sábado, fevereiro 23, 2008

Filósofo

Eu estava sentado sozinho tentando pensar em algo que pudesse despejar no papel quando vejo na porta de entrada um rosto meio conhecido. Ele olhou para mim com a mesma cara de indagação, tentando buscar na memória alguma imagem para o reconhecimento. Não sei quem fez primeiro a cara de agora eu sei quem você é, mas passados dez segundos, ele já estava sentado na minha mesa, seu copo estava cheio e bebíamos ao reencontro. É o único aluno de filosofia que conheço nessa cidade, mas de um contato mínguo, é verdade, majoritariamente cibernético. Ele gosta de Hegel e eu sinceramente nunca tive paciência para esse hermético de escrita embromada e obscura. Mas eu o deixei falar apaixonadamente sobre o seu filósofo predileto e, ao mesmo tempo, fui lembrando de mim mesmo, anos atrás, quando ainda estava na graduação de filosofia e demonstrava uma paixão parecida, embora por outro filósofo: Wittgenstein.

Eu já tinha quase me esquecido dessa época áurea e encantada dos primeiros anos de encontro com a filosofia em uma graduação regular. Tudo é muito intenso e apaixonado, a ingenuidade e a esperança são elevadas, o vírus cético ainda não se infiltrou na carne, a mente vive imersa em sonhos longínquos, densos e coloridos, cada rosa que se vê na rua parece lhe dizer algo profundo, cada mente humana, um universo sem fronteiras, até que, ao final do curso, você começa a entrar em um contato mais íntimo com a sua dimensão institucional e burocrática. Em um dia terrível, que te marcará para sempre, você pergunta ao seu provável futuro orientador se seria possível escrever a dissertação de mestrado na forma de um diálogo, e ele, com olhos de reprovação e quase indignação - afinal, como, a essa altura, você aparece com um absurdo desses na boca? -, lhe dirá que absolutamente não, que um diálogo não é científico, não tem a estrutura de um texto acadêmico, apesar de ter sido cultivado
amplamente na antiguidade e ter sido resgatado na modernidade por uns e outros. Claro, filosofia agora é ciência e o seu gênero literário, o paper. Seja coerente com o seu tempo, meu filho.

Você avança nos degraus da academia e se vê cada vez mais cercado de pressões que não lhe parecem ter absolutamente nada a ver com aquela paisagem livresca e sublime que lhe infundia os sentidos nos primeiros anos. A liberdade que você supunha ter para pensar é cada vez mais restringida até o dia que você chega mesmo a sentir vergonha por pensar. Filósofo não pensa, ou melhor, como ousa, como ousa pensar que é um filósofo? De onde veio toda essa arrogância? Quando muito, você é um estudante de filosofia. E do pior tipo: um estudante que não busca nada além de uma compreensão fingida. Vamos, meu filho, venha comigo, vou lhe ensinar a repetir bem, temos muitos mantras aqui, há de gostar de algum.

Um dia você é apresentado ao paper, esse modelo primoroso e consagrado da literatura científica. Essencial para o adestramento do seu pensar, para lhe dar, assim, uma certa linearidade e objetividade e, eu acrescentaria também, monotonia. Vamos lá, é fácil, fácil até demais. Introdução, revisão bibliográfica, paráfase, paráfase e mais
paráfases, desenvolvimento, isto é, comentário, comentário e mais alguns comentários, por fim, a sua tênue e ligeira conclusão onde você finge ter pensado alguma coisa. Os mais covardes até lhe segregam nos ouvidos conselhos valiosíssimos: nunca diga nada a não ser que esteja apoiado em um gigante, e se lhe apontarem os erros, balance os ombros, como quem diz: ora, é o gigante ali quem errou, ele é o culpado, estou isento. A filosofia que antes era sentida como um oceano de possibilidades, paraíso livre para a imaginação, lhe aparece agora como um deserto árido sob o cárcere do paper, onde só se pode andar de quatro. Nem preciso dizer o porquê. E o que é pior: tornou-se uma atividade tão fácil quanto entediante. Filosofia mecanizada, afiliada
à indústria científica, fábrica de papers.

