terça-feira, abril 29, 2008

Paranóia.

Em dias normais, quando ele amanhece cinza e chuvoso, eu acordo e levanto com uma alegre disposição. Hoje não. Vi pela janela o cinza que tanto me agrada, escutei os pingos torrenciais da chuva que caia, refrescantes, mas continuei sem forças para levantar. Minhas obrigações vieram à mente e nada. Não imagino que sonho ou pensamento noturno possa ter tido para acordar assim. Sinto o efeito, desconheço a gênese. Minto. Lembrei-me da minha paranóia. Não é isso, não penso que sou perseguido, que há alienígenas tentando me capturar ou que, quando algo dá errado no trabalho ou na faculdade, exista uma confabulação dos meus colegas, superiores e professores para me sacanear. Não tenho esse tipo de paranóia, não acho que sou perseguido, nem que as pessoas vão se esforçar para me prejudicar, não me dou toda essa importância, embora até tenha motivos para pensar que sou perseguido. Uma pessoa disse ter me visto passar várias vezes sem que eu a tenha visto ou notado. Não tenho medo. Sofro do que se pode chamar de "paranóia emocional" ou "paranóia pessimista". Suponho sempre que serei rejeitado e que se a minha presença não causa desgosto, desperta, na melhor das hipóteses, indiferença. Tenho olhos de águia para os sinais da rejeição. Um olhar distante, a falta de um sorriso no momento oportuno, as mil e uma maneiras, talvez muitas inventadas por mim, do enfado se expressar em um rosto, a delonga em responder-me, em qualquer situação, presencial, e-mail, msn, este, então..., tudo isso é filtrado em pilo automático pelos meus olhos como sinais inequívocos da rejeição. Pergunto-me de onde provém essa falsa (?) convicção de que enfado, quais seriam os acontecimentos remotos que a teriam fomentado. Seria o fato de a minha mãe não ter me dado uma gota sequer do seu leite materno, ou seriam os abraços que minha tia me negava sem qualquer motivo que eu pudesse entender, tão pequeno para compreender, mas tão atento para sentir, enquanto agarrava todos os seus outros sobrinhos diante dos meus olhos com efusiva alegria, ou o fato de ser sempre, sempre, o último a ser escolhido nos esportes coletivos, mesmo odiando-os, vendo-me, então, forçado a encarar olhares de ódio no time que me recebia ou, na melhor das hipóteses, de pena resignada, ou ainda o ser jogado no sofá do meio enquanto meu pai se derretia, na esquerda, justo ele canhoto, em carícias com a minha irmã e a minha mãe se comprazia, no sofá da direita, atenta e indiferente a mim o programa televisivo? Poderia continuar a lista e talvez me faltassem dedos para ela. Nasci com essa tendência pessimista e cada um desses itens a reforçou e comprovou, destacando a rejeição diante dos meus olhos e ofuscando todas as outras manifestações de apreço e carinho por mim, ou a soma delas incrustou em meu peito a convicção que me sentencia? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Mesmo quando estou consciente de todos esses fatos, mesmo quando em um ato fervoroso de esperança imagino infundadas todas as rejeições lembradas, ainda assim não consigo evitar as interpretações pessimistas. Elas invadem a minha mente, aparecem como um rio caudaloso transbordando; nessas horas, sinto que não sei nadar, afogo-me. Tantas vozes me acuando. Veja, nem respondem o que diz, não é interessante, olha só, agora estão monossilábicos, pare, não cause tanto enfado, afaste-se, afaste-se. Então recolho-me na quietude. A voz continua. Não percebe que preferem beltrano, ciclano e fulano a você? Por que insiste? Por que se humilha tanto se percebe o desprezo? E sinto-me humilhado e desprezado. Piora ainda quando aparece a culpa. Sim, culpa. Antes de aceitar completamente resignado o corpo que se afunda no rio, lanço-me em desesperadas batidas, buscando um último engolfo de ar, a última respiração. Pinto-me melancólico. Espero a compaixão. Que sensação de miséria me gera a consciência desse ato! E culpa, culpa mortal por ter exercido sobre o outro uma influência tão vil, mesmo que sem intenção, mesmo que levado pelo desespero do afogamento. Então paro de me agitar. Vejo-me afundando aos poucos. O frio da água me adormece.

