quinta-feira, junho 28, 2007

Pernas

Pernas grossas e roliças, de uma brancura noturna, cruzadas bem na minha frente, evidenciando ainda mais a sua exuberância. Realmente lindas, perfeitas no branco para aquele horário e ambiente. Estava só, não apenas no sentido físico da palavra, mas principalmente no psíquico. Olhar distante, voltada para si mesma, olhos consternados, quase ouvi um choro. Completamente absorvida em si que nem me percebeu dissecá-la. Nunca imaginei que no meio de pernas tão perfeitas pudesse encontrar um sofrimento tão visível. Então o frenesi da gravação voltou a tomar conta do local e ela foi chamada a assumir a sua posição de dançarina figurante. Guardou na pequena bolsa preta os óculos que afundavam ainda mais o seu olhar. Levantou no seu salto preto exibindo as pernas mais vistosas do recinto, não minto, acho que nunca esquecerei aquelas pernas, arrumou um sorriso falso na boca e dirigiu-se para o meio da pista. Livre do pensar, do pesar, voltou a dançar.

segunda-feira, junho 25, 2007

Erro

Reconheço que errei, que falei além da evidência, do permitido pelos fatos. Inventei calcado na emoção. Enganei a ti e a mim mesmo. Pincelei com o exagero uma generalidade que não existiu nem no particular.

domingo, junho 24, 2007

Ilusão

Você está tão longe, tão do outro lado do mundo, mas ao mesmo tempo, tão perto, tão dentro de mim. Te apalpo com a sobrancelha do peito. Li ontem, em algum lugar, que somente através do amor e das amizades criamos a ilusão efêmera de que não estamos sozinhos. A frase era para ser pessimista, mas eu a incorporo com otimismo. Ilusão tem ser, tem cor, tem impacto sobre a minha sensação. Ela está viva na minha experiência. E depois, o Berkeley me ensinou que esse est percipi. Sendo assim, deixe-me em paz na ilusão diária de tê-la por perto, ouvinte dos meus ecos.

sexta-feira, junho 22, 2007

Fraquejo

Adianta dizer a verdade a quem não está preparado para ouvi-la? Esmaga meus ossos essa pressão para não fraquejar. A mulher, em nossa sociedade (ou seria ainda mais radical, a fêmea, em nossa espécie?), pode se dar ao luxo de declarar publicamente a sua auto-estima em baixa. O homem será punido se o fizer, mesmo pelos mais sensíveis. Sua virilidade percebida, em especial pelas mulheres, decai na mesma medida da sua perda de auto-confiança, gerando um ciclo vicioso direto para o abismo. Já recebi em meus braços o choro da mulher esquartejada, dilacerada pela existência. Quando, no entanto, fui buscar o apoio compreensivo no abraço dessa mesma mulher, nem tão assim lamurioso, nem tão assim lacrimoso e queixoso, recebi em retorno um tapa nas costas, aveludado por: "cuide-se, amigo". Uma preocupação a falsear um quase desprezo. É por isso que eu estou sempre muito bem, muito bem mesmo, obrigado.