A vivência entre os pares que antes era harmoniosa, fraterna e repleta de partilha torna-se cada vez mais violenta a medida que vamos sendo envenenados pela vaidade e o orgulho. Entramos no curso com ingênua franqueza, argumentos focados no assunto, e saímos de lá peritos nos golpes ad hominem. Se é para bater, bata forte. Na pessoa, claro, idéias aqui pouco nos importa. Fomos expulsos do paraíso idílico, estimulados a falar línguas diferentes, a nos odiar, a encarar o diferente como oponente, a maltratá-lo, a olhá-lo de cima para baixo, arrogantemente. Cada vez mais vaidosos e cada vez mais solitários. A experiência filosófica se confunde, neste estágio, com a experiência de extrema solidão. Alguns levam tão a sério o mantra do repeteco, aprendem a copiar tão bem que cresce neles a convicção de que conhecem até melhor a obra do autor que o próprio autor, se bobear alguns até pensam ser a reencarnação espiritual do autor; babam raivosos quando você menciona os filósofos que eles tomaram por prediletos. É uma coisa meio louca e doentia mesmo. Cada qual achando que tem monopólio sobre a boca do filósofo adotado, como se já não bastasse o ridículo de adotar um.

Por fim, você tem o azar de cair nas mãos de um orientador que além de não ler o que você escreve, te faz passar de duas a quatro horas numa sala para ouvi-lo palestrar sobre os assuntos que interessam a ele, não sobre os que te interessam e que estão ali escritos no texto que ele deveria criticar. Mas ele critica, mesmo sem ler, ele critica. Ele aponta erros. Veja, esse argumento está fraco, não responde a essa possibilidade. Não? Respondo sim, veja aqui na página N. Ah, é verdade, devo ter passado rápido por ela. Se isso acontecesse vez ou outra, mas não, é a própria constante.

Então fiquei ali com ares de nostálgica melancolia contemplando todo aquele frescor filosófico juvenil ainda incólume das perversidades que a instituição acadêmica há de lhe inocular mais cedo ou mais tarde. Já notei, aliás, os primeiros indícios de vaidade crescente.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Relações

Outra regra de ouro para minha existência salubre e pacífica: afastar-me de pessoas interesseiras e rancorosas. O interesseiro é alguém que te usa, que tê vê como instrumento, potencial fonte de ilusões e frustrações se você não mantém com ele sempre muito bem consciente o mesmo tipo de relação. Como só gosto de instrumentos inanimados, prefiro deixar os interesseiros de lado. O rancoroso é alguém que, diante de alguma negativa sua, de qualquer tipo que seja, lhe retorna algum tipo de ódio. Ele se sente ferido pela sua negativa e quer te ferir também. Como não sou masoquista, não vou embranquecer os meus fios de cabelo com pessoas cuja obsessão é me maltratar. Engraçado que o rancoroso só depõe contra si mesmo. A pessoa que antes te fazia vários elogios sobre um determinado aspecto, agora o execra sob esse mesmo aspecto. Ou seja, os elogios de antes têm o mesmo valor que as ofensas de agora: nenhum. E a pessoa rancorosa assim demonstra ser incapaz de emitir um juízo minimamente desnudado da sua emoção, seja ela favorável ou não. Longe de mim querer defender imparcialidade absoluta, mas, enfim, um mínimo de objetividade é possível e desejável. Concluindo: xô xô interesseiros e rancorosos!

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Tchau Aflredo

Alfredo morreu. E você diz isso assim, a seco e sem a menor demonstração de dor ou pesar? Sim, e só me abalei até aqui para lhes contar, porque me lembro de pelo menos uma pessoa que tinha um certo apreço por ele e me senti na obrigação de informá-la. Nem adianta arregalar os olhos e me interpelar pelos pormenores. Sei sobre a causa da morte tanto quanto quem me trouxe a notícia: nada. E confesso não ter sentido a menor vontade de correr atrás do causo. Foi-se, é tudo o que me basta saber.

Hoje estou assim mesmo, recheado de plena indiferença. O que posso fazer se a minha sensação está aparedada por todos os lados? Deixem-na em paz, não me incomoda o seu jeito insonso. Não, não é que eu seja frio, vou até lhes confessar uma coisinha: há dias em que perco uma noite inteira me debulhando em lágrimas em razão de uma ofensa imaginada, irreal, diria até que impossível, mas só de pô-la a trabalhar na minha imaginação, pintando-a com traços bem fortes e marcantes, e eu me derreto todo. E não há enganação alguma, eu sei que tudo não passa de uma ilusão. Mesmo assim, as lágrimas escorrem. No entanto, vocês não sabem do pior. Escutem. Quando o meu primo suicida morreu, amigão do peito, parceiro diário, confidente, eu não soltei uma lágrima sequer, nenhuma mesmo, diria que nem meia. Vi seu corpo estendido no chão, ainda com a corda no pescoço, e passei a noite inteira com os olhos mais secos que os do próprio defunto. Nem me venham com a desculpa de que meus canais emotivos estavam tão obstruídos com o excesso de dor que não conseguiram se expressar. Nada disso, eles expressaram muito bem o que eu estava sentindo: nada. Lembro-me perfeitamente desse dia. Na verdade, eu só tive uma preocupação. Vendo todo aquele vai-vem de pessoas, cada uma chorando mais alto que a outra, temi que olhassem para mim e me acusassem de insensível e hipócrita, de ter fingindo até então uma amizade que não sentia na pele. Se tive alguma sensação, foi a de medo. Esgueirei-me na parede, no canto mais distante da confusão e ali fiquei parado como uma cobra a noite inteira, só pedindo cá comigo para que não me notassem. Sujo e egoísta, devem estar pensando, até eu pensei isso depois uma ou duas vezes, mas o que podia eu fazer se estava nesse mesmo estado em que me encontro hoje, vivenciando dentro de mim a mais absoluta indiferença?