E, no entanto, seria capaz de me lançar ferino a quem me acusasse de falta de amor próprio. Vivo essa contradição. Eu simplesmente não consigo imaginar razões sensatas para que me rejeitem, para que me pretiram tanto, tenho ampla convicção e consciência de inúmeras qualidades minhas, e, no entanto, não só sinto a rejeição como a interpreto e vejo em tudo quanto é canto. Daí nasce mais uma situação, entre tantas outras, para a sensação de completa solidão.

quarta-feira, abril 23, 2008

Ela, o vermelho e a confissão.

Ela chegou de mansinho, com dúvidas, reticente, como era de se esperar com a dor tão recente. Se eu confessar a ela, não vai acreditar, mas a verdade é essa: quando seus olhos pequenos e doces me encontraram pela primeira vez, tremi todo; o vermelho dos seus cabelos dilatou agradavelmente a minha atenção. Eu estava com o meu livro azul do Nietzsche nas mãos, abaixei a cabeça e fingi que lia compenetrado um último pensamento, enquanto ela se aproximava; estava nervoso, não conseguia ter nenhuma idéia para a primeira fala, embora milhares de pensamentos passassem cortantes pela minha mente. Eu com essa minha mania de me achegar nas pessoas pelas suas palavras, já tinha apreciado as dela, estive com seus pensamentos sem estar com ela e agora ela me aparecia bem diante de mim, provocando-me a tremura de um admirador. Segurei firme o meu livro, esperado dele talvez algum apoio, e senti aumentar a cada passo que ela dava, na boca do estômago, o receio da rejeição. Foi ela quem perguntou do livro azul. Eu lhe respondi gestualmente, mostrando a capa. Não fez nem que sim, nem que não, eu desconhecia, então, o seu desgosto pelo autor. Arrogância desmedida, confessou-me depois. Concordo, ainda assim aprecio a sua iluminação, nada que umas boas reprimendas e correções não resolvam. E que importa isso agora na minha lembrança? Nada. Enrolo para postergar a confissão do meu desejo súbito, ao sentir irrefutável a sua presença, de enfiar-me na mochila junto com o livro ou de sair correndo dali desesperado. Esconda-se, esconda-se rapaz..., agora é tarde, ela está ao lado te olhando e espera alguma reação. Nessa idade e com essa vergonha. Que vergonha! O calor era imenso e ela deu a agradável sugestão de caminharmos pela rua. Eu suava muito, calorento que sou, e ainda mais pelo nervosismo. E a consciência desse fato só me fazia suar ainda mais. Lastimável. Queria sumir, definitivamente. Mas aceitei a sua sugestão, controlando as minhas pernas fugidias, e assim fomos peripatéticos. Feitos baratas tontas, cruzamos as mesmas quadras e ruas dezenas de vezes. A tontura, eu assumo, era toda minha. Quase tive uma síncope na primeira curva quando ela soltou: "acho que a conversa ainda não engatou". O sinal da rejeição apitou forte, respirei fundo e chamei em meu socorro a tranqüilidade do introverso, só ela poderia salvar-me do pânico do tímido. E ela veio. Mais alguns passos e pude voltar a respirar normalmente. Conversamos bem, muito bem mesmo e fiquei ainda mais admirado do que já estava. Não vivo só de pensamentos e também gosto de ver as pessoas no mundo. Adorei vê-la assim. Adoro vê-la assim.