terça-feira, junho 19, 2007

Ruivas

Alfedro tem fixação pelas ruivas. Foi assim que ele se apaixonou através da visão instantânea pela L, K, N e W. Em tempos diferentes, é claro, pois Alfredo é o tipo de cara que prefere ataques concentrados ao invés de suportar grandes flancos. Diz ele que o risco de sucumbir no seio inimigo é maior, mas também são maiores as chances de chegar ao seu centro fatal. Não sei de onde vem essa atração irrefreável, mas é incontestável o abalo emocional de Alfredo diante de uma ruiva. Outro dia caminhávamos pelas ruas do centro, discutindo sobre um texto da faculdade, e repentinamente ele me deixa sozinho, seguindo por uma outra rua atrás de uma ruiva que ele tinha visto passar. Não o vi mais nesse dia. No ônibus, ele simplesmente fica imóvel, ouso dizer que nem pisca, encarando a primeira infeliz ruiva que ele encontra. Nem preciso lhes dizer que esse comportamento de psicopata não deu nenhum fruto. Duvido que dê. Já vi Alfredo com japas, negras, morenas, altas, baixas, gordas, magras, mas nunca com uma ruiva. Um dia resolvi lhe perguntar se sua fixação tinha alguma razão. Ele me respondeu assim: "Não tem não, meu amigo, eu simplesmente me sinto queimar por dentro quando vejo uma ruiva. Elas despertam o meu demônio. Sabe, quando você não consegue pensar em mais nada, sentindo o ser que se apresenta como senhor absoluto da sua atenção? É assim que me sinto, sem controle, sem opção, sem livre-arbítrio. Mas você quer uma razão? Quer? Não sei o que você faz com tantas razões, realmente não sei. Mas vá lá. Se quer...dou-lhe uma, essa aqui, ó: tenho medo de escuro, verdade, mesmo já estando assim quase adulto, não durmo de luz apagada e sempre imaginei que se me casasse com uma ruiva, teria um fogo incandescente a me iluminar e aquecer no próprio leito. Entende?. Não sou muito diferente dos outros homens nas associações".

terça-feira, junho 12, 2007

Delonga

Queria que saísse perfeito, apesar do meu timbre canhestro e dissonante. Longamente treinei. Mas no dia que lhe resolvi recitar essa música, ela me disse adeus. Abafou-me o sentimento antes mesmo que ele pudesse vibrar em tua alma pelas minhas cordas vocais.
Guardei esse segredo por muitos anos. Hoje a cafonice o liberta.

It's only time.

Why would I stop loving you
a hundred years from now?
It's only time.
It's only time.

What could stop this beating heart
once it's made a vow?
It's only time.
It's only time.

If rain won't change your mind,
let it fall.
The rain won't change my heart
at all.

Lock this chain
around my hand,
throw away the key.
It's only time.
It's only time.

Years falling
like grains of sand
mean nothing to me.
It's only time.
It's only time.

If snow won't change your mind
let it fall.
The snow won't change my heart,
not at all.

(I'll walk your lands)
I'll walk your lands
(And swim your sea)
And swim your sea

Marry me.
Marry me.

(Then in your hands)
Then in your hands
(I will be free)
I will be free

Marry me.
Marry me.

Why would I stop loving you
a hundred years from now?
(Magnetic Fields)

Ponto.

Amor é amor e ponto final. Quando ela me fala do seu "amor" pragmático, do seu estar ao lado por força do hábito, do seu gostar de por ser assim mais adequado, mais confortável, gostar adquirido pelo costume, eu emudeço na incompreensão. Não tenho o que lhe dizer. Penso que ela se relaciona com o mundo primordialmente através das mãos, acentuando a sua textura áspera, segurando com força o presente, enquanto que eu me relaciono pela visão, deixando-me encantar pelas ilusões que vejo longe, contemplando o futuro que ali vem. Não sei, realmente não entendo.

quinta-feira, junho 07, 2007

Pueril

Pés diminutos sobre o terreiro, ligeiros e descalços, para ali bem sentir os grãos de areia. Na mão esquerda, segurando com firmeza, o fio do seu balão azul de hidrogênio. Corre solto e livre. Na boca, um sorriso pueril de quem ainda não precisou se encontrar com a esperança.

segunda-feira, junho 04, 2007

Exatamente assim

-Como você definiria Curitiba?
-Eu a definiria como a cidade das aparências. Aqui o essencial é o inessencial.
-Por que veio para cá? Outro dia mesmo você me disse que busca o que há de mais profundo nas coisas.
-Ainda penso assim.
-Não entendo.
-É simples. Se eu estivesse em um lugar onde o essencial estivesse sobre as aparências, eu o encontraria com facilidade.
-Não seria melhor?
-Evidente que não.
-Por que?
-Uma vez que o encontrasse, iria me entediar.
-Então, por que busca?
-Ué, se não buscar, também vou me entediar.
-Deixe-me ver se entendi. Precisa buscar algo que nunca gostaria de encontrar?
-Exatamente assim.