Depois eu pensei que por uma questão de decoro, diria até que de estética também, a morte deveria se preocupar mais com a hora em que vem buscar as suas ovelhas. Ora essa, quem passou o vexame fui eu! O morto já estava morto, a morte só aparece para o morto e eu lá naquela situação. Aposto que não lhe custaria nada adivinhar-me assim insensível e esperar um pouco mais, por um momento mais propício, quando então a minha receptividade estivesse mais disposta. É, não lhe custaria.

Fora do ar


Não assistir televisão, e eu realmente muito, muito raramente assisto, em um país onde as pessoas assistem em média entre 4 a 6 horas por dia, diminui consideravelmente a sua taxa de sucesso em atividades de socialização. Falou agora o marqueteiro das social networks. As pessoas falam, falam, falam e eu me sinto assim, completamente fora do ar, com o mute acionado.

domingo, fevereiro 17, 2008

Vozes


Acho que preciso de uma mudança literária, ao menos temporariamente. Sinto-me como uma tábula rasa tomando a forma dos personagens que vou encontrando na leitura. E não dá para fazer isso de uma maneira salutar, pelo menos não prolongadamente, com os personagens do Dostoievski. Acho que se lesse agora Crime e Castigo é bem capaz que ficasse tentado a matar alguém. O pior de tudo é que deve ter quem leia essas palavras e as tome ao pé da letra. Isso me põe a pensar. Eu não tenho pretensões literárias, mas será que isso me impede de escrever vozes que nem sempre são minhas? Quando for o caso, devo deixar isso explícito? Hoje fui até a minha estante, peguei o "How to do things with words" do Austin, dei uma folheada, abri, quase sem querer, na página em que ele discorria sobre as várias coisas que se faz implicitamente com as palavras ao usá-las e fiquei pensando nas implicações morais das palavrinhas que solto aqui e tudo ficou meio pesado, turvo. No meio do que eu digo há coisas em que acredito, outras não, e há variações de intensidade também, e há ainda mudanças de opinião, quem é que não muda? Senti uma certa opressão moral ao pensar que não poderia infiltrar outras vozes sem destacá-las explicitamente da minha própria. Por que não posso colocar aqui, sem causar espanto, um bêbado lançando arroubos que ora são meus e ora não são? Olho para todas essas palavras e começo a ver nelas armas letais, mortais. Talvez alguém já esteja se perguntando com quem me preocupo ou a quem desejo me justificar, mas não há, nem houve alguém que tenha se levantado contra o meu bêbado. Mas essas idéias e questões começaram a fervilhar na minha cabeça quando pensei que alguém pudesse vir aqui para me encontrar, mesmo alguém que me desconhecesse por completo, mesmo um anônimo. Vai encontrar muito de mim sim, acho que tudo aqui, de certa forma, começa comigo, mas nem tudo termina comigo. Para falar a verdade, desconfio que sempre que tento me descrever, acabo me desfigurando. Pensando bem, deve haver um quê de vaidade nessa preocupação, afinal, por que diabos iria me preocupar se me vêm desfocado ou não? Azar de quem me vê. Aliás, não pedi para que ficassem me olhando, nem gosto mesmo que me encarem assim muito de perto. Eu tenho mais é de continuar me divertindo aqui, verdadeira e mentirosamente, se é o cético, o relativista, o romântico ou o imoralista quem toma a vez, pouco importa, são todos amigos meus, amigos íntimos. Ainda que eu não seja nenhum deles por completo, todos me habitam.

odor amoroso

É isso aí, querendo ou não, o seu nariz trabalha para você na seleção do seu parceiro. Resumidamente, o estudo procura mostrar que mulheres (mas imagino que o mesmo vale para homens) tendem a preferir o cheiro de homens cujos genes refletem um sistema imunológico bem diverso do seu, o que, em caso de cruzamento, aumenta as chances de uma prole mais resistente a doenças.

