sexta-feira, abril 04, 2008

Carência ética

E se deus fosse o diabo? Nada mudaria. Assim como nada mudaria se deus existisse. Dostoievsky se questionava, "se deus não existe, então tudo é permitido"? Eis o problema do homem que se deixa corroer completamente pela incerteza e procura fora de si o fundamento para os seus valores. E tem algum fundamento? Valores não são todos iguais, alguns lhe são mais caros que outros. Podemos fundamentar alguns valores em outros mais preciosos. Mas lá no fundo, o que sustenta o seu valor mais querido? Nada. Ele carece tanto de fundamento quanto a sua certeza de que tem uma mão ao olhar para ela. São absolutos? De forma alguma. Rocha dura que nunca fura? Também não. Mas são vigas assim assentadas que só com muita mina para implodir. Ah, mas se é possível implodi-las, eliminá-las, estou no vazio, no escuro. Que me serve de guia? Eis o problema daquele homem novamente: sua carência de certeza é proporcional à incerteza que vivencia. Não é a ausência do absoluto que o faz carente da certeza, é a carência do certo que o faz sentir a ausência do absoluto. O não-carente está relativamente satisfeito com as vigas que tem, até que lhe apareça uma forte, mas bem forte razão para pensar em contrário. Para o carente, até a razão chinfrim lhe deixa insatisfeito com o que tem. O carente quer o absoluto e sente mais do que tudo a sua falta justamente por estar carente, amedrontado, inseguro quanto ao que fazer. Não tem em si a força necessária para andar, por isso a busca fora, no imutável. E, pelo mesmo motivo, ele é o tipo que, se não se engana achando que encontrou o absoluto, conclui que tudo é permitido e arruína a sua vida em um caos completo. Tudo e qualquer coisa lhe é e não é guia ao mesmo tempo. Claro, se não há um absoluto, ou não o encontro, ou, ainda pior, perco a esperança de encontrá-lo quando sinto a sua falta mais do que tudo, vivo por completo o desespero. Desesperado aceito qualquer coisa. O carente que não encontra o absoluto se fere mortalmente a cada instante. Pior ainda é o carente que se engana achando ter encontrado o absoluto. Para ele o sancionado e permitido é muito bem definido. Ele abraça esse absoluto com toda a intensidade da sua carência. A força com que agora o defende é proporcional à carência que sentia. Ele range os dentes a quem se lhe opõe. Ele mata se for preciso, se suspeitar que querem lhe tirar o aconchego do absoluto. No fundo, ele teme o retorno da carência. Esse carente acaba ferindo mais aos outros que a si mesmo. Sua ação é definida e precisa, violentamente precisa, ele jamais se realinha.

E o não-carente? Ah, ele vai seguindo a vida com o bom-senso e a prudência aristotélicas. Ele anda, para e escuta as vozes alheias. Pensa, realinha-se caso ache necessário e continua o ciclo. E para ele, tudo é permitido? Não, mas a sua linha do que é e o que não é permitido também não está traçada para todo o sempre. Ele se permite o retraçado, movido pela sua força interna, não pelo oba-oba do carente que concluiu que tudo é permitido. Para este, não há retraçado, só rabiscos.

Assim, a questão de se tudo é ou não permitido, caso não haja um absoluto, não se conclui por uma martelada demonstrativa, ela se fecha pela psicologia. É preciso se conhecer, perceber as suas necessidades e carências. E eu, o que eu sou, um carente ou um não-carente? Ora, eu sou um ser humano, imerso no tempo, impossível ser apenas uma coisa ou outra o tempo inteiro, a vida toda. É o que eu acho. Esmero pela sobriedade prudente. Sinto-a presente. Tenho por ideal: a não-carência e o relativismo nada oba-oba que se lhe segue.

3 comentários:

Marcely Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcely Costa disse...

sempre achei o mesmo, mas nunca soube esboçar assim, de forma mais objetiva.
mas a questão era outra. se deus fosse demônio, sua existência seria menos absurda - não menos absurda, tá, mas mais coerente com o mundo em que vivemos. e se deus é mesmo um demônio, a quem vamos recorrer de sua ira e maldade? continuamos na mesma. eu então desacreditaria e seria indiferente a ele só porque indiferença é bem pior que ódio (se bem que acreditar que ele não existe é criar a indiferença dele por nós mesmos também...).

Patr�cia disse...

Delícia.
Tive uma aula de ética bacana ontem à noite e seu texto me lembrou dela.
=]