sábado, abril 28, 2007

Dualidade

E, no entanto, ela chorava por imaginá-lo sofrendo. Não havia culpa em suas lágrimas. Apenas dor, dor por não conseguir corresponder o amor tão perene que ele lhe tinha; ele, o seu amigo, ele, que desde sempre esteve ao seu lado, ele, que estava diariamente atento ao seu bem-estar, ele, que trazia consigo a compreensão dos seus anseios e medos, enfim, ele que, pela lógica da razão, ela deveria amar. Mas não é assim que raciocina o coração. E ele calado sofria. Para ela, externava sempre o seu resíduo de alegria, sem nunca fraquejar. Seu amor a ela nunca impôs. Mas ela sabia, assim como todos da cidade. Por mais que um sorriso ou um abraço da amada pudesse lhe provocar euforia, não há alegria em amar sozinho. Era a ferida que carregava sempre consigo. Havia nos olhos dela muito cansaço. Por anos tentou se vencer pela vontade. Quis muito amá-lo, mas nunca logrou. Entristecia-se ao sentir tão duramente essa limitação. Ela se questionava: "como pode haver algo em mim que não consigo vencer?". E quanto mais ela se perguntava e se esforçava, mais sólida lhe parecia essa resistência, esse atrevimento de um quinhão do seu Eu, que era, ao mesmo tempo, à luz da razão, o seu não-Eu. Mas pode o coração ser menos Eu que a Razão? Claro que não. E para ela não era menos doloroso que para ele. Então ela chorava, enquanto ele sorria em falso.

terça-feira, abril 24, 2007

Cegueira

Sabe, se esse rapaz não for capaz de notar o sol que brilha em teu coração, então ele é cego. Mas sou obrigado a te alertar: algumas pessoas nascem cegas para o amor, outras acabam ficando ao longo da vida.

domingo, abril 22, 2007

Despair

I fall in love
for a moment
before I hit despair
I turn around to see you
another one is there
how the bells of the clock
how the bell do chime
that awful reminder
"you never will be mine"
(Death in June)

quarta-feira, abril 18, 2007

Alfredo

Alfredo se entedia com tudo. Ele se apaixona com a mesma velocidade com que se esquece dos
seus amores antigos. O entediado é movido pela novidade. Outro dia, no ponto de ônibus, Alfredo cresceu os olhos para tentar ver o título do livro que a moça ruiva ao seu lado lia. ``Notas do Subterrâneo''. Humm, pensou. Ainda não tinha reparado em seu rosto. Quando o viu, se sentiu atraído. Ela tinha entre 20 e 24 anos, um nariz pequeno e arredondado, cabelos curtos, acentuando a sua jovialidade e sardas, sardas que desde pequeno Alfredo sempre almejou. Quando o ônibus chegou, esperou que ela fosse na frente, para ter uma visão completa do seu andar. Chamou-lhe a atenção a mochila da faculdade. Nela leu ``Administração''. Ah, pensou desapontado. Então olhou para suas mãos e viu unhas enormes que ele já não gostava tanto. Depois reparou no celular que ela ostentava, pendurado no bolso da calça. Sentou logo atrás dela.
Se sentasse ao lado, teria a chance de lhe falar, mas agora ele só queria observá-la. Alguns minutos depois, ela atendeu o celular. Quem ali estivesse, poderia assistir a mudança gradual da expressão facial de Alfredo de interessado para completamete desinteressado, quando, por fim, ele deixou de reparar na moça para contemplar a paisagem que a janela do ônibus lhe oferecia. Palavras como ``balada'', ``tipo'' foram lhe assassinado o interesse. O novo tornou-se velho. Tédio. Assim segue Alfredo se apaixonando e se desinteressando todos os dias várias vezes ao dia.

terça-feira, abril 10, 2007

Amada

Não seja tímida. Vim de longe para me entregar completamente a ti, para sentir teu sopro gélido sobre a minha nuca. Acorde, já é hora de despertar! Mostre-me do que és capaz. Não suporto mais te ver assim tão aprisionada, temerosa, refém das ações humanas, quando és capaz de sobrepujá-las todas. Solte teu bafo esbranquiçado enquanto inspiro, deixe-me levar-te aos meus pulmões! Tenho um sangue demasiado latino que tu precisas arrefecer. Há semanas que sonho com o teu abraço cristal. Ouso dizer que sou o primeiro a te amar verdadeiramente. Todos aqueles a quem deste a luz se protegem com grossas mantas quando tu te aproximas. Covardes, se refugiam. Não te sentem, não te encaram. Negam a própria mãe. Ainda bem que não nasci de ti. Estou livre para amá-la sem complexos. Diferente dos teus filhos, saio correndo de braços abertos ao teu encontro sempre que tu te mostras. Não fosse o olhar impuro dos homens e o seu poder insano, iria nú te receber. Deixaria que me tocasses por completo. Ah, Curitiba minha, tu és a gaia que eu, investido de eros, vim fecundar. Acorde, já é hora de me receberes.

terça-feira, abril 03, 2007

Jornada

Esse vento forte que me corta a cara e me faz cerrar os olhos, como ele me arde. Só vejo um palmo diante dos olhos. Essas pernas trêmulas que já não me fixam direito no chão. Cansado, envelhecido e com sede neste deserto. Fecho os olhos e sinto sua mão tocando a minha face, deslizando suave sobre os meus lábios. Mordisco-a. Alívio em forma de delírio. Até a lembrança envelhece. Em vão me esforço. O chão me chama, quero deitar, dormir, descansar.