É claro que seria completamente sem sentido sair cheirando fundo seus pretendentes para escolher aquele lhe propiciaria filhos mais resistentes. Nos assuntos do amor, ser humano algum tem de se preocupar conscientemente com a preservação da espécie. Seria idiotice fazê-lo, pois seu organismo já se preocupa por você, foi moldado para isso, e secretamente, sem que você o perceba, influi sobre as suas decisões. Mas você enquanto sujeito, enquanto pessoa com experiências, não tem de perder tempo com isso, a você importa apenas a experiência do prazer/desprazer. O que há por trás dela, oxalá, deixe isso para os biólogos e psicólogos. A você, pessoa, cabe amar e sentir.

Mas há uma coisinha interessante nessa história toda para o sujeito. O cheiro, ora essa, o cheiro que o arrebata, que o envolve, que pode ser muito agradável ou exageradamente desagradável, o cheiro que o sujeito inspira fundo na pele do outro não-perfumada para senti-lo dentro de si, em amálgama, em uníssono. Como negar essa intimidade entre cheiro e amor? Meu vão materialismo o impede, estou acoplado a este corpo e me emociono através dele. Comigo não tem essa de amar abstratamente, sem sensações. Há quem diga superar todas essas vicissitudes humano-biológicas e amar num plano completamente ideal, platônico. A isso respondo com relativismo: que bom PARA você. Contudo, não ME serve. Amor tem cheiro e preferencialmente um cheiro bem agradável. Minha dica, ao conhecer alguém que lhe interesse, é procurar abraçá-la bem próximo para sentir o seu cheiro, contando com a sorte de que ela não esteja usando um perfume muito forte que pudesse atrapalhar na percepção da sua essência odora. Sugiro isso não para que mires na prole resistente, mas simplesmente para usufruir de uma experiência amorosa mais envolvente, agradável e olfativamente sublime.

É claro que você não vai amar alguém apenas porque ela cheira bem, tantas outras coisas importam tão ou mais, ou deixar de amá-la porque ela não cheira tão bem, mas um tiquinho de utilitarismo vai bem também: é melhor amar quem te faz bem. Já ouço você retrucando com leve ironia: como se a gente escolhesse quem ama. Correto, não escolhe mesmo não, mas escolhe (ou talvez nem isso?) a quem vai prestar mais ou menos atenção e entre cheirosos e fedorentos, atente-se mais àqueles que, de partida, lhe dá mais prazer. E, na verdade, quem é que já não faz assim?

No fundo era isso, só queria salientar a relação profunda entre a experiência do amor e a experiência do cheiro, a despeito do que haja, biologicamente, por trás. Isso realmente não importa. Eu, de minha parte, não consigo sentir um amor sem cheiro. Dos amores passados, aqueles que lembro com maior vivacidade foram justamente os de cheiro mais penetrante e agradável.

Há quem diga que a percepção agradável do cheiro é influenciada pelo intenso sentimento. Eu não duvido, mas eu acredito no contrário também: a agradabilidade do cheiro favorece a intensificação do sentimento.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Fragmentos

fragmentos de um boêmio.

Hoje estou com criatividade etílica, com desejo de destilar verdades, torcer o pano para que até a sua última gota verídica se extraia. O bêbado não tem medo de nada. Mas o que é isso? Quem aqui está bêbado? Até parece que dois ou três copinhos de cerveja me alterariam em alguma coisa. Fossem outros os tempos, só a vodka me derrubaria, hoje talvez esses copinhos me entortem. A verdade, a verdade, vamos lá, ela quer sair, quero vomitá-la, afastem-se os mais enjoados, pois o seu cheiro é pútrido. Ontem comi carne de jacaré, então esperem o pior.

O bom dessa cidade é que até os bêbados míopes não têm dificuldade em perceber a mulher comprometida. Basta focar o anular brilhoso e grosseiro, mesmo a uma distância considerável, ele salta às vistas. Mas ela ainda assim correspondeu aos meus olhares impertinentes!

Três casais, seis estudantes, seis imbecis. O estudante sempre me pareceu um ser assim muito idiota, muito senhor de si, cheio de confiança cega, dessas que se vê mesmo nos incapazes. Vale dizer que sou um estudante também.

Fui ao banheiro e em três minutos vomitei toda a filosofia que aprendi em 10 anos. Que alívio!

Arregalei os olhos e concertei os óculos na cara. Morenaça peituda, rabuda e carnuda, jogando sinuca, oh, como isso é fálico. Enquanto o seu parceiro faz o vai-vem com o taco, pensa em penetrá-la; vejam que patético o seu estrabismo forçado, um olho na bola e outro nos seios, chega a babar. Eu não faria/seria diferente.

