segunda-feira, dezembro 24, 2007

Irritação

O que mais lhe dói não é nem tanto a rejeição, ele a entende e a assimila com uma paz quase estóica, o que mais lhe rasga por dentro é perceber a irritação que a presença do seu afeto ou carinho gera nela. Isso desce engasgando, cortando. O seu curso de raciocínio para a rejeição é o seguinte: "da mesma forma que não me cabe pedir razões para o sentimento que aflora, e muitos vezes elas lhe seriam até contrárias, também não há qualquer motivo para que o sentimento correspondente não tenha surgido nela. Em mim surge e pronto, nela não surge e pronto. Eis o fundo do poço, não há mais onde escavar, razões a encontrar". Esse pensamento amansa a sua alma e mitiga a dor da rejeição. No entanto, ele não consegue produzir o mesmo pensamento para a irritação, repulsa e, quem sabe, nojo gerados pela percepção do seu afeto. Ele se pergunta, "por que o afeto de uma pessoa por mim e pela qual eu não tenho nenhum sentimento forte me irritaria? Não acho uma resposta, não entendo, a empatia não rola. Faço uma pergunta indevida?" Talvez. A irritação também não poderia ser uma paixão bruta, desmotivada? Por que não? Ela não acontecer nele é uma contingência, mas em outros corpos, com outras fisiologias, ela pode ser nata, instintiva, uma opção natural do organismo para repelir o que não lhe agrada, mesmo que não lhe seja nocivo. Sim, pode ser que seja assim. Mas pensando bem, há uma outra explicação melhor: a irritação não emana da mera percepção do afeto não correspondido, mas sim da imaginação do que ele pode fomentar, pois sabemos como é comum alguém se arrebatar, exagerar, dramatizar pelos seus sentimentos a ponto de manifestar-se àquele que não o corresponde de maneira insistentemente irritante. Assim, mesmo que algo acalorado e vibrante não tenha emergido na pele do apaixonado, a imaginação antecipa para o presente a irritação futura. Sim, isso parece bem mais razoável. Ele acaba de ter essa mesma compreensão e ela adocica um pouco a sua experiência, mesmo que não elimine todo o azedume.

Resta ainda a maior de todas as suas aflições presentes. Uma vez percebida a irritação que produz, independente da sua causa, se é que tem uma, o que fazer, que curso de ação tomar? Pois sim, sua consciência se aflige, "como posso conviver com o fato de que irrito, desagrado e assim faço mal àquela que justamente só quero bem?" Ele vê dois caminhos, ou melhor, duas possibilidades, pois falar em 'caminhos' parece pressupor que está em condições de escolher um deles, e não é certo que seja este o caso. Por um lado, ele poderia seguir como um espírito forte, centrado em si mesmo, lançando fora qualquer culpa, libertaria sua pulsão de vida por completo, seu afeto floresceria incandescente, mesmo que viesse a ter por conseqüência provocar uma irritação ainda maior nela, mas ele estaria vivo e estaria sendo fiel a si mesmo. Por outro lado, ele poderia reunir todas as suas forças destrutivas, evocar seu Tanatus, e dirigi-lo impiedosamente se não tanto para o seu afeto, que, eu creio, ser indestrutível por volição, ao menos para a sua manifestação, ceifando assim parte de si. Ele se espancaria dia após dia até que o afeto se tornasse comprimido e fraco a ponto de se perder e se afogar no mar confuso das paixões. Uma extinção por repressão.

Poupa a ela ou a si, a sua consciência ou o seu sentimento? Essa pergunta faz sentido, há escolha possível aqui? Ele se sente cindido, esquizofrênico com este dilema em mãos.

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