Sei que nesse primeiro encontro não causei nela o mesmo impacto que ela me causou. Só no segundo, talvez. Paciência. Culpa minha de ter falado menos para observar mais? Não sei. Quando nos despedimos, ela me deu um abraço e um sorriso, guardei-os comigo a noite toda; na verdade, até hoje os tenho bem vivos e coloridos. Fui embora para casa sonhando alto, só fui dormir quando a madrugada perdia a sua mocidade.

terça-feira, abril 15, 2008

Babaquice

Algo que me choca e desencadeia a minha revolta é a babaquice humana. Então tinha esse carinha que, enquanto terminava o seu doutorado, passeava lá pelo departamento todo sorridente, cheio de amizade, enturmado, só na humildade. Não muita, é claro, mas também não se notava lá nenhuma intenção de se distinguir, pelo menos nada muito consciente. Pintou um concurso no departamento, ele apressou sua defesa, estudou lá um monte e passou. Mérito dele, claro. Vieram as férias. No início do semestre tava ele lá pronto para assumir o cargo e junto com ele a sua mudança de personalidade. Agora anda de olhar grave, sem muito sorriso, já não cumprimenta a todos, só os de interesse, os professores mais velhos, olha meio de desdém para os alunos etc. Enfim, faz questão de afirmar a sua distinção professoral. Dava para fazer melhor, um carimbo assim com letras bem garrafais "PROFESSOR", tinta nova e fresca, e pimba, bem forte na testa. Tudo bem, pra quem usa franja não dá, mas entre uma rajada e outra de vento todo mundo também ficaria sabendo. Sério, eu sinceramente não entendo porque a obtenção de um título ou a lotação de um cargo tenha de mudar radicalmente a percepção que a pessoa tem de si. Eu chamo isso de babaquice. Eu tento me imaginar no lugar dele, passando por uma situação semelhante e espero mesmo não ser afetado dessa maneira por uma mudança desse tipo.

segunda-feira, abril 14, 2008

A Lágrima lúgubre-feliz

meu tom brega-romântico pincela a lágrima lúgubre-feliz: ali durante o abraço que completa, quando os olhos se fecham para o melhor sentir e o bem-estar se infunde por todo o corpo, nos levando àquela sensação remota e primeva de unidade total, eis que um pensamento atrevido emerge na penumbra, vagueando nas bordas da mente, cutucando pontiagudo o conforto arredondado, dura pouco, é verdade, nem um piscar de olhos, mas traz consigo o medo remoto, a possibilidade da negação do abraço presente, o vislumbre da ausência do bem envolvente, tudo muito vago, um mero ponto no oceano do conforto presente, mas suficiente para desencadear algumas sinapses; e o corpo reage pelo arco-reflexo, o abraço se retese, de olhos ainda fechados, desce vagarosa a lágrima lúgubre-feliz, evidencia insofismável do pensamento relâmpago e cuja existência é dada a apreciar somente pelos extasiados, só aí ela ganha o seu sentido; vai-se embora rolando, esvaindo-se sobre a pele, valorando o próprio êxtase que buscou negar na possibilidade lúgubre, deixando-o, porém, incólume na efetividade.

terça-feira, abril 08, 2008

Somente um pesar...