Agora já não são mais apenas uns copinhos, mas vários, já o perceberam, é claro.

O meu pendor para mentir é tão intenso quanto a minha disposição para a verdade. É isso, o bêbado deixa fluir a sua propensão natural para a contradição.

Estou aqui como se assistisse a um filme. Os indies chegaram, Scorpions de fundo, eu tinha treze anos quando conheci essa banda, mas são uns merdinhas esses indies. Perdem tempo demais pensando no visual e nunca pensam nada, é o que eu acho. O indie gay não pára de me olhar. É nessas horas que sinto toda a ironia divina: por que não causo nas mulheres o mesmo efeito magnético que causo nessas bichas?

O bêbado sempre fala como se fosse genial a mais banal das idéias. Nisso ele não se distingue do filósofo, só que este faz ainda pior, fala com sobriedade e ar de gravidade. Oh céus, tive loucos como tutores! E agora, falo como bêbado ou como filósofo? Que dilema! Ah não, já a vomitei, é verdade, tinha me esquecido.

Cara legal aqui é o Jeferson, acho que é esse o nome dele, se não ouvi errado quando o carinha da sinuca o cumprimentou. Está sempre na dele, em paz, às vezes parece imerso em densos pensamentos, depois dá uma olhadinha para ver se alguém está querendo alguma coisa. A seleção musical é dele, perguntei depois. Dá para vir aqui só para ficar numa boa escutando música. Quinta-feira é dia de poesia, quem quiser pode pegar o microfone e despejar a sua prole verbal. O Jeferson foi lá duas vezes. Não lembro mais o que ele recitou, mas tinha algo de homem nu, homem só, sei que gostei.

Sempre achei a existência inteligente uma coisa tosca. O inteligente vê longe, tem olhos de águia, mas suas pernas são curtas, de anão. Anda, anda, anda, corre esbaforido e nunca chega lá. De tempos em tempos é abatido pela consciência dessa sua infeliz situação. Aí ele pára, senta, descansa um pouco e depois entediado volta a correr, que nem um pateta. E convenhamos, é patético ver um anão correr para um destino que suas diminutas pernas não podem alcançar. O gênio é um gigante cujas passadas atravessam oceanos, simples assim. Já o homem da massa, para não usar um desses adjetivos vulgares, nasceu cego e feliz está com a sua cegueira inconsciente. O gênio e o cego, por motivos bem diversos, compartilham, no entanto, a mesma confiança. Já o inteligente é essa coisa dúbia e titubeante que vemos aí. Não sabe se corre, se fica parado, enfim, é tosco.

Que pouca vergonha, vejam só, o carinha abraçando a namorada todo apaixonado e ela tá olhando para onde? Adivinhem? Não, não é para mim. Para a televisão! Piorou, olha só, ela tá fazendo careta. Xi! Feliz ele que vive transbordado de ignorância.

Chega, chega, mais uns copinhos e decaio ainda mais.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Limites

Tudo tem limite. E mesmo amizades fortíssimas podem ser rompidas se certos limites forem ultrapassados. Cada pessoa tem lá os seus limites, alguns aleatórios, emocionalmente reativos, outros elaborados, racionalmente justificados, mas, enfim, cada um sabe muito bem a linha para além da qual o retorno fica bloqueado ou pelo menos dificultado, engasgado. O meu limite mais severo, o qual levo a ferro e fogo, é o respeito à minha individualidade e à minha representatividade. Falo em termos mais claros: a não ser que eu tenha lhe dito explicitamente que pode falar em meu nome em determinada questão, digo, em qualquer questão, não o faça, jamais, pois o perdão aqui talvez não seja dado, conforme a intensidade com que me sentir invadido ou desrespeitado. Entendeu? Acho que não, essa idéia geral pode ser instanciada de múltiplas maneira e talvez alguns exemplos sejam elucidativos. Eu convido, você, meu amigo, a vir em minha casa e você, talvez cheio de boas intenções e motivado pela intimidade, convida um outro amigo para vir também, que talvez até seja alguém que eu goste, amigo meu também. Ainda assim, não tem perdão, você deveria ter me consultado antes, ligado, mesmo que pouco antes, para saber se estava tudo bem; não lhe dei o poder de decidir quem eu quero ou não em minha casa. Evidentemente, há ocasiões de exceção, conto com o bom senso dos amigos para percebê-las e não generalizá-las. Mais um exemplo. Eu te empresto um livro. Você leva o livro, o lê, ele fica lá na sua casa, já que não nos encontramos, até que, num belo dia, um amigo teu aparece lá, vê o livro, se interessa e você o empresta numa boa. Poxa, assim tá pedindo a minha desamizade. O maior problema aqui é que as pessoas tendem a pensar que a confiança é uma relação transitiva, que se eu confio em A e A confia em B, então eu confio em B, mas isso é um absurdo! A confiança depende exclusivamente do conhecimento direto que você tem da pessoa, é algo delicado, não dá para transferir assim. Se te emprestei um livro, confiei no cuidado que você iria ter com ele, mas não, jamais no suposto cuidado de terceiros, mesmo que você confie nesses terceiros. E outra, se empresto um livro, empresto com uma finalidade bem específica, para que você o leia. Não lhe dei poder total sobre o livro. Da mesma forma, quando você aluga uma casa, não pode fazer com ela o que lhe aprouver, não pode, por exemplo, vendê-la. Se quer emprestar um livro que te emprestei, por favor, pergunte-me antes, a não ser que não julgue a nossa amizade importante. Pois eu garanto, ela estará sob um fio.

