel e eu sinceramente nunca tive paciência para esse hermético de escrita embromada e obscura. Mas eu o deixei falar apaixonadamente sobre o seu filósofo predileto e, ao mesmo tempo, fui lembrando de mim mesmo, anos atrás, quando ainda estava na graduação de filosofia e demonstrava uma paixão parecida, embora por outro filósofo: Wittgenstein.
Eu já tinha quase me esquecido dessa época áurea e encantada dos primeiros anos de encontro com a filosofia em uma graduação regular. Tudo é muito intenso e apaixonado, a ingenuidade e a esperança são elevadas, o vírus cético ainda não se infiltrou na carne, a mente vive imersa em sonhos longínquos, densos e coloridos, cada rosa que se vê na rua parece lhe dizer algo profundo, cada mente humana, um universo sem fronteiras, até que, ao final do curso, você começa a entrar em um contato mais íntimo com a sua dimensão institucional e burocrática. Em um dia terrível, que te marcará para sempre, você pergunta ao seu provável futuro orientador se seria possível escrever a dissertação de mestrado na forma de um diálogo, e ele, com olhos de reprovação e quase indignação - afinal, como, a essa altura, você aparece com um absurdo desses na boca? -, lhe dirá que absolutamente não, que um diálogo não é científico, não tem a estrutura de um texto acadêmico, apesar de ter sido cultivado
amplamente na antiguidade e ter sido resgatado na modernidade por uns e outros. Claro, filosofia agora é ciência e o seu gênero literário, o paper. Seja coerente com o seu tempo, meu filho.
Você avança nos degraus da academia e se vê cada vez mais cercado de pressões que não lhe parecem ter absolutamente nada a ver com aquela paisagem livresca e sublime que lhe infundia os sentidos nos primeiros anos. A liberdade que você supunha ter para pensar é cada vez mais restringida até o dia que você chega mesmo a sentir vergonha por pensar. Filósofo não pensa, ou melhor, como ousa, como ousa pensar que é um filósofo? De onde veio toda essa arrogância? Quando muito, você é um estudante de filosofia. E do pior tipo: um estudante que não busca nada além de uma compreensão fingida. Vamos, meu filho, venha comigo, vou lhe ensinar a repetir bem, temos muitos mantras aqui, há de gostar de algum.
Um dia você é apresentado ao paper, esse modelo primoroso e consagrado da literatura científica. Essencial para o adestramento do seu pensar, para lhe dar, assim, uma certa linearidade e objetividade e, eu acrescentaria também, monotonia. Vamos lá, é fácil, fácil até demais. Introdução, revisão bibliográfica, paráfase, paráfase e mais
paráfases, desenvolvimento, isto é, comentário, comentário e mais alguns comentários, por fim, a sua tênue e ligeira conclusão onde você finge ter pensado alguma coisa. Os mais covardes até lhe segregam nos ouvidos conselhos valiosíssimos: nunca diga nada a não ser que esteja apoiado em um gigante, e se lhe apontarem os erros, balance os ombros, como quem diz: ora, é o gigante ali quem errou, ele é o culpado, estou isento. A filosofia que antes era sentida como um oceano de possibilidades, paraíso livre para a imaginação, lhe aparece agora como um deserto árido sob o cárcere do paper, onde só se pode andar de quatro. Nem preciso dizer o porquê. E o que é pior: tornou-se uma atividade tão fácil quanto entediante. Filosofia mecanizada, afiliada
à indústria científica, fábrica de papers.
A vivência entre os pares que antes era harmoniosa, fraterna e repleta de partilha torna-se cada vez mais violenta a medida que vamos sendo envenenados pela vaidade e o orgulho. Entramos no curso com ingênua franqueza, argumentos focados no assunto, e saímos de lá peritos nos golpes
ad hominem. Se é para bater, bata forte. Na pessoa, claro, idéias aqui pouco nos importa. Fomos expulsos do paraíso idílico, estimulados a falar línguas diferentes, a nos odiar, a encarar o diferente como oponente, a maltratá-lo, a olhá-lo de cima para baixo, arrogantemente. Cada vez mais vaidosos e cada vez mais solitários. A experiência filosófica se confunde, neste estágio, com a experiência de extrema solidão. Alguns levam tão a sério o mantra do repeteco, aprendem a copiar tão bem que cresce neles a convicção de que conhecem até melhor a obra do autor que o próprio autor, se bobear alguns até pensam ser a reencarnação espiritual do autor; babam raivosos quando você menciona os filósofos que eles tomaram por prediletos. É uma coisa meio louca e doentia mesmo. Cada qual achando que tem monopólio sobre a boca do filósofo adotado, como se já não bastasse o ridículo de adotar um.
Por fim, você tem o azar de cair nas mãos de um orientador que além de não ler o que você escreve, te faz passar de duas a quatro horas numa sala para ouvi-lo palestrar sobre os assuntos que interessam a ele, não sobre os que te interessam e que estão ali escritos no texto que ele deveria criticar. Mas ele critica, mesmo sem ler, ele critica. Ele aponta erros. Veja, esse argumento está fraco, não responde a essa possibilidade. Não? Respondo sim, veja aqui na página N. Ah, é verdade, devo ter passado rápido por ela. Se isso acontecesse vez ou outra, mas não, é a própria constante.
Então fiquei ali com ares de nostálgica melancolia contemplando todo aquele frescor filosófico juvenil ainda incólume das perversidades que a instituição acadêmica há de lhe inocular mais cedo ou mais tarde. Já notei, aliás, os primeiros indícios de vaidade crescente.