Eles falam risonhos, parecem se divertir, a gesticulação é enérgica e os movimentos bruscos do corpo expelem viva sinceridade, mas sinto-me apático, a maior parte do tempo é assim, confesso com certo pesar; eu começo prestando atenção no que estão dizendo, até me esforço para achar graça também e raramente consigo. Quando sim, brinco e me envolvo com a mesma patetice. Mas dura pouco. A consciência da minha tolice emerge e me retenho ou então sinto que o meu tom abobado não encontra respaldo. Aí me retenho mais ainda, envergonhado. Um deles me falava qualquer coisa e eu já não sabia mais o que era, ele sorria e eu respondi com lábios fingidos sem saber o porquê da graça. Não faço isso em completo piloto automático, às vezes é semi-consciente, nem é por querer parecer sociável, é por não querer que se sintam sem atenção. É horrível sentir-se desatendido. Eu dou muita atenção, muita mesmo e, às vezes, a dou até sem estar atento. Não acho que isso seja de todo falso, é um caso em que o efeito benéfico desculpa a ausência da intenção. Mas só faço assim com os de pouco ou médio apreço. Os de muito apreço têm sempre a minha atenção real, completa, nem tinha como ser diferente, estou ligado a eles por um vivo interesse, digo, interesse neles. É o que me alimenta de verdade, me tira da apatia, os seres humanos, raríssimos, que se me permitem o mergulho. Não só isso, que também me despertam, por razões que desconheço, a vontade de lhes conhecer a essência. A eles me dôo integralmente. Mas com os outros ali, os de médio, pouco ou nenhum apreço, ah, confesso, às vezes eles me estimulam o vazio total, não um vazio de sentido, angustiante ou entediante, vazio de pensar mesmo. Fico diante deles completamente absorto no nada. Nunca meditei, mas pelo que falam da experiência, é o que penso ter nessas situações, um certo não-pensar. Depois essa tranqüilidade vazia dá lugar ao pesar por não ter participado da interação, por ter vivido toda a situação não como se estivesse nela, de dentro, mas um passo atrás, de fora, só olhando. Pior de tudo é saber que isso é tolo. De fora, percebemos o sentido para terceiros, como fica facilmente visível nos filmes, o sentido da existência de uma pessoa parece saltar às vistas. Só que para o Eu, o sentido está sempre dentro e não há como percebê-lo de fora, o sentido é o tipo de coisa que o Eu só pode viver imerso sem nunca tocar. Eu mesmo cavo a minha tragédia querendo viver com dupla cidadania. Ou lá ou cá, meu caro. E quem disse que me controlo? A todo instante quero capturar o sentido das minhas vivências, por ciúmes de mim, por curiosidade, por não querer perdê-las, por esmerar pela intensidade máxima da vivência, por ser assim doentio na vontade de transcender, e, claro, quando tento fazê-lo, o sentido que havia se subtrai magicamente da vivência, ou, em outras palavras, a vivência se des-vivencia. Aí aparece aquela consciência tão bem conhecida do vazio de sentido, da angústia e do tédio, cada qual com um sabor doloroso diferente. Eu só não me considero um caso perdido porque pelo menos o amor eu vivencio completamente de dentro, não coloco nem um dedinho pra fora, pelo menos nessa dimensão meu instinto se mantém sábio e imune à estultice da razão. É o que me enraiza na vida.

sexta-feira, abril 04, 2008

Carência ética

E se deus fosse o diabo? Nada mudaria. Assim como nada mudaria se deus existisse. Dostoievsky se questionava, "se deus não existe, então tudo é permitido"? Eis o problema do homem que se deixa corroer completamente pela incerteza e procura fora de si o fundamento para os seus valores. E tem algum fundamento? Valores não são todos iguais, alguns lhe são mais caros que outros. Podemos fundamentar alguns valores em outros mais preciosos. Mas lá no fundo, o que sustenta o seu valor mais querido? Nada. Ele carece tanto de fundamento quanto a sua certeza de que tem uma mão ao olhar para ela. São absolutos? De forma alguma. Rocha dura que nunca fura? Também não. Mas são vigas assim assentadas que só com muita mina para implodir. Ah, mas se é possível implodi-las, eliminá-las, estou no vazio, no escuro. Que me serve de guia? Eis o problema daquele homem novamente: sua carência de certeza é proporcional à incerteza que vivencia. Não é a ausência do absoluto que o faz carente da certeza, é a carência do certo que o faz sentir a ausência do absoluto. O não-carente está relativamente satisfeito com as vigas que tem, até que lhe apareça uma forte, mas bem forte razão para pensar em contrário. Para o carente, até a razão chinfrim lhe deixa insatisfeito com o que tem. O carente quer o absoluto e sente mais do que tudo a sua falta justamente por estar carente, amedrontado, inseguro quanto ao que fazer. Não tem em si a força necessária para andar, por isso a busca fora, no imutável. E, pelo mesmo motivo, ele é o tipo que, se não se engana achando que encontrou o absoluto, conclui que tudo é permitido e arruína a sua vida em um caos completo. Tudo e qualquer coisa lhe é e não é guia ao mesmo tempo. Claro, se não há um absoluto, ou não o encontro, ou, ainda pior, perco a esperança de encontrá-lo quando sinto a sua falta mais do que tudo, vivo por completo o desespero. Desesperado aceito qualquer coisa. O carente que não encontra o absoluto se fere mortalmente a cada instante. Pior ainda é o carente que se engana achando ter encontrado o absoluto. Para ele o sancionado e permitido é muito bem definido. Ele abraça esse absoluto com toda a intensidade da sua carência. A força com que agora o defende é proporcional à carência que sentia. Ele range os dentes a quem se lhe opõe. Ele mata se for preciso, se suspeitar que querem lhe tirar o aconchego do absoluto. No fundo, ele teme o retorno da carência. Esse carente acaba ferindo mais aos outros que a si mesmo. Sua ação é definida e precisa, violentamente precisa, ele jamais se realinha.