Não sei bem de onde veio esse meu limite, nem importa tanto saber, talvez, em parte, ele tomou forma com as minhas leituras anarco-liberais, lá na juventude, ainda meio adolescente, quando tomei consciência de que ninguém jamais estaria em melhores condições do que eu para decidir o que é melhor para mim, estando eu em pleno gozo das minhas capacidades intelectuais, também quando tomei consciência de que as decisões pessoais são atos particularíssimos, e intransferíveis; ou talvez, em parte, esse limite tenha muito a ver, pelo menos emocionalmente, com a minha natureza introspectiva, que faz de mim uma pessoa mais ciosa de si e reativa a intervenções alheias e não autorizadas ou mesmo apenas inesperadas. Como disse, isso pouco importa, apenas se lembre, você, meu amigo ou amiga: não use o meu nome em vão, não interceda por mim, nem com a melhor das intenções; se deseja muito fazê-lo, comunique-me antes.

Se eu lhe dei intimidade, isso não significa que agora você sabe o que eu quero. Só eu sei, às vezes, nem isso!

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Um filme, por favor!

- Talvez você queira ficar um tempo sem me ver.
- Por que?
- Você sabe. O tempo e a distância podem ajudar...
- Pensa mesmo que faria alguma diferença? Não é a minha memória que gosta de você, sou eu, entende? Posso me esquecer de você e ainda continuar te amando. Lembra daquele filme, Brilho eterno de uma mente sem lembranças? Assistimos juntos. Então...
- Se eu pudesse...
- Mas você não pode. Chega a ser irônico, o amor é algo tão nosso e, ao mesmo tempo, nos escapa por completo. Ele simplesmente cresceu de repente. Um dia, quando te encontrei, o percebi dentro de mim.
- Por que não sai com a K, ela parece gostar de você. Talvez se olhasse mais para ela, o seu sentimento por mim abrandaria.
- Eu só vou conseguir olhar realmente para ela depois que o meu sentimento por ti abrandar.
- Você é teimoso e birrento e isso me parece excesso de masoquismo da sua parte.
- Masoquismo seria eu ser infiel a mim mesmo. Sabe qual é o problema? Você imagina que sofro mais do que me alegro ao seu lado e acaba se preocupando demais. Eu sei até aonde eu posso ir. Sabe, essa conversa não faz muito sentido, ela será sempre circular. Você quer me convencer a não gostar de você, só que se esquece que razões são completamente impotentes a esse respeito. Todas essas suas tentativas, eu até entendo, mas elas me parecem completamente sem sentido diante do que sinto por você. Pare de se preocupar!
...
- Vamos ao cinema?
- Vamos!

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Richard Wagner


Eu recomendo Richard Wagner para quatro moléstias hodiernas da alma: tédio, angústia, depressão e falta de amor próprio. Simplesmente não há como não se exaltar, não elevar o ânimo com as trombetas wagnerianas. Tannhäuser para os deprimidos e sem amor próprio. Acompanhem o nosso herói medieval, sintam sua fúria, sua persistência, sua resistência, sua invejável vontade de poder, de viver, de sobreviver. Deixem-se contaminar por ele, por essa força sobre-humana. Sigam-no. Aos entediados e angustiados, recomendo Das Rheingold; sintam a exuberância do eterno fluxo do Reno, as águas não param, o movimento não cessa, o devir é estrondoso, acordem, acordem, naveguem, mirem a frente, sonhem, vejam, ninfas, gigantes, há de tudo nesse Reno, como podem ficar aí parados? Mexam-se, sigam o ouro do Reno, permitam que sua luz afastem vossas trevas.

