Então, já perto das 16:30, o professor especialista em Nietzsche encerrou a sua fala. Embora a maioria sempre saia embasbacada com a fala de eruditos que citam de cabeça não só frases do seu pensador preferido, mas também a página e o parágrafo onde se encontram e que arrotam sentenças em 4 línguas diferentes, o que, felizmente, não ocorreu desta vez, eu sempre saio com a impressão de que nada realmente profundo me foi dito, apesar de reconhecer a riqueza de informação e a persistência mnemônica do sujeito que se dá o trabalho de ficar decorando páginas e parágrafos. Mas riqueza de informação eu encontro na internet também. É por isso que, salvo raras exceções, o papel do erudito perdeu a sua razão de ser. Desde os anos 90 que a informação não precisa de mentes humanas para circular no espaço. Ela está virtualmente em todo o espaço. Há quem diga que os eruditos ainda são relevantes pelas associações que fazem entre as milhares de informações que eles acumularam e programa algum é capaz de fazê-las. Concordo que a computação ainda é muito burra para isso. Mas comparando os tempos, os 60 minutos dedicados a relatar as obras que Nietzsche leu ou deixou de ler, quando as leus, onde estudou, com quem estudou, a ordem de publicação dos seus livros, por fim, como um ou outro conceito foi usado de maneira diferente aqui e ali, e, em seguida, os ligeiros 5 minutos dedicados a formular o perspectivismo de Nietzsche e distinguí-lo do relativismo, eu concluo que o ganho de associação e clareza é quase nulo, e olha que julguei esse erudito, em especial, bastante inteligente. Não foi por falta desse atributo que a discussão ficou rala. Enfim, eu só queria dizer que, apesar de respeitar a figura do erudito, espero que sejam felizes com o que fazem, que se divirtam, eu pessoalmente geralmente não me enriqueço vendo o desempenho de um. E o motivo é muito claro: eu tenho mais sede de compreensão e verdade que de informação.
Só que a minha sede de verdade é circunscrita pelo ceticismo, relativismo e pluralismo. Quando lhe foi dada a palavra, o aluno acusou: "Eu acho que Nietzsche é cheio de contradições, são muitas contradições". Diferente do acadêmico inseguro, minha rusga com o aluno não é pelo seu "eu acho". Eu realmente não entendo qual é a indignação do acadêmico com o "eu acho". Em muitos contextos, "eu acho que", "eu penso que" e até um leve "eu sei que" são equivalentes. Se vamos considerar ou não o que a pessoa diz depois do "que" depende da responsta que ela nos der para o porquê. Simples, não? Minha rusga com o aluno se resume na conotação moral do seu ato de fala. Aponta-se a contradição em um autor como se estivesse exibindo uma chaga, algo ignóbil e vergonhoso. Incompreensível que ninguém tenha percebido a incongruência dessa reação ou, pior, o seu caráter exemplar, justamente depois de se destacar a luta de Nietzsche contra a verdade apolínea, a verdade socrática, metafísica, de uma cor e dimensão só. Ninguém mais que o princípio da não-contradição esteve em defesa ao longo dos séculos dessa verdade transcendente. Quer chegar até a verdade, ver a sua face, dar-lhe uma espiada? Eis a chave: não se contradiga. Mas não é só uma questão de imputar erro a quem se contradiz ou vetar-lhe a vista da verdade. Vai além, moralizou-se a coisa. Quem se contradiz, é mentiroso, é inconstante, não é confiável etc. E lá estava o dedo do aluno apontando indignado para a sujeira contraditória de Nietzsche. Fechemos o livro, não há nada ali que preste. O mesmo aluno que bebeu o mito da caverna, que se catequizou pela verdade apolínea, perde a visão das contradições da vida, escapa-lhe o devir vital. Trocou o ser pelo não-ser.