E o não-carente? Ah, ele vai seguindo a vida com o bom-senso e a prudência aristotélicas. Ele anda, para e escuta as vozes alheias. Pensa, realinha-se caso ache necessário e continua o ciclo. E para ele, tudo é permitido? Não, mas a sua linha do que é e o que não é permitido também não está traçada para todo o sempre. Ele se permite o retraçado, movido pela sua força interna, não pelo oba-oba do carente que concluiu que tudo é permitido. Para este, não há retraçado, só rabiscos.

Assim, a questão de se tudo é ou não permitido, caso não haja um absoluto, não se conclui por uma martelada demonstrativa, ela se fecha pela psicologia. É preciso se conhecer, perceber as suas necessidades e carências. E eu, o que eu sou, um carente ou um não-carente? Ora, eu sou um ser humano, imerso no tempo, impossível ser apenas uma coisa ou outra o tempo inteiro, a vida toda. É o que eu acho. Esmero pela sobriedade prudente. Sinto-a presente. Tenho por ideal: a não-carência e o relativismo nada oba-oba que se lhe segue.

quinta-feira, abril 03, 2008

Temor

Temo: ter uma emoção que vibra pelo corpo, chega aos olhos, onde brilha seu existir e perceber que ela aí morre sem ser captada por quem está na sua origem.

terça-feira, abril 01, 2008

1 de abril.

Como hoje é um dia para se contar mentiras, eu vou me contar uma que tenha cara de verdade. Ninguém saberá, nem eu mesmo, quando comecei a mentir, se já não o fiz, nem quando pararei. Essa dúvida dará à verdade o sabor da mentira e à mentira a cara de verdade. No fundo, meus amigos, são uma e mesma coisa, faces da mesma moeda. Eu minto descaradamente, sempre menti, essa confissão vos faço com a mais límpida sinceridade e cara lavada. Minto pelo prazer da verdade. Pouco me importa se o que digo é verdade ou mentira, nunca saberei mesmo, mas que tenha a cara e o efeito da verdade, ah, para isso não poupo esforços! Não é pela diversão, eu juro, não há mentira que eu pregue sem me sentir culpado, quando abro a boca e vejo a credulidade no meu interlocutor, sinto um nojo profundo de mim mesmo, ou ódio até, apesar do meu fingimento perfeito, repito a mim mesmo o tempo todo: "vil, vil!". E não paro, sigo em frente mirabolante. Quanto mais mentirosa a mentira, mais prazer me dá ao notar que lhe conferi um ar verossímil. Prazer de vaidoso, pela astúcia engendrada? Nada disso. Sou humilde até na mentira. No fundo a obsessão que me persegue é simplesmente essa: estética. Talvez muitos não saibam, mas eu sou libriano e eis aí a chave explicativa que lhes dou. Minto porque a verdade é bela, porque tenho horror à feiúra da inverdade, da mentira. Não, eu sei que não são a mesma coisa, eu sei que a mentira é uma coisa humana e a inverdade é uma coisa lá da semântica. Mas percebam que é preciso mentir vigorosamente para encobrir esse caráter humano da mentira, para que ela resplandeça como verdade; sem mentir bem, a mentira fica assim feia com o seu aspecto mentiroso. Por isso eu minto e muito, apenas em nome do meu amor pela verdade.