Não a toa Nietzsche era fã de Wagner, embora tenha rompido com ele em sua fase ultra-romântica; até a mais insignificante das moscas sente-se imponente ao escutá-lo, permitindo-se, inclusive, o luxo da arrogância. Não lhes exorto a tanto, mas é inegável o tremor que começa no tímpano e penetra na alma o mais fundo possível, vibrando-a por inteiro.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Angústia

A angústia, como a entendo e sinto, é um processo de ajuste interno entre desejos, esperanças e sonhos, de um lado, e o seu conhecimento a respeito da realidade do outro. O processo é lento e tenso, nem sempre doloroso, triste ou lúgubre, mas certamente causa um incômodo, uma inquietação dúbia por não saber o que fazer, e a sensação de vazio é simplesmente a perda de sentido dos seus sonhos, os quais, até então, o norteavam. O conhecimento da realidade esmaga e tritura esse sentido. Quanto mais emocionalmente densos eram esses sonhos, tanto mais tensa e demorada será a vivência da angústia. Você sente que perde algo e sim, claro que perde, perde esses sonhos que lhe são tirados do rol das suas possibilidades de vivências.

Veja, você tinha sonhos e desejos bem arraigados no seu dia-a-dia, acordava pensando neles e tomava cursos de ações imaginando que elas lhe ajudariam a levá-lo até eles. Eram sonhos também cuja realização você imaginava lhe causando um profundo bem-estar, uma presença esmagadora de sentido. Enfim, sonhos tão presentes, tão obsecados em seus pensamentos, que tinha com eles uma verdadeira relação emocional. Eram, por assim dizer, sonhos-desejos-emocionados. Não seria de todo errôneo dizer também que você vivia por esses sonhos, que eles o animavam e lhe davam entusiasmo. E você os via como possíveis, alguns mais prováveis que outros, alguns mais tangíveis que outros, alguns mais próximos que outros, mas todos, de alguma forma, realizáveis, possíveis.

E talvez alguns deles nem fosse possíveis. Você apenas imaginava que eram, tinha idéias vagas de como chegaria a realização deles e se enganava com as ações que tomava achando que elas o levariam até eles. Que importa? Tudo vai bem enquanto você pensa que os seus sonhos são possíveis, mesmo que já não sejam mais ou nunca tivessem sido. A ignorância é uma benção para os sonhadores, pois lhes mantém a esperança.

Um dia a realidade bate na porta da sua casa na forma de saber. Você abre a porta e a realidade lhe diz: "veja, esses sonhos são impossíveis, não há absolutamente nada que você possa fazer para alcança-los". É neste exato momento que você começa a viver a angústia, quando compreende que vários cenários imaginados por você jamais poderão se apresentar ao vivo e a cores em sua experiência. É-lhe penoso pensar que a existência desses cenários ficará limitada à sua imaginação, que eles não existirão jamais nos seus sentidos, onde teriam uma existência muito mais viva, colorida, intensa e penetrante.

Leva um tempo até que o seu respeito e desejo pela verdade vença o seu desejo pelos sonhos. Eram sonhos tão emocionados que você não quer abrir mão deles, alguns tão centrais para o seu existir, que se sente perdido imaginar-se sem eles. A tensão está aí, em que você terá de viver o choque entre o que sabe e o que deseja, é uma experiência desconfortante, enfim, angustiante. Reside aqui o perigo de algumas patologias, se o seu desejo pela verdade é esmagado pelo seus sonhos desejados, levando-o a bater a porta na cara da realidade. Em outras palavras: psicose. A intensidade emocional dos sonhos, entre outros fatores, mas sobretudo ela, é quem decidirá a questão.

Eu diria até que o ceticismo é uma patologia também, o homem-cético não negará a realidade, não dará com a porta na sua cara, mas usará de todo o seu engenho e qualquer estratagema ludibrioso para retardar a sua entrada, para convencê-la a ficar ali, no limiar da entrada, dando, assim, uma sobrevida aos seus sonhos. Mas isso tem um custo. Diferentemente do psicótico que, ao fechar a porta, pode voltar-se tranqüilo para os seus sonhos, o homem-cético terá de persegui-los angustiado, temendo o avançado da realidade sobre si a qualquer momento. Já os Homens-de-ação sofrem bem menos de angústia, pois convidam a realidade para um chá assim que ela lhes bate à porta.

Quando eu a vi pela primeira vez, desejei, sonhei segurar-lhe as mãos, mesmo sem ter ainda qualquer sentimento por ela. São mãos tão belas e encantadoras que queria conhecê-las também ao modo de um cego, pelo tato. Esse mesmo sonho se avolumou e se preencheu de simbologias diversas quando nasceu o meu sentimento por ela. Mãos nas mãos sempre tiveram um significado especial para mim de tranqüilidade e compreensão. Dentre todos os sonhos que tive com ela, pelo menos desses que a gente desenha e colore na imaginação, este é o mais difícil de largar, agora que a realidade me bate à porta. Há dois dias o meu fundo musical é "your hand in mine", do Explosions in the Sky. Ainda sonho, um pouco angustiado, sabendo que será sempre apenas um sonho.

domingo, fevereiro 03, 2008

Inferno

Se me chamasses para ir ao inferno contigo, ao inferno eu iria. Eu vou, eu fui. E, no entanto, eu sei que estavas apenas a me usar, tinhas medo de ir lá sozinha.

Verme

Hoje sou um miserável, um verme, um pedaço de culpa ambulante, uma culpa prevista, antevista, e ainda assim, nada fiz, deixei-a me atropelar, estava fraco para levantar o braço, ou ainda pior, talvez essa seja a desculpa que me conte para aliviá-la, no fundo, talvez buscasse o prazer mórbido da auto-aniquilação, sabia que iria me remoer depois e nada fiz, nada fiz, depois de um dia tão agradável, usufruindo de louváveis sensações, puni-me, sem o saber, mas sabendo, pois nada disso mereço, não mesmo, um verme só merce ser pisoteado, ser comida de peixe, e um verme consciente é simplesmente uma ignomínia, uma infâmia, nunca tive inimigos, nem preciso ter, todo o mal de que preciso e mereço encontra-se em mim, na consciência que carrego, me aprisiona e me esmaga; aí se vão as pinceladas acinzentadas, mas não me olhem com compaixão, eu os odiaria por isso, eu mesmo, agora, não me vejo assim, sofredor, digo até que sinto um prazer nisso tudo, o prazer de Tânatos. Minha infâmia é tão grande que é bem provável que amanhã, ao acordar, não mais reconheça essa cara desfigurada que vejo no espelho, estarei leve como uma pena.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Subsolo

Estou lendo Memórias do Subsolo e nem vou dizer que recomendo, pois tudo que vem da Rússia ou dos povos eslavos, exceto o comunismo, e meu exceto aqui é vibrante e enérgico, eu recomendo em princípio. Enfatizo, em princípio. Então que no livro o personagem principal desenvolve uma tese bem interessante. Resumidamente, pois sua exposição é longa e bem mais expressiva e persuasiva do que pretendo fazer aqui, ele sustenta que mesmo se tivéssemos o conhecimento total, de todas as leis, e, desta maneira, soubéssemos calcular todo o futuro e o que fosse melhor e mais vantajoso segundo a razão para nós, ainda assim nem sempre optaríamos pelo "melhor". Na verdade, diz ele, o "melhor", por vezes, e talvez paradoxalmente, não é o melhor, mas aquilo que a vontade opta por capricho e sem qualquer razão aparente. Evidentemente, há aí uma certa tensão, pois se optamos por algo contrário à razão e ao previsto, então nosso saber não era total. Creio que é justamente isso o que ele está nos dizendo, que há algo intrinsecamente arbitrário no humano que impossibilita um saber total a seu respeito. O essencial de cada um de nós é evasivo, por certo, escapa até do próprio sujeito.

O amor é o melhor exemplo dessa agradável e caótica irracionalidade que nos habita essencialmente. Seria muito mais vantajoso deixar de gostar de quem não gosta de nós ou simplesmente gostar apenas de quem gosta da gente, mas quem acompanha de perto essa ladainha da razão? Ninguém. Eu posso gostar de alguém e encontrar inúmeras justificativas para este meu gostar, o que, no entanto, terá apenas o efeito de corroborar ou não a decisão de ir em frente com este gostar, mas não lhe aumentará ou diminuirá em nada. Posso gostar sim sem qualquer razão visível. E mesmo quando toda a razão for contrária, ainda acontecerá de optar pelo mergulho no caos, pelo insucesso provável. O ser humano é assim, previsivelmente imprevisível.

Agir em conformidade com a razão? Que nada, as razões, os motivos geralmente são sentidos como algo que constrange, que vêm de fora, que se impõem, não é algo que você sente como emanando de si, como sendo suas, quando muito, elas têm o efeito póstumo de aplacar a consciência por uma decisão já tomada, mas na hora do vamos ver, do ir em frente, do mover-se, não é ela que você escuta, é o teu próprio caos que te dá as mãos e te leva sabe-se